A mercearia do senhor Joaquim - bem ao fundo da rua das flores - resistia, ano após ano, ao avançar do grande comércio, das galerias, dos hiper e dos super-mercados. Por entre as montras envidraçadas das perfumarias, ourivesarias e até algumas lojas de roupa, as estantes de fruta alinhadas no passeio e os expositores de guloseimas continuavam a dar aquele toque colorido à rua que já perdera os canteiros de flores que lhe tinham dado à luz o nome.
O senhor Joaquim, claro, era ele próprio uma relíquia, uma daquelas personagens de tempos idos, sempre empertigado dentro do seu avental, servindo os clientes fiéis com um sorriso genuíno, que acompanhava com o seu cumprimento habitual – “Então ora muito bom dia, minha cara senhora, que prazer me dá a sua inestimável visita”
Os clientes, na sua maioria donas de casa idosas do bairro, entregavam-lhe os destinos culinários das famílias, com a confiança inabalável de muitos anos – Ah, senhor Joaquim.... nem imagino o que vai ser o nosso almoço hoje... olhe... escolha por mim, está bem? Já sabe que o meu marido prefere carne... escolha... escolha qualquer coisa por mim...”
E o senhor Joaquim escolhia, um prato de frango com vegetais para a dona Aurora e o marido, ambos de dieta, um delicioso coelho com arroz de ervilhas para a dona Margarida, sempre protestando contra a carestia de vida, coitada, até umas postas de bacalhau congelado para a menina Ritinha, sempre atarefada na corrida para a universidade.
O senhor Joaquim decidia, estava decidido.
- E tu, meu menino, o que desejas?
O rapazinho largou por momentos a sua adoração a um expositor de barras de chocolate e aproximou-se do balcão.
- Quanto... – hesitou – quanto custa aquela caixa de chocolates... aquela da fita amarela?
O senhor Joaquim deixou-se rir.
- Tens bom olho, rapazinho, tens bom olho... tinhas logo que olhar para a melhor... e mais cara? Olha... eu creio que devem ser uns cinco euros... mais ou menos.
O rapazinho franziu a testa, ultrapassado que estava – e em muito – o seu apertado orçamento.
- E não tem alguns desses bons mas... assim um bocadinho mais baratos?
O senhor Joaquim pôs-se a fazer contas de cabeça.
- Hum... mais baratos? Sim... talvez, talvez... e diz-me lá... quanto pretendes gastar, com os chocolates, no máximo? Quanto dinheiro trazes?
- Setenta e três cêntimos... mas acho que consigo arranjar ate oitenta...
O bom do senhor Joaquim nem sorriu. Sabia perfeitamente os pensamentos que assaltavam o olhar do seu jovem cliente. Então lembrou-se.
- Olha... chocolates de oitenta cêntimos neste momento estão esgotados... mas temos ali uma promoção, de rifas da sorte, cujos prémios são também aqueles palhaços de chocolate que estão naquele expositor – e apontava para o fundo da loja – até pode ser que queiras tentar a sorte... e se tiveres sorte, o chocolate e grátis, nem precisas de pagar nada... o que me dizes?
Os olhos do rapazinho brilharam de excitação – claro, o que tinha ele a perder? Nada.
- Claro que quero... eu sempre tive sorte nas rifas da feira...
O senhor Joaquim desapareceu por instantes e quando voltou, trazia nas mãos um pequeno saquinho de flanela verde.
- Olha... é esta a promoção... não sei se vais acertar ou não... mas se tiveres sorte... estão aqui dentro do saco dez bolinhas... nove pretas e uma branca. Se tiveres sorte e conseguires colocar cá dentro a tua mão e retirar a bolinha branca... podes ir buscar o palhaço de chocolate...
Nem foi preciso explicar segunda vez. O rapazinho avançou resoluto e meteu a mão dentro do saco. Cerrou os dentes num desejo surdo e quando a retirou... trazia entre os dedos um pequeno berlinde de vidro branco.
- É branca – gritou entusiasmado – é branca, é branca... isso quer dizer que ganhei?
O senhor Joaquim olhava para ele, espantado.
- Claro... claro que sim... as regras eram essas... se acertasses... ganhavas o palhaço de chocolate.... podes ir buscá-lo... são aqueles lá ao fundo...
O rapazinho correu célere a resgatar o seu prémio e pouco depois saía para a rua, feliz e contente, saboreando o seu tesouro.
- Tu não resistes, pois não?
Virou-se. A mulher, dona Catarina dos Santos, limpando as mãos ao avental, olhava rindo para o marido.
- Ora... que querias tu que eu fizesse? O miúdo só tinha oitenta cêntimos...
Ela aproximou-se, pegou no pequeno saco de flanela e despejou-o sobre o balcão. Imediatamente nove berlindes brancos rolaram sobre o tampo de madeira, tilintando uns contra os outros.
- Pois... mas sabes quel é o problema, meu querido marido, sabes? E que com este teu hábito de encheres o saquinho só com berlindes brancos... eu tenho que estar sempre a refazer os conjuntos dos saquinhos... estamos a ficar sem berlindes brancos, sabias?
Não queres pensar em começar a utilizar outra cor, por exemplo?
O marido devolveu-lhe o mesmo sorriso cúmplice.
- És capaz de ter razão, minha querida... és capaz de ter razão... e que me dizes se passar a colocar cá dentro... amarelos, achas bem?
Ela abanou afirmativamente a cabeça.
- Muito bem, muito bem... passarão então a ser... bolinhas amarelas…
. Sinais
. O rei morreu... Viva o re...
. Fé