Domingo, 16 de Agosto de 2009

Um pequeno grão de areia

 

- É inevitável, não é?
A pequena flor encolheu as pétalas amarelas, naquele jeito tão característico de demonstrar resignação.
 
Bem ao seu lado, o enorme paredão de cimento estremecia, rangendo dorido sob a enorme pressão da água que, do outro lado, se avolumava mais e mais. Um gotejar inocente, de uma fissura bem na base no paredão, depressa se transformou num fio de água, para logo engrossar e brotar violente, rasgando o cimento à sua volta.
O paredão - ela sabia-o bem - estava condenado; era só uma questão de horas, talvez minutos… até a enorme bacia de água acumulada do outro lado rasgar as entranhas do cimento e projectar-se pelo vale, levando tudo à sua frente; os arrozais, as palmeiras, a aldeia…
O que poderia uma simples flor silvestre fazer, senão assistir num silêncio impotente à destruição de todo o vale? Nada, simplesmente nada.
Mais a norte, as encostas despidas de árvores desabavam sucessivamente em deslizamentos - o degelo da primavera fazia o resto. Ano após ano, as cheias da primavera aumentavam a destruição de um canto da floresta que já fora virgem, mas que agora mais se assemelhava a uma manta de retalhos queimados, com o barro sem vida exposto ao sol.
Os habitantes da aldeia pouco mais podiam fazer do que reforçar com algumas pedras o enorme paredão. Esforço inglório. A fúria das águas, empurradas pela mão do homem, devastadora, não se compadeceria com nada.
Era só… uma questão de minutos…
 
- Porque queres salvá-los?
A pequena flor olhou à sua volta. Muito a custo, descobriu a origem da voz.
- Olá… pequeno grão de areia… desculpa, não reparei que falavas comigo…
- Eu percebi, flor… mas não pude deixar de perceber o teu sofrimento… por esses aldeões…
- Tens razão, grão de areia… revolta-me nada poder fazer para os ajudar… porque daqui a pouco, sem aviso… as águas vão jorrar, destruindo toda a aldeia e ceifando vidas… vidas inocentes…
- Mas sabes, flor… são os homens os culpados por tudo isto…~
- Eu sei, grão de areia, eu sei… - e ia agitando as pétalas amarelas - mas não estes homens, não esta aldeia… estes são simplesmente… as vítimas.
 
O grão de areia não lhe respondeu. A natureza sempre possuira um dom especial para restaurar o equilíbrio, a harmonia. A natureza não conhecia o significado da palavra "vítima", isso não passava de uma mera interpretação humana das leis universais que regem o universo. Tudo se resumia afinal… a uma procura de equilíbrios, a uma paz efémera entre os opostos, entre as forças da criação e da destruição.
 
- Podes fazer alguma coisa para os salvar? - perguntou-lhe a flor, esperançada.
O grão de areia devolveu-lhe o olhar, brilhante de excitação.
- Posso. Não devo… mas posso.
- Podes? Como podes tu ajudar? Não passas de um ínfimo grão de areia…
- Eu sei, flor… mas eu sou um grão de areia especial. Aliás, todos somos especiais, sabes? Só que nem todos têm consciência da sua importância…
- Não te compreendo, grão de areia…
- Eu sei, flor, eu sei… mas não te preocupes, já vais compreender…
 
Metodicamente, o pequeno grão de areia inclinou-se sobre si próprio, apoiado na aragem; para a frente, para trás… novamente para a frente, outra vez para trás…
Finalmente, moveu-se.
Um milímetro, talvez menos.
- Tens mesmo a certeza, flor? Queres salvá-los?
A flor encolheu novamente as pétalas.
- Quero sim, grão de areia. Se o com seguires… salvá-os…
 
Mais um milímetro. E outro. Para o seu lugar, prontamente escorregou um outro grão de areia, e a seguir ainda outro. Uma pequena pedra cinzenta aproveitou o espaço livre e rebolou prontamente, num equilíbrio mais estável. E depois outra, e ainda mais outra, ligeiramente maior.
Segundos depois, toda a base da montanha dava de si, com enormes blocos de pedra a despenhar-se das alturas, numa avalanche incontrolável de cascalho, lama e troncos retorcidos, arrancados pela raiz. Num estrondo ensurdecedor, projectaram-se sobre o paredão, reforçando a estrutura e tapando todas as fissuras com um lençol de lama e pedras.
 
Finalmente, o pó assentou.
A aldeia, ao fundo do vale, continuava incólume, alheia a todos estes acontecimentos.
Uma última pedra resvalou ainda, rodopiando sobre as outras, até se deter sobre o local onde, bem pouco tempo antes, existira uma pequena flor silvestre, de pétalas amarelas.
E sobreveio de novo o silêncio, entrecortado pelo murmurar das águas do lago.
 
 

 

publicado por entremares às 15:55
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