Não fosse domingo de manhã... e talvez o parque, bem encaixado ali no centro da cidade dos arranha-céus, não estivesse tão vazio.
Mas o sol acabara de despontar sobre as montanhas do sul e o vento fresco do outono retia no conforto das casas os habituais corredores de fim de semana, os atletas viciados e os passeantes de animais.
O parque, aquela hora tão matinal, era um mundo de silêncios, quebrados uma vez por outra pelo canto dos pássaros ou pelos gritos estridentes dos esquilos.
O lago, adornado de patos e cisnes, ainda não recebera as habituais visitas; as crianças com saquinhos de pão, os pequenos barcos à vela, os botes de remar.
Sentou-se.
O velho banco de madeira, já bem precisado de pintura nova, rangeu sob o seu peso.
Não necessitava de fazer nada; sabia que dali a muito pouco tempo, eles se aproximariam, curiosos como sempre, à espera de um pedaço de pão ou outra guloseima qualquer.
Ele sabia disso também.
E como sempre, trouzera no bolso os dois saquinhos de plástico, bem cheios dos pequenos mimos para os “seus” cisnes.
Ficou a vê-los aproximar, sulcando graciosamente as águas imóveis – sem esforço, sem ruido, como veleiros em mar aberto, rasgando simplesmente a superfície das águas.
- Magníficos – pensou – simplesmente magníficos...
O grupo habitual era constituido por quatro cisnes, sempre nadando juntos, numa formação milimétrica que, obedecendo a ordens invisíveis, faziam com que todos guinassem na mesma direcção, em perfeita sintonia de movimentos.
- Aí estão vocês...
Abriu um dos saquinhos e entreteve-se metódicamente a atirar os pequenos pedaços de pão que trouxera para a água. Os cisnes, com um à vontade que o hábito já criara, nem disputavam os pedaços de pão, limitando-se a esperar que ele os atirasse para mais perto. Sabiam que todos receberiam o seu quinhão.
Sempre fora assim... e de há muito tempo.
- Mas... e o azul? – interrrogou-se de súbito – Onde está o azul?
Um, dois, três... três cisnes. Faltava um cisne, o seu cisne azul.
Sempre lhe chamara azul pelo colar de penas azuladas que lhe ornava o longo pescoço branco.
O seu cisne azul... sempre fora o especial – desde muito cedo, quando percebera que ele era o unico que não se interessava pelas migalhas de pão. Munira-se de paciência para lhe descobrir os gostos, e de tudo tentara; bagos de arroz, banana, amoras.... até finalmente acertar.
O cisne azul adorava... pedacinhos de maçã.
E com uma dedicação infinita, ele cortava as maçãs em pequenos pedaços e levava-as num segundo sauinho, como se de uma ementa especial se tratasse.
E agora... onde estaria o seu cisne azul?
Esperou em vão, procurou nos extremos, junto aos juncos, às ervas altas da margem. Estaria doente? Teria sido levado do lago?
- Onde está ele? – perguntou em voz alta, como se os restantes cisnes lhe pudessem grasnar a resposta.
Mas não. Nada nem ninguém lhe respondeu.
E sem perceber bem como nem porquê.... sentiu-se de repente um pouco mais triste, ou sózinho.
- Posso sentar-me aqui?
Acordou subitamente, os pensamentos interrompidos pela voz cristalina.
- Anh… claro, claro… deixe-me só afastar os saquinhos…
Ela sentou-se, ainda ofegante da corrida.
- Vê-se que está mesmo a precisar de uma pausa…. - lá foi ele dizendo, vendo-a corada do esforço.
Ela riu-se, divertida.
- É verdade… acho que hoje abusei um pouquinho… nem é habitual cruzar o parque por este lado mas hoje… sabe como é…por vezes dão-nos aqueles repentes…
Ele continuou a esvaziar as migalhas de pão, ela a esticar os membros cansados e a respirar longamente, tentando baixar o ritmo.
- Isso que aí tem nesse saquinho… - e ia apontando para o saquinho de plástico ainda fechado, abandonado sobre o banco - por acaso não são pedacinhos de maçã, pois não?
Ele virou-se para ela, meio atónito, meio distraído.
- São… por acaso são… se gostar, sirva-se…
- A sério? Posso? Nem sabe como gosto… pedacinhos de maçã, já cortadinhos e tudo…
E abrindo o saco, pegou em dois pedacinhos e colocou-os na boca, deliciando-se com o sabor.
- Hum… são óptimos… mesmo muito bons… a sério que não se importa se eu tirar mais um?
Ele sorriu - Claro que não… sirva-se à vontade…
Simpatizou com ela. O fato de treino branco, aquela gola azul, o cabelo despenteado sobre os ombros… fazia-lhe lembrar algo de familiar, apesar de não lhe surgir à memória o quê.
- São mesmo bons… - lá continuou ela - e olhe que coincidência, ainda bem que decido correr por este lado do parque… mas… não come também? Não gosta?
- Os pedacinhos de maçã? Não, não… não eram para mim… mas sirva-se… ainda bem que gostou…
Ficou a olhar para ela, a alegria a brilhar-lhe nos olhos. Ou talvez fosse simplesmente a juventude.
E de repente, assaltou-lhe o espírito aquele pensamento incómodo de que talvez - quem sabe, talvez - há demasiado tempo que se estivesse a esconder do mundo, refugiando-se no silêncio, vivendo um luto que há muito já perdera toda a razão de ser.
Tudo… mas mesmo tudo na vida… continuava.
- Olhe… - e viu-se a estender-lhe a mão, num cumprimento banal - eu sou o João…
- Que simpatia, João… e obrigado pelos pedacinhos de maçã… são mesmo muito bons… eu sou a Joana…
Riram os dois.
- Joana? … Engraçado… João, Joana… mas pronto, Joana… quando acabar de devorar esses pedacinhos de maçã, será que me quer fazer companhia num café com uns bolinhos? É que… de a ver comer assim… até me abriu o apetite…
Ela riu-se, os olhos de cisne a disparar sobre ele.
- Um café? Claro que sim… e paga você?
Foi a vez dele rir.
- Pagar? Claro que pago. Desta vez… pago eu…. Mas para a próxima…
Ela acenou a cabeça, simplesmente.
E voltou a rir.
. Sinais
. O rei morreu... Viva o re...
. Fé