
Pai e filho caminhavam sozinhos na rua deserta.
O verão abrasador, aquela hora da tarde, não convidava a grandes passeios. A aldeia inteira, recolhida à sombra das grossas paredes, dormitava … cumprindo o ancestral hábito das sestas, ainda mais saborosas naquelas tardes quentes de verão.
Dirigiam-se ao posto dos correios, um dos poucos locais onde o telefone chegara.
Na grande cidade, existiam os telemóveis, os faxes, os mails, a Internet… toda essa amálgama de novas tecnologias que facilitavam - e muito - a comunicação entre as pessoas.
Mas ali, na pequena aldeia de Vilar dos Passos, encravada nas faldas da montanha, tendo como único acesso uma tortuosa vereda - autêntico caminho de cabras - nada disso chegava. Existia sim, a mercearia do senhor Domingos, que acumulava as funções de posto de correios, banco improvisado para destrocar alguns cheques aos vizinhos e amigos… e pouco mais.
E apesar da hora insensata para desafiar o calor, pai e filho não tinham outro remédio. A mãe, internada no hospital da cidade ia já para duas semanas, só podia receber visitas - e neste caso, telefonemas - das duas às três da tarde.
Portanto, dia após dia, pai e filho desafiavam o calor tórrido e rumavam à mercearia do senhor Domingos, para poder desfrutar de uns momentos de convivência com a mulher e mãe.
- Estás a ouvir o ruído que se aproxima? - perguntou o pai.
O filho apurou o ouvido.
- Sim… parece a carroça do Ti Joaquim…
- Hum… olha que não, meu rapaz… esta parece soar diferente…
- Diferente? Porque dizes isso, pai?
- Diferente… ora presta lá melhor atenção…
Detiveram-se à sombra de um beiral, à escuta.
- Tens razão, pai… não é a carroça do Ti Joaquim… este som é diferente…
- Bem visto, meu filho, bem visto… e tens razão, o som é mesmo diferente… consegues perceber porque é diferente?
O pequeno bem que tentou.
- Não… não tenho a certeza, pai…
O pai sorriu.
- Olha… eu dou-te uma ajuda… eu aposto que vem aí um homem bom…
- Um homem bom? Mas tu nem sabes quem traz a carroça, como podes saber se ele é bom ou não?
O pai voltou a sorrir.
- Não vejo, mas ouço… e até te digo mais… é um homem que gosta bastante de animais…
O filho ficou a olhar para ele, confundido.
Segundos depois, uma carroça dobra a esquina, as pesadas rodas de aros metálicos a ecoar no empedrado escaldante da rua. A carroça vinha vazia, o condutor a pé puxando pelos arreios o burro cinzento, caminhando ao lado.
De vez em quando, lá soltava alguns sons de encorajamento e o burro, como se compreendesse o incentivo, abanava as orelhas e aumentava milimetricamente o passo.
- É o senhor Ferreira, o ferreiro. - reconheceu o garoto - um bom homem, tens razão…
O pai ficou a olhar para o filho, à espera da próxima pergunta.
- Como é que sabias? - quis logo saber? Como é que sabias que era ele?
- Não sabia - respondeu o pai - mas só podia ser alguém como ele, sabes?
O filho continuava à espera da explicação.
- Não percebeste, é isso? Eu ouvi a carroça a aproximar-se… e ouvi os passos do homem, também… ora, que tipo de homem é que viria a pé, sob este calor imenso, ao lado do seu animal, em vez de ir sentado lá em cima, sem fazer esforço? Só podia ser alguém que gostasse muito de animais, não achas?
O ficou concordou com um gesto de cabeça.
O senhor Ferreira passava nesse momento à frente deles.
- Ora viva, mestre João… menino Tiago. Está tudo bem? Noticias da Dona Catarina, já está melhorzinha?
O pai João lançou-lhe um aceno afectuoso.
- Está melhorzinha, senhor Ferreira, está melhorzinha… eu digo-lhe que perguntou por ela…
Ficaram os dois a vê-lo afastar-se, condutor e jumento, partilhando o sol tórrido do verão.
- Vamos continuar? - lá perguntou o pai finalmente
- Claro que sim… hoje sou eu o primeiro a falar com ela ao telefone… posso, pai?
Nota: Obrigado à Regina ( http://maisondavila.blogspot.com/ ) onde bebi a inspiração , no seu post da carroça vazia...
Olá Rolando
Também eu estive no cantinho da Regina e adorei a história. Reparaste que passou por lá um que se tivesse burro e carroça talvez não fizesse como o Sr. Ferreira?
