
Olhou de novo para a multidão, expectante, do outro lado do vidro embaciado.
O que lhes iria dizer?
Não fora sorte, certamente. Durante os quatro anos de mandato, limitara-se a dar o seu melhor, resistindo às pressões, aos entraves dos adversários e principalmente… aos pedidos dos amigos.
Detestava o trabalho de gabinete e, sempre que podia, refugiava-se nas ruas, misturando-se com a multidão. Por vezes reconheciam-no.
Ao princípio ofendiam-no, afinal de contas todos os políticos são iguais. Prometera combater a injustiça, alimentar os famintos, criar esperança. Ninguém acreditara que tudo não passasse do eterno discurso, já gasto por todos os seus antecessores.
Quatro anos depois… tudo mudara.
Deixara de ser o líder anónimo, o "ministro de calções" como a imprensa gostava de lhe chamar. Aos poucos, conquistara o seu lugar e, apesar de não ter conseguido concretizar tudo… não havia quem não reconhecesse que seria impossível fazer melhor. Daí que uma enorme onda de simpatia rodeasse a sua figura, principalmente pelas posições corajosas que tomara… desafiando os poderes, promulgando leis há muito congeladas no fundo das gavetas, propondo reformas e, principalmente… ouvindo as pessoas.
Sem o aparato habitual da segurança tão querido dos governantes, continuava a frequentar o mesmo restaurante de sempre, a ir ao cinema aos sábados à noite, a passear o pastor alemão Fredy no jardim e a correr pela marginal, de calções cor-de-laranja, todos os domingos.
Sempre que pensava no assunto, não conseguia evitar um sorriso.
Um dia, um jornalista tentou entrevistá-lo, precisamente num domingo de manhã. E ele acedera, colocando simplesmente uma condição.
- Pode perguntar-me o que quiser… desde que me acompanhe na corrida…
Claro está que a entrevista durou apenas três perguntas e outras tantas respostas, o tempo mais que suficiente para o repórter ficar para trás, sem fôlego… enquanto ele continuava o seu jogging, rindo como um gaiato.
E assim nascera a alcunha do "ministro de calções", claro.
Afastou-se da janela e rumou à saída.
Apesar dos conselhos de todo o gabinete, apesar das cartas, das ameaças, de tudo o que a prudência aconselhava… decidira recandidatar-se.
Abriu a porta e assomou ao exterior.
Uma multidão ensurdecedora recebeu-o com entusiasmo. Bandeiras, gritos, buzinas, gente empoleirada sobre os tejadilhos dos automóveis, equilibrados nos candeeiros de rua, em toda a parte onde pudesse caber alguém, estava alguém.
Num dos prédios sobranceiros ao grande jardim onde se anunciaria a recandidatura, o outro homem esperava, silencioso, resguardado na penumbra. Segurava sem qualquer traço de emoção o metal frio e mal o candidato se deslocou até à tribuna, encostou o olho à mira telescópica e acariciou suavemente o gatilho.
Fez pontaria.
- Meus amigos… - e o candidato ergueu as mãos, tentando inutilmente acalmar o entusiasmo de todos os que ali se haviam dirigido para o ouvir. - Meus amigos…
O outro homem ajustou a mira, voltou a conferir a linha de mira.
Um tiro perfeito, sem obstáculos.
E com a calma que desafia toda a lógica… apertou o gatilho.