Quarta-feira, 4 de Fevereiro de 2009

Ildrun, o druida

 

 
Com um gesto hábil, resultado de muitos anos de prática, guardou no alforge as últimas bagas vermelhas. Tomou-lhe o peso – sim, já era suficiente.
Heléboro, Beladona, Valeriana, Alfazema, Calaminta, Peónia e Zimbro… - as sete plantas mágicas da natureza – já as apanhara em quantidade suficiente ?
Pelo peso da sacola, seria suficiente. Ainda por cima, o peso dos anos já começava a fazer-se sentir… e como tal, as forças já não eram as mesmas de antigamente.
As idas à floresta tinham passado, portanto, a ser mais frequentes.
Ildrun, o druida, já não era propriamente novo. A longa cabeleira branca e as costas já curvadas só confirmavam o adiantado da idade, apesar do fulgor que ainda lhe brilhava nos olhos. As suas mãos ainda conseguiam segurar, sem tremor, a foice cerimonial e os seus dotes adivinhatórios estavam cada vez mais apurados; que o testemunhassem todos aqueles que o procuravam, para tratar os males do corpo e as aflições do espírito. Não existia dor, ferida ou mau olhado que resistisse às suas infusões, chás e misturas de ervas e plantas da floresta, cujos nomes e utilidade ele se esforçava por manter no mais completo segredo.
O regresso à sua aldeia seria no entanto um pouco mais demorado. Necessitava de adquirir uma foice nova e o local mais indicado seria o mercado de Nordilus, a aldeia vizinha da sua. O mercado semanal abastecia as redondezas, permitindo a todos comprar e vender os animais, a farinha, os tecidos, os artefactos de barro, cobre e peles, bem como – uma vez por outra – contemplar as sedas e as pedras preciosas do oriente.
Mas essa visão não estava alcance de todas as bolsas…
Ildrun acabara de arrumar todos os seus pertences e pôs-se a caminho.
 
