
Violeta. Dona Violeta.
Quem a visse na rua, elegante, sofisticada, passo delicado... dificilmente resistiria a olhar duas vezes. A toilette discreta e o porte altivo conferiam-lhe aquela aura de classe simplesmente ao alcance de poucas priveligiadas, aquele toque magnético e distante de uma actriz de cinema.
Mas Violeta não era actriz de cinema, nem tão pouco dama de sociedade, apesar de conviver de perto todos os dias com algumas das mulheres mais desejadas do mundo.
Não.
Dona Violeta exercia uma profissão assaz curiosa, numa pequena boutique da rua Saint-Honoré, paredes meias com os Camps- Elysées, Paris.
Dona Violeta era ... boticária. A sua especialidades? Criar perfumes.
Na penumbra da pequena sala que lhe servia de armazém, um armário enorme, pejado de prateleiras, exibia uma colecção impressionante de pequenos frascos, de variadas formas, cores e tamanhos, cada um com sua minúscula etiqueta, identificando a essência ou o nome da secreta mistura.
Secreta.
Esse era o segredo mais bem guardado, o segredo que Dona Violeta não confiava nem à própria sombra. Habituara-se a não escrever as suas fórmulas em cadernos de notas ou apontamentos, desde que um dia fora assaltada. Não. As suas receitas permaneceriam para sempre na sua memória... e levá-las-ia para o caixão, quando chegasse a sua hora.
Uma prateleira no entanto apresentava-se quase vazia. Cinco pequenos frascos, todos de cores diferentes, destacavam-se nitidamente dos demais, como se sobre eles recaisse qualquer espécie de responsabilidade ou importância extrema.
Com extremo cuidado, Violeta abriu o frasco de liquido alaranjado, aplicando algumas gotas sobre o pescoço e os pulsos.
- Ah... o aroma do campo, as flores de laranjeira... o que poderia existir de melhor para relaxar?
Contemplou, com um misto de enlevo e orgulho, os cinco pequenos frascos, arrumados a um canto.
A cor laranja, o aroma da paz e da meditação, o vermelho sangue, o elixir da sedução, o azul suave, o aroma da eterna juventude, o amarelo girassol, a cor da energia e finalmente a cor violeta, a sua obra prima... o elixir da paixão.
Foi interrompida nos seus pensamentos pela sineta da porta, anunciando a entrada de uma cliente na loja. Fechou cuidadosamente o armazém e dirigiu-se ao balcão.
- Madame... que prazer em vê-la... já há muito tempo que não nos dava o prazer da sua visita.
Por hábito, falava sempre no plural. Trabalhava sózinha, mas apercebera-se que as clientes, na maioria pessoas de uma certa posição social, preferiam que ela se lhes dirigisse assim.
A cliente, uma mulher ainda jovem, ostentando um exuberante chapéu e óculos escuros, era já cliente da casa, esposa de um politico bem conhecido.
- Dona Violeta... a minha pele... já acabei com o seu frasquinho azul... preciso de mais um...
Violeta sorriu, como fazia a todas as clientes. Maquinalmente, apanhou do expositor um esguio frasco azul, sem qualquer rótulo entregou-o à cliente.
- Madame... não está esquecida do que falámos sobre o seu perfume, creio... é perigoso ultrapassar a dose...
A cliente nem a deixou terminar a frase, abrindo prontamente o pequeno frasco e aspergindo generosamente os pulsos. Em seguida aproximou-os sucessivamente do rosto, aspirando o perfume de uma forma sôfrega, quase doentia.
- Eu não me esqueci, Dona Violeta, eu não me esqueci... simplesmente tenho-me sentido particularmente cansada... e talvez tenha colocado uma dose... talvez um pouco maior, é só... nada de mais...
Violeta lançou-lhe um ar complacente, enquanto guardava o pagamento. Ficou a vê-la sair, passo acelerado, o motorista a abrir-lhe a porta da limousine e segundos depois, a perder-se no movimento das ruas.
Provavelmente, o seu elixir azul... talvez fosse o mais popular, em especial das clientes já de uma certa idade. Uma e outra vez, voltavam amiúde, revigoradas e sentindo-se estranhamente jovens, sempre que usavam a misteriosa fragrância da Dona Violeta.
Mas naquele momento, a sua preocupação era outra. Esgotara completamente alguns dos ingredientes … para o seu perfume violeta, o elixir da paixão.
Aguardou com impaciência o final da tarde, até poder fecha a boutique.
Um pouco de canela, algum musgo de carvalho… tudo fazia parte da sua mais secreta receita, o elixir da paixão, de cor arroxeada.
Faltava-lhe o ingrediente principal; a alfazema.
- Táxi…
O sol já desaparecera no horizonte, quando finalmente chegou ao seu destino. Aos poucos, a luz amarelada dos candeeiros das ruas emprestava um colorido de postal antigo ao empedrado das ruas. Mais ao longe, o recorte dos edifícios reflectia-se nitidamente sobre o rio, uma imensa fiada luzes coloridas tremelicando ao sabor da corrente. Um barco de turistas ruidosos deslizava sobre as águas, rumo às Tulheries.
Empurrou o pesado portão e os gonzos enferrujados soltaram aquele lamento característico do avançar da idade.
Descalçou as sandálias e avançou.
Rue quatre-vint-deux, numero douze. A um passo de Jim Morrison, ironia do destino.
A toda a sua volta, o cemitério de Pére-Lachaise mergulhava no silêncio da noite. Aqui e ali, alguns lampiões e vultos silenciosos percorriam as estreitas alamedas, à procura de entes queridos, celebridades, artistas já desaparecidos. Algures por entre todas aquelas mármores e granitos, entremeados de ciprestes, nomes como Balzac, Maria Callas, Óscar Wilde, Piaf… Chopin… dormiam o sono mais profundo, alheios a todos os comuns mortais que ali deambulavam.
Violeta não se dirigira ali por nenhum deles.
Ao fundo do relvado que separava a parte velha da ala nova, deteve-se diante de uma pequena lápide de mármore branco, rodeada de um manto arroxeado de flores silvestres. Alfazemas.
Sentou-se na relva, em serena contemplação.
- Pierre…
22 de Agosto de 1999. Como seria possível que dez anos pudessem passar tão depressa, como seria possível que a saudade não se extinguisse após tantos Invernos, como seria possível que a alfazema continuasse a nascer ali como no jardim da sua própria casa, desde aquele dia em que ele, Pierre lhe destapara os olhos e dissera:
- Gostas? É a nossa futura casa…
Não chegara a ser…
Lentamente, abriu a pequena sacola de couro e foi enchendo-a com as pequenas flores arroxeadas, o seu mais precioso ingrediente.
De uma forma que não conseguia explicar… sabia que só aquelas flores, colhidas naquele local de saudade… faziam resultar o seu perfume da paixão.
- Adeus, meu amor – murmurou ainda, antes de retomar o caminho de volta a casa.