
Sempre gostara de quadros de ardósia. Daqueles negros, pregados na parede, emoldurados em madeira.
Voltou a sentir nos dedos a sensação familiar do giz a deslizar na superfície lisa, esboçando números, desenhos, esquemas.
Claro que agora já não se usavam, substituídos por quadros magnéticos de canetas coloridas, quadros interactivos e uma infinidade de coisas mais, todas elas mais apelativas, mais multimédia, mais … actuais.
- Modernices… - deu consigo a resmungar.
A Dona Manuela já não os experimentara. Por limite de idade, reformara-se do ensino, ela que dedicara toda a sua vida adulta a ensinar crianças, decifrando as letras, os números, o mistério das contas de somar e subtrair, as partes do corpo e tantas outras coisas que, no seu tempo, se ensinavam aos mais pequenitos.
E ali estava ela, em frente ao quadro, segurando o ponteiro de madeira, a olhar para a classe, a sorrir.
- Então… gostaste da surpresa?
A Dona Manuela sorriu para a amiga.
- És uma tonta, Raquel… sempre foste. E agora, depois de velha, ainda estás mais…
A amiga ria, encantada.
- Não me importo… aliás, uma das vantagens da velhice é precisamente essa. Podemos fazer todas as tontices que nos apeteça, e ficamos sempre impunes. Não é óptimo?
- É, lá isso é verdade… mas diz-me lá… onde descobriste tu esta fotografia?
A amiga Raquel tinha um brilhozinho nos olhos.
- Ora… então não te recordas? Foi naquele dia em que o teu marido te foi levar à escola e até bateu com o automóvel no portão da entrada, não te lembras? De cada vez que revejo aquela imagem…. com ele todo irritado…
Riram-se as duas, com a cumplicidade de meio século de amizade.
Lembrava-se, claro que se lembrava desse dia.
O marido levara-a à escola, já atrasado para o emprego, protestando. Com a pressa… nem reparara no portão e… enfim, coisas que acontecem.
Nesse mesmo dia, a sua amiga de infância, a Raquel, levara a máquina fotográfica nova para a escola, para capturar imagens da peça de teatro que andava a ensaiar com os seus alunos, qualquer coisa relacionada com o natal.
E assim de repente, abrira-lhe a porta da sala, gritara - Manu, olha aqui… - e clique, pronto, já estava, apanhada em flagrante junto ao quadro, ainda de ponteiro na mão.
- Nem me deste tempo para compor o cabelo…
- Nem foi preciso… mas vá, diz-me lá, gostaste ou não gostaste da surpresa?
Dona Manuela agarrou-se à amiga, num abraço sem palavras.
Não eram necessárias.
Cinquenta anos depois, conheciam-se demasiado bem para isso. Haviam partilhado a mesma profissão, a mesma escola, as mesmas amizades, cuidado dos filhos uma da outra, envelhecido juntas.
Dona Manuela colocou a fotografia emoldurada sobre a mesa, junto às chávenas de chá.
- Oh, Raquel… olha lá bem para a fotografia… eu até podia ter sido manequim, não te parece?
A amiga olhou para ela, depois para a fotografia… e novamente para ela.
E voltaram a abraçar-se, rindo perdidamente.