
Aquele caminho da floresta não era, certamente, igual a todos os outros.
Das portas da aldeia até à entrada da cidade… que distaria?
Uma hora de caminhada? Talvez nem tanto.
O certo era que há muito, muito tempo… ninguém percorria aquele caminho, preferindo contornar toda a montanha, atravessar as duas pontes e subir ou descer a encosta, sempre que se tornava necessário abastecer as casas da aldeia de mantimentos, visitar o médico ou assistir ao serviço religioso, todos os domingos pelas manhãs.
O caminho da floresta - dizia-se - estava habitado por …. Espíritos.
Os três primos, Adão, Josué e Jeremias tinham uma decisão - complicada - pela frente.
A caravana dos saltimbancos pernoitaria na cidade por pouco mais tempo; uma noite, duas no máximo. E depois, partiriam de novo, rumo a outros destinos, como sempre faziam, ou não fossem eles genuínos ciganos, nómadas por natureza e convicção.
Para Adão… o espectáculo dos engolidores de fogo e do atirador de facas. O fogo sempre fora a sua paixão. Josué, por seu turno, pretendia ver - e se possível experimentar - os belos alazões árabes puro sangue, uma quadriga de cavalos que vencia - sempre - todas as corridas em que participava.
Jeremias, do alto dos seus quase dezoito anos, aspirava a mais - a desejada oportunidade de se infiltrar na tenda das artistas, onde as belas ciganas recebiam os rapazes mais abonados da cidade, lendo-lhes a sina, cantando, dançando e o que mais as moedas de prata pudessem pagar.
Existia contudo… um problema difícil de contornar. O Senhor Ezequiel, pai do Josué e tio do Adão e Jeremias opusera-se frontalmente contra. Nem pensar em ir visitar o acampamento dos ciganos - um antro de pecado, um covil de ladrões.
Para piorar ainda mais a situação, a mercearia do bom Ezequiel ficava mesmo na ponta da aldeia, sobranceira à estrada de acesso à cidade. Impossível passar sem serem vistos.
Só restava portanto… uma solução.
- Não me parece grande ideia - protestava o Josué, o mais novo dos três primos.
- Não é grande… mas é a única - contrapunha Jeremias - E se não quiseres vir, não venhas…
O Adão remetia-se ao silêncio, não querendo contrariar nenhum dos dois.
- Não tens medo dos espíritos? - insistia o Josué.
- Eu não tenho medo de nada… Isso são tudo conversas dos velhos, só para nos meter medo… vá, vamos andando… eu vou à frente, querem?
Eles não queriam, mas o Jeremias tinha quase dezoito anos, ele lá deveria saber.
A coberto das sombras, contornaram as ultimas esquinas e aventuraram-se pelo caminho da floresta.
A estrada, empoeirada e coberta de folhas secas, projectava-se sob a copa das árvores, num percurso sinuosos. Estranhamente, não ouviram cantar nenhuma das inúmeras aves que sobrevoavam a aldeia, ou aquelas que construíam os ninhos nos beirais.
Simplesmente o silêncio.
- Ouviram? - Sobressaltou-se o Adão - O que foi aquilo?
Ninguém ouvira nada.
- Alguma pinha a cair… ainda nem ouvi um único pássaro… - retorquiu Jeremias, calmamente.
- Não… não era uma pinha… parecia antes… um tremor…
Pelo canto do olho, pressentiu o perigo.
- O fogo - gritou - o fogo…
E começou a correr, em direcção à aldeia, perseguido por uma enorme bola de fogo imaginária, que ocupava toda a largura do caminho, rodando, rodando sem parar… quase a alcançá-lo…
Os outros ficaram imóveis, pregados ao chão.
- Adão? O que foi, o que se passa? Porque estás a correr? Onde vais?
O Adão nem os ouvia, correndo aterrorizado pela estrada fora. A bola de fogo crescia a cada segundo - por momentos lembrou-se de todos os fogos que ateara na floresta, só por brincadeira. Este era pior, muito pior do que todos os outros, sentia o calor a queimar-lhe as costas, enquanto fugia, louco de pânico.
Os outros ficaram a vê-lo partir, desaparecendo ao longe na curva.
- Não percebi… que bicho lhe mordeu? Até parecia que tinha visto um fantasma… - lá foi dizendo o Jeremias.
- … ou um espírito - murmurou o Josué, bem baixinho. Talvez afinal os espíritos existam mesmo…
- Não digas disparates… vá, vamos continuar… não há tempo a perder…
E lá continuaram, em silêncio. A nenhum lhe apetecia falar sobre o assunto mas… porque fugira o Adão, daquele jeito, como se o diabo corresse atrás dele?
Algumas curvas depois, Jeremias inquietou-se.
- Tenho a impressão de que nos estão a seguir… - murmurou - não notaste nada?
Josué olhou por cima do ombro, mas a estrada continuava vazia… e em silêncio.
- Não… não vi ninguém…
Mas o Jeremias tinha a certeza.
- Acho que estão atrás das árvores… já me pareceu ver alguns olhos, a brilhar nas sombras…
- Ora… pára com isso, estás só a querer assustar-me…
Mas quem estava assustado … era mesmo o pobre Jeremias, de repente muito pouco na pele dos seus quase dezoito anos. Alguém os estava a seguir… provavelmente até mais que uma pessoa.
Continuaram.
Segundos depois, foi a vez de Jeremias se deter, os olhos esbugalhados. Bem na sua frente, um grupo de ciganos, empunhando paus e algumas matracas, barravam-lhe a passagem.
- Não - gritou ele - não, não… afastem-se, para trás, para trás…
Josué olhou para ele, sem perceber o que se estava a passar.
- Jeremias… o que foi, porque estás a gritar?
- Eles… os ciganos… não…. Afastem-se, afastem-se…
E sem mais explicações, correu em direcção à aldeia, esbracejando como louco, despindo a roupa e atirando-a pelos ares.
- Larguem-me, larguem-me… - continuava a gritar, até desaparecer da vista, sempre sem parar de correr.
O grupo de ciganos continuava a correr atrás dele, apesar de só ele os ver. Idênticos, quem sabe até os mesmos que ele habitualmente perseguia, quando os apanhava no mercado, a roubar peças de fruta. Um dia, até conseguira apanhar um dos mais pequenitos, despi-lo em pleno mercado e depois… foi um fartote de riso, vê-lo fugir envergonhado em direcção ao acampamento. Mas todos esses pensamentos lhe desapareceram num ápice porque, olhando por cima do ombro, o grupo furioso corria cada vez mais próximo, já a tocar-lhe as roupas…
Josué ficou sozinho, no meio do caminho da floresta.
De repente, sentiu uma leve mudança, como se o ar tivesse de repente aquecido - uma brisa morna parecia deslizar por entre as árvores, levantando as folhas caídas no chão. A luz do sol, como se uma enorme clareira se tivesse aberto nos céus, rasgou as sombras e coloriu de vermelho e dourado as copas das árvores, conferindo ao caminho da floresta um característico ar de Outono.
- Olha como está bonito… - pensou para consigo o bom Josué.
Sem mais motivos para prosseguir viagem, deu meia volta e rumou de novo à aldeia. Algo lhe dizia que o caminho da floresta era especial, sim… mas não para todos.
Espíritos?
Talvez… talvez que fossem espíritos, quem sabe… mas certamente, não morariam na floresta…
Quando muito, talvez fossem só carregados pelos viajantes, ou pelas suas memórias …