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Nunca se sentira verdadeiramente homem.
Nem mulher.
Durante muito tempo, interrogara-se sobre a possibilidade de não ser nem uma coisa nem outra. Seria possível?
Não se recordava de nascer – quem se recorda? – mas sempre acreditou nas palavras incrédulas da mãe – claro que és um homem, nasceste um homem, eu estava lá, sabes? Eu vi-te sair de dentro de mim...
Mas também não se sentia mulher, à excepção porventura de uma sensibilidade mais apurada, de uma meiguice que o olhar não conseguia disfarçar. Talvez por isso mesmo tivesse optado por deixar crescer a barba – um pouco para equilibrar todos os pratos da sua estranha balança.
E então, por vezes, sobrevinha... aquela dor. Uma dor imensa, rasgando-lhe as entranhas, como se algo o estivesse a dilacerar por dentro, cortando a carne com uma lâmina em brasa. Sentia o fogo a subir-lhe nas veias, o pulso disparando, a vista toldava-se e quase sempre acabava por cair inanimado no chão, como morto.
Os médicos, peremptórios, garantiam: stress... você tem é stress, devia repousar um pouco mais...
Naquele momento, percebeu que a dor se avizinhava de novo. Acabara de sair do banho, ainda nu, frente ao espelho.
O primeiro impacto lançou-o ao chão, dobrado sobre si mesmo, o abdómem contraido num espasmo violento que ia aumentando, aumentando... como se as próprias entranhas quisessem aflorar à superfície da pele. Depois o fogo... aquele calor desmedido que lhe apertava a garganta, impediando-o de respirar. A cabeça tombou, sentiu que a alma se descolava do corpo, os membros deixaram de lhe obedecer.
O mundo, tal como sempre o conhecera, transformou-se numa amálgama de cinzentos, pontilhado de luzes estranhas.
Com a última réstea de vontade, crispou as mãos, tentando resistir à inconsciência sedutora que o assaltava.
Não conseguiu.
A metamorfose, lenta e inexorável, começara.
A pele adquiriu uma consistência gelatinosa, esbranquiçada, a forma dos membros diluindo-se vagarosamente, os dedos escorrendo gotas de seiva – outrora sangue – enquanto o olhar vítreo se ia apagando.
Ao longe, o murmúrio da água corrente assemelhava-se a um rio indómito, correndo voraz pela montanha. E a luz? Aquela estranha luminescência... donde provinha?
Abriu os olhos.
O espelho não lhe refletiu o olhar.
Simplesmente um bater de asas colorido, uma borboleta castanha e dourada, de asas ainda húmidas e trémulas.
Tentou recordar-se de um passado qualquer, mas nada lhe veio à memória, simplesmente o som gotejante da água, ainda pingando da torneira.
Uma massa informe, no chão, não lhe despertou a atenção.
Bateu as asas, pela primeira vez, e saboreou a sensação estranha de se sentir leve, mais leve que o próprio ar.
Olhou uma última vez para o espelho.
Sabia que devia recordar algo... só não sabia o quê.
Segundos depois.... partiu. Um dia de vida, era simplesmente o que tinha pela frente, um dia de vida, a vida de uma borboleta. Não sobrava tempo para dúvidas, questões, suposições. Precisava de voar, cumprir um destino, mesmo sem saber exactamente qual.
Um dia de vida.
- Que seja intenso, pelo menos – pensou, enquanto se afastava rumo ao verde dos campos.