É espantoso ver que como atitudes aparentemente insignificantes, podem deixar transparecer o tamanho de um coração.
Beijos
Manu
Oi, Manu...
É bem verdade o que dizes... e sabes, aquele que por lá passou só dá razão aquele nosso ditado " Vozes de burro não chegam ao céu".
Coitado, de anónimo nunca passará...
Também adorei a história... e pronto, pode ser que assim a carroça do senhor Ferreira nos possa "dizer" mais alguma coisinha...
Beijos.
Rolando
E muito bem inspirado, Rolando! Só podia ser um homem bom...beijos.
Oi, Paula...
Suponho que sim, há pequenos gestos que dizem tudo, não é?
Beijos
Rolando
Meu querido encantador,
Sabe o que mais me impressiona em você?
Transformas tudo em algo mágico...sublime...
Agradecer-me? Nunca...eu é que tenho muito a agradecer..e todos nós, aqui a volta de sua fogueira, que ganhamos com este novo conto lindo...
Espero que um dia...o mundo seja repleto de muitos “Senhores Ferreiras” ...
Sim...já ia me esquecendo...Mande abraços para o Mestre João, seu filho Tiago e melhoras para Dona Catarina.
Mil beijos,
Regina.
(obrigada por todo seu carinho)
Oi, Regina...
Mestre João, o filho Tiago e Dona Catarina agradecem, do fundo do coração, o teu carinho... e mandam dizer que quando quiseres, têm sempre uma porta aberta lá para ti, em Vilar dos Passos...
Muitos beijos
Rolando
De MARIA a 14 de Outubro de 2009 às 16:53
Rolando...deliciosa esta história...,um pouco diferente da hist...da Ré mas ambas com grande teor de sentimentos...o Mundo seria mais feliz se existissem mais pessoas como das vossas 2 Histórias...Amei!
:)) Abraço com muito carinho.
Olá, Maria...
Que bom voltares aqui à fogueira. E vamos a isso... distribuir pensamentos positivos...
Beijos
Rolando
Você e a Regina nos trouxeram muitas lições com as histórias da carroça. Uma verdadeira delícia estas interações blogosféricas, parabéns!
Abraços.
Olá, Maria Augusta....
Vindo de si, só posso agradecer. Perdoe não a visitar mais vezes. Mas por falar em interacções... estou seguindo o seu belo exemplo, porque aquela estatueta da Regina no seu blog ( lembra-se ) já de sim é uma inspiração...
Um grande abraço
Rolando
De
Sara a 14 de Outubro de 2009 às 18:30
Olá Rolando,
realmente já conhecia a história na versão contada pela Regina, mas a tua tb gostei muito (e tem tb os seus ensinamentos!).
Gostei foi de imaginar tb o sol quente e esse calor tórrido... pois hoje aqui em Munique já nevou!!!
Beijinhos
Oi, Sara...
Como assim, nevou? Em Elvas, estivemos hoje com 35º... pois, não é para te fazer inveja, a sério... mas diz lá, uma t-shirt, manga curta, alças, sandálias... sabia-te bem, não sabia?
Ai tão mauzinho que eu estou hoje, desculpa, desculpa.
Beijos.
Rolando
De
Sara a 14 de Outubro de 2009 às 19:07
Mauzinho!? Aqui hoje de noite já vamos ter -2°C!!!! Quando sair amanha para ir trabalhar já vai estar mais quente... O°C!
Mandas-me um pouquinho do calor de Elvas?
De
libel a 14 de Outubro de 2009 às 21:58
Olá Rolando,
Não resisti e fui dar um olhinho na carroça da Regina, achei fabulosa a analogia, realmente existem vários ditados sobre o assunto, não vou citar nenhum, mas não sei porquê lembrei-me da história do eco, tudo o que disser volta para trás...ora se a pessoa fôr tão vazia de sentimentos, o que vai receber??...
Aqui ao passar a carroça senti o mesmo eco, e lembrei-me do ditado "Tudo o que semeias colhes", a bondade faz parte.
Um beijinho
Rolando
A saudade me deu asas e eu vim, aqui, em busca de alimento para minha alma... Achei!
A vida é tão simples quando a olhamos pelos olhos certos...
Fiquei sem palavras, fantástico
Abraço
Jorge
De
Luísa a 15 de Outubro de 2009 às 07:52
Duas grandes loções:
- uma, de perspicácia no ouvir com consequente leitura no que vem.
- outra de atitude, se amigo dos animais, então é um homem bom
Este foi o olhar mais perto que vi das pequenas grandes lições que a minha mãe me foi dando ao longo da vida.
Muito obrigada pel lindo conto.
Beijinho terno
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