
Débora.
Simplesmente assim – Débora. Extensão 371, 3º piso, sector de recursos humanos.
A vida era simples, pensou. Simples e ao mesmo tempo tão confusa, tão cheia de contrasensos.
De repente, deu consigo a pensar na última vez que equacionara algo na sua vida.
Que idade tinha?
O que fazia ali, fechada naquele cubiculo sem sol, agarrada a um computador?
Quando fora a última vez que pegara no pincel, numa tela vazia?
Porque se lembrara um dia de estudar pintura?
Porque abdicara do sonho?
O que fazia ali, desterrada do que sempre desejara ser?
Arrumou as suas coisas, diligente, desligou o computador, fechou as luzes. Mais um dia, igual a todos os outros, atendendo reclamações, encaminhando pedidos, anotando faltas e contabilizando atrasos, baixas médicas, dias de férias. Era essa a sua função, apesar do pomposo título de responsável pelos recursos humanos da empresa – uma contabilista de descontos, uma anotadora de faltas, uma barata de papéis, metódica e irritante.
Há quanto tempo?
Nove anos, dez meses e dezasseis dias.
Muito tempo, demasiado tempo.
Para trás ficara o curso de pintura, dois quadros vendidos para uma modesta galeria, um emprego temporário ao balcão de uma perfumaria e... aquele emprego de recursos humanos.
E no meio de tudo, de toda a monotonia, a sensação indefinível de ser... invisível.
- Débora... anote aí este recado... Débora, não se esqueça de descontar as férias do João... Débora, sabe se o António já terminou a baixa médica... Débora, hoje precisa de ficar mais um pouco, amanhã é dia de pagamentos...
Sim. Claro que sim.
O telefone não parava de tocar, os mails sucediam-se, o estafeta ia e vinha, transportando papéis, formulários, dossiers, arquivos de pessoal.
Débora, extensão 371. Simplesmente isso.
Abriu a porta de casa, atirou-se para o sofá, exausta.
Por um instante, sentiu que se desaparecesse da face da terra, ninguém daria pela sua falta.
A um canto da sala, o cavalete segurava ainda uma tela vazia, rodeada de pincéis e tubos de tinta de óleo. Para quê?
Duas horas e três copos de bourbon depois, pousou o pincel e observou a sua obra. Apesar dos dedos mal recordarem como segurar o pincel, as cores transbordaram espontaneamente, as tonalidades desejadas surgiram sobre a palete de madeira.
Verde, muito verde, algumas matizes de branco sujo, cinzentos, uma moldura.
Chamar-lhe-ia ... a mulher invisível.
Despejou sôfrega o último gole e saiu para a rua.
Encostou-se cuidadosamente a um canto da janela, o verde da madeira a prolongar-se naturalmente na moldura que pintara sobre si própria, o pescoço e o peito camuflados de tinta como se ela própria fizesse parte da parede, da janela.
Fechou os olhos e aguardou que os transeuntes reparassem nela.
Alguém repararia?
De Jaqueline a 30 de Novembro de 2009 às 12:51
Lindo!! As vezes, sinto-me assim uma mulher invisível.
Beijinhos no teu coração.
Linda semana!
Belo texto Rolando
Todos nos sentimos assim alguma vez na vida,... mas o mais certo é que basta não estarmos lá um dia, para que todo o mundo repare que se não falta a pessoa, falta pelo menos a função.... depois basta que alguém tente ocupar o lugar, para que uns mais outros menos, darem pela falta da pessoa.
Ai a vida.... a vida.
Abraço
Jorge
De
Rosinda a 30 de Novembro de 2009 às 14:04
Uma verdade levada um pouco ao exagero, não quero acreditar que seja essa a realidade de alguém...! Eu veria a Débora no trabalho , contudo muitas vezes quando trato as pessoas com simpatia, noto que algumas me olham com estranheza... como se fosse louca! Acho que o problema está nas Déboras que não se valorizam o suficiente!
Fique bem...
De Óscarito a 30 de Novembro de 2009 às 16:46
Acredito que existam muitas pessoas (creio não me enganar ao afirmar: muitas) a quem acontece sentirem-se invisíveis.
Para os outros e até para elas mesmas.
Num tempo em que tudo gira à volta de estatísticas, de números, de coeficientes e de lucro/prejuízos, parece que não resta espaço para o indivíduo.
Sinais dos tempos, dirão...
Abraço/Óscar
ps.: Quando li aquela notícia do "casamento do japonês", lembrei-me que era um assunto à tua medida. Palavra!!!
pss: vi um apontamento televisivo de um ringue de patinagem no gelo, aí em Elvas; bem me esforcei não não te descobri. Será que naquele dia faltaste? :))
De
silvana a 30 de Novembro de 2009 às 17:13
Se foi isso que fizeste, ainda bem!
O melhor de tudo é mergulhar na vida...sem medos e receios.
O teu texto...bem nem tenho palavras!
Adorei o final, acho que é aquilo que todos os seres humanos sentem ao final de um dia "Fechou os olhos e aguardou que os transeuntes reparassem nela.
Alguém repararia?"
Sentimo-nos cansados e sem saber se mais um dia valeu a pena.
gostei muito.
Um grande defeito é não se olhar com olhos de ver.
Beijos.
De
libel a 30 de Novembro de 2009 às 18:33
Claro que sim Rolando, verde é Esperança e mais tarde ou mais cedo a Débora vai sorrir para uma das suas telas e pensar: Sou mais forte do que pensava, consegui deixar de ser apenas um número, consegui sair do anonimato, e tudo porque não desisti do meu sonho, porque pintar é a minha vida, a minha felicidade. E todos nós pretendemos apenas isso. Ser feliz de todas as cores.
P.s. O cafézinho hoje está......divinal!!..Beijokas
De
hasaliah a 30 de Novembro de 2009 às 22:31
rolando,
... um dia essa pergunta acaba por surgir....
sou feliz com o que faço?
... um dia as inquietações são tão grandes, que um copo de bourbon ou uma palavra de incentivo, dão a coragem que faltava....
para mudar é preciso coragem ....
bela história de vida
De
Luísa a 30 de Novembro de 2009 às 22:39
...e eu que estou em fase de mudança! Desejo coisas novas.Criar! Fazer algo novo! Este post foi um impulso...um sinal!
Brevemente darei notícias.
Beijinho terno!
Amigo Rolando!
A vida, às vezes, vai nos fazendo ficar transparentes, mas cabe a nós nos darmos o nosso real colorido. Se "Mulher Invisível" não parar e reparar-se, ninguém o fará!
Lindo texto, como sempre!
Faz pensar...
Um semana muito colorida pra ti,
Bjão
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