
O falcoeiro do rei era um moço afável, de olhar ingénuo, quase criança.
Talvez pela idade, ainda tenra de cicatrizes, sem mágoas de guerras ou batalhas - um rosto jovem, quase sempre a sorrir.
Naqueles tempos, as florestas do reino estendiam-se pelas montanhas, em direcção ao grande desfiladeiro do sul, a fronteira natural, prolongando-se até ao lago, a norte; um território imenso, povoado de mitos e sombras, de dragões e criaturas fantásticas, de magia e de feiticeiros, num tempo em que - dizia-se - até as pedras falavam…
O rei, ainda imponente no alto do seu cavalo negro, disfarçava a idade com uma energia ímpar, continuando o mesmo caçador exímio de outros tempos, participando alegremente nas justas e torneios, ignorando sistematicamente os apelos de prudência dos seus conselheiros.
- Em frente.
Esticou o braço e a caravana pôs-se em marcha, os batedores na linha da frente, o rei logo atrás, ladeado de alguns cavaleiros. O moço falcoeiro seguia-os a uma distância respeitosa, misturado com os tratadores de cães e os ajudantes das estrebarias.
Durante as últimas semanas, uma fera que ainda ninguém vislumbrara - talvez um uso - dizimara rebanhos de ovelhas, semeando o caos e o pânico entre os aldeões. Organizaram-se batidas, espalharam-se armadilhas pelos campos… tudo em vão. Noite após noite, os rebanhos eram atacados, apesar das cercas, dos archotes, dos aldeões de vigia. Nada parava a fúria sedenta de sangue da fera desconhecida.
- Está quieto, ainda é cedo.
O falcão olhou para ele, como se tivesse percebido o recado. Abriu as asas mais uma vez e lá sossegou, agarrado firmemente à luva do jovem tratador.
Quem os visse assim, lado a lado, facilmente perceberia a relação de cumplicidade entre ambos, esquecendo por momentos que se tratava de um falcão… e de um ser humano. O falcão voava livre, provocando constantemente o seu jovem amigo, debicando-lhe a roupa e logo fugindo, numa brincadeira alegre nunca vista numa ave de rapina. Ele, que o encontrara ainda minúsculo e ferido na floresta, afeiçoara-se de imediato aquela criatura, partilhando com ela os pedaços de pão da refeição da manhã, levando-a aos ombros nas suas tarefas diárias.
Inseparáveis.
Dirigiam-se a norte, em direcção ao grande lago, a planície das neblinas. Não era local de passagem, muito menos de destino para qualquer caravana, aldeões ou mercadores. O lago era vazio de peixes, escuro e pouco convidativo. As histórias exageradas dos aldeões repetiam vezes sem conta a existência de grandes monstros alados, de olhos de fogo e asas de morcego, que capturavam sem piedade todos os incautos que por ali se atreviam a pernoitar.
Mas os rastos de destruição dos rebanhos apontavam para ali… e para ali se dirigiam.
Um ruído estridente fez-se ouvir, subitamente.
Apressados, apearam dos cavalos, agrupando-se em redor do rei, as espadas procurando o perigo, os cavalos relinchando de pavor.
- Ali, atrás das árvores - gritou alguém - Ali…
Olharam, talvez uma sombra, pouco mais que isso. Era simplesmente algo que encobria a luz, um vulto enorme e ainda sem forma.
- O rei… protegei o rei - gritou um dos cavaleiros.
E um segundos depois, o vulto gigantesco sobrevoou-os, as asas abertas deslocando o ar frio à sua passagem.
- Um dragão - murmuraram… é um dragão…
Pouco havia a fazer, e menos tempo ainda… investida após investida, os cavaleiros do rei caíram por terra, as armas ridiculamente inúteis contra o bafo quente e as garras da poderosa criatura.
Num canto, junto aos cavalos, o moço falcoeiro segurava ainda o seu amigo falcão, nervoso e ainda com a venda na cabeça. Tinha que o libertar.
Soltou o cordel que lhe prendia o capuz e de imediato o jovem falcão recuperou a vista.
E então… algo aconteceu.
A criatura imobilizou-se nos céus, como se algo a tivesse feito parar a sua sede de destruição. Volteava a cabeça numa e noutra direcção