
Decidiu esquecer.
Decidiu ignorar.
Decidiu só... adormecer.
Os sonhos assaltaram-lhe a noite.
Seria o luar?
Cerrou os punhos... não, seria mais forte, seria firme como uma rocha. Adormeceria simplesmente e, quando despertasse…
Fechou os olhos.
Os dias do paraíso, do jardim do éden e de todas as almas que já guardara desfilaram-lhe diante dos olhos - muitas, centenas, incontáveis. Porque na verdade, sempre fora essa a razão última da sua existência, da sua missão.
Missão? Sim… missão, sem hora certa de inicio ou de fim, sem tempo para cumprir, sem limite; o fim estaria sempre nas suas mãos, bastava desejá-lo, sabia bem. Tal como sabia que a decisão, quando a tomasse… seria irreversível.
Tentou esquecer.
Tentou ignorar.
O sono não veio, as penas brancas das costas agitaram-se ao de leve e ela ergueu-se.
Chegara o momento.
Vagarosamente, soltou os laços de seda que seguravam as asas de penas, sabendo de antemão que, no preciso momento em que as soltasse dos dedos, elas desapareceriam e ela, até aí mais uma das inumeráveis anjos da guarda, passaria a ser simplesmente… uma vulgar alma humana, mortal, dolorida e só conseguindo voar nos olhos dos pássaros ou nos sonhos da noite. Sabia disso.
Mas a decisão estava tomada.
Tantas vozes guiara, tantas almas aconselhara que agora sentia - como nunca sentira até aí - que chegara a sua hora.
As vestes brancas caíram silenciosamente no chão e ela ficou nua na noite, desprotegida e só. Um último fulgor de luz rodeou-a para logo desaparecer de seguida.
Levou as mãos aos ombros, já sabendo que nada mais iria encontrar, para além da pele fina, muito branca.
Sorriu.
Uma estrela cadente rasgou os céus da noite e por um estranho pressentimento, ela sentiu que algures, numa parte incerta, alguém estaria nesse mesmo momento a decidir qual seria a alma - vestida de branco e de asas de penas - destinada a guardá-la até ao final dos seus dias, agora… tão simplesmente … humana.