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- Vais desistir, não vais?
Aquela voz irritante recordava-lhe a sua própria voz, de tempos idos.
Houvera um tempo longínquo em que se lembrava de ter tido uma voz assim – fina de falsete, adoçicada e sempre cheia de reticências.
- Não, não vou.
- Mas os obstáculos... já viste a altura do obstáculo? Tu nunca saltaste nada assim...
E a voz, cómodamente instalada na sua cabeça, mantinha-se inalterável no timbre, na entoação.
- E aliás... – continuou – o que te garante que depois desse obstáculo não exista um poço, uma pedra onde tropeçes? Podes cair, podes magoar-te, pensa nisso...
Tentou distrair-se, olhar pela janela. Lá fora, a paisagem era sempre a mesma, não existe muito que ver quando se está a voar a muitos quilómetros de altura, numa cadeira desconfortável e bem localizada sobre a asa do avião.
E a voz não sossegava.
- Repara... mesmo que consigas... por uma questão de sorte que eu nem acredito ... saltar esse obstáculo... haverá sempre outros depois... não os poderás ultrapassar todos... vê... reflecte...
Imaginou-se a ele próprio, diante do seu obstáculo.
Sabia que em parte, a voz irritante tinha razão num ponto. Nunca tentara antes saltar... sobre um obstáculo tão grande, tão complexo. Sabia. Sabia que carregava consigo o peso extra de muitos anos de dúvidas, de lastro emocional que agora lhe pesava sobre os ombros.
E a voz não desarmava.
- Repara... vê o que estás a fazer... embarcaste neste avião... nesta viagem... completamente às escuras de tudo.... estás seguindo um instinto, uma imagem... nada do que procuras é real, não existe...
Ergueu-se da cadeira e foi esticar as pernas doridas ao longo do corredor.
Não, não desistiria.
Sabia... – descobrira-o recentemente – sabia o que tinha que fazer.
E no seu cérebro, a imagem negra de um obstáculo intransponível desvaneceu-se aos poucos, acinzentando os cantos, deixando a luz entrar pelas frestas do quadro ressequido das suas próprias memórias.
Viu-se a tirar toda a sua roupa, do corpo e do espírito, até ficar nu, completamente nu.
Ao fundo, a voz irritante continuava a protestar argumentos confusos, cada vez mais distantes à medida que as peças de roupa iam tombando sobre o chão.
Finalmente, ficou nu.
Sózinho... ele e o seu obstáculo.
Correu.
Com todas as forças, como se estivesse a perseguir o último grão de ar, o último sopro de vida.
Saltaria aquele obstáculo, sim.
E aquela viagem.
E todos os obstáculos que estivessem depois daquele, escondidos na penumbra.
E todas as viagens, e todas as esperas que ainda se fizessem necessárias.
E foi então, algures por entre os passos sôfregos, o coração a bater cada vez mais rápido... que deixou de ouvir a voz.
Sorriu.
- Desistir? Nunca...