Nordilus fazia lembrar muito a sua aldeia; aliás, sempre achara as aldeias das Terras Altas muito idênticas entre si; as mesmas casas baixas, de largas chaminés, a praça circular central, onde se realizava o mercado, a rua dos ferreiros e dos estábulos... enfim, quase que poderia ser a sua aldeia, em ponto maior.
Encontrou facilmente a foice que pretendia; nem muito curta, nem muito comprida, com o punho bem delineado e revestido de cortume. Aproveitou também para se abastecer de gordura para as lamparinas e unto para o calçado.
Os aldeões acotovelavam-se, regateando os melhores preços.
As mulheres, de cestos às costas, transportavam as mercadorias das carroças para a praça, enquanto os homens, gritando a plenos pulmões anunciavam o peixe mais fresco e os patos e faisões, tão acabadinhos de caçar que ainda mexiam, eram um regalo para os olhos...
- Vigaristas... – murmurou baixinho, enquanto observava uma vendedora de fruta a dissimular as maças mais podres por entre as mais reluzentes.
O movimento anormal do mercado também tinha outra razão de ser.
Meia dúzia de carroças, pintadas de cores garridas, emprestavam um colorido e agitação extra ao mercado; os saltimbancos estavam de passagem pela aldeia, para gláudio dos mais velhos e alegria da pequenada.
O engulidor de fogo concentrava as atenções no centro da praça. Com sempre.
O malabirista deslizava por entre as bancadas dos vendedores, atirando ao ar ovos e peças de fruta, a um ritmo endiabrado. As palmas eram muitas.
Ildrun, o druida, sempre apreciara saltimbancos.
Naqueles tempos – que idade teria, ao certo ? – ele próprio chegara a acompanhar um grupo destes ciganos nómadas, durante uns meses.
Sorriu-se, ao recordar as peripécias da juventude.
Perdera-se de amores por uma cigana, de longas tranças e olhos negros, de que já não lembrava sequer o nome – mas recordava-lhe os olhos, negros como a noite, que o haviam enfeitiçado.
Por ela largara tudo e partira em busca de aventura e de um amor maior que tudo.
Assim chegara à sua nova casa, numa carroça de saltibanco, na aldeia de Filbur, a duas horas de viagem de Nordilus. E depois... bem, já passara tanto tempo...
Depois de uma frugal refeição, sentiu retemperadas as forças – estava pronto para encetar a viagem de volta a Filbur.
O sol ainda ia alto e portanto, se partisse agora, ainda chegaria a casa antes do anoitecer.
No outro extremo da praça, um adivinho e uma cartomante faziam as delicias de um grupo de aldeões.
- Venham saber o vosso futuro, meus caros amigos – gritava um rapazinho, para angariar clientes para os seus amos – Venham experimentar a bola de cristal de Belrun, o maior mágico de todas as Terras Altas.
O mágico em questão, um respeitável ancião de longa túnica púrpura e capuz a condizer acenou com um gesto de cabeça, a agradecer a apresentação e sentou-se junto da sua mesa de trabalho, à espera do primeiro cliente.
- As cartas não mentem, as cartas nunca mentem – continuava ele a gritar – Venham saber o que a fantástica Tuela tem para vos dizer. A sorte e o amor, quem quer saber o que o futuro vos reserva ? Só a grande Tuela vos pode dizer ...
Uma mulher, de aspecto igualmente ressequido e longas unhas pintadas de negro respondeu à apresentação. Sentou-se numa mesa próxima do vidente da bola de cristal e não precisou de esperar, pois um grupo de mulheres apressava-se já para lhe solicitar os seus serviços adivinhatórios.
Ildrun, o druida, estava encantado – há quanto tempo não via ele uma bola de cristal ? Ou o lançar das cartas ?
- Só uma espreitadela... – como se fosse necessário convencer-se a si próprio. E foi avançando até junto das mesas, enquanto o primeiro cliente se sentava em frente à bola de cristal.
Mais perto dele, a cartomante lançava algumas cartas sobre a mesa. em seguida, inclinava-se para a frente e sussurava qualquer coisa ao ouvido da cliente. O espectáculo podia ser público, mas aquela cliente não pretendia que o seu futuro fosse espalhado aos quatro ventos.
O druida deixou-se ficar, esquecido momentaneamente da longa jornada que ainda tinha pela frente, antes de voltar ao conforto da sua cabana.
O vidente da bola de cristal atendeu um, depois outro e ainda mais outro. A cartomante, mais demorada, já levava duas clientes satisfeitas à sua conta.
- E o senhor, aí ao fundo – e a velha cartomante espeteu as longas unhas pintadas de negro na direcção do druida - ... não quer experimentar, também ? Saber o seu futuro ?
Ildrun riu-se com vontade.
- Velha senhora... é muita gentileza sua, sem dúvida... mas tem aqui muitas moças novas ardendo de curiosidade... não as pode fazer esperar...
A cartomante abanou a cabeça, concordando com ele.
- Mas mesmo assim... sente-se, sente-se. Não quer que eu lhe leia a mão ?
O druida anuiu. Sentia-se estranhamente bem disposto. E ainda tinha uma réstea de tempo...
- Porque não ?
Sentou-se, o alforge carregado de ervas junto aos pés. Estendeu-lhe a mão, as rugas a revelarem a passagem dos anos.
Ela dobrou-se ainda mais, o cabelo desmazelado a cair-lhe sobre o rosto enrugado. Concentrou-se nas linhas, nas curvas da mão, no tamanho, na forma dos dedos...
- Você vem de longe... de muito longe...
Ele concordou. Afinal de contas, tudo o que a cartomante lhe pudesse dizer teria sempre a mesma probabilidade de estar correcto... ou errado. Portanto, deixou-se ir.
- Sim... a sua alma voa por campos longínquos, longe das Terras Altas... – continuou ela, numa voz sumida – vejo um rapaz jovem... a correr, um rapaz muito belo...
Apertou-lhe um pouco mais a mão, detendo-se numa linha que aparentemente se interrompia em algum ponto.
- A vida deste rapaz foi interrompida... este jovem largou tudo, esta linha diz-me isso... mas a linha continua, o rapaz não morreu, a sua vida continuou...
O druida continuava encantado. Para a incitar a prosseguir, ia abanando a cabeça em concordância com ela.
- Vejo um grande amor... foi uma fuga, certamente foi uma fuga... mas o amor desapareceu... há muito tempo atrás... e o rapaz continuou sempre sózinho... a linha da mão continua...
Ildrun sentiu-se a viajar no passado, a recordar a sua própria adolescência, certamente tão idêntica a muitas de outros jovens da mesma idade, que a cartomante já deveria ter encontrado por essas aldeias fora, ao longos dos anos.
- É verdade – murmurou ele... lá isso é verdade...
A cartomante concentrou-se mais na sua mão, aumentando a pressão.
- ... Eu sei que é verdade, Ildrun, eu sei...
O druida foi arrancado ao seu devaneio. Foi só quando tentou recolher a mão que se apercebeu que a cartomante a segurava com força, talvez até com demasiada força.
- Como sabe o meu nome, velha senhora ? Não creio que alguma vez nos tenhamos encontrado...
Pareceu-lhe que a velha cartomante sorrira. Finalmente, largou-lhe a mão, que ele se apressou a recolher.
Com um gesto vagaroso, reclinou-se para trás e desviou um pouco a cabeleira branca em desalinho, revelando um rosto cansado, que deveria ter sido bonito em tempos de juventude. Os olhos contudo, ainda conservavam o brilho de um espírito jovem, enigmático...
Aqueles olhos... negros...
Negros como a noite...
- Ildrun.... – e a voz dela mal se ouviu ... faz tanto tempo... tanto tempo...
O druida fechou os olhos.
Os sonhos – pensou – terminam, mal se abram os olhos...
Quando os voltou a abrir, a velha cartomante continuava sentada à sua frente, e sorria.
Contra vontade, sentiu uma lágrima rebelde a escorrer-lhe pela face.
publicado por entremares às 00:09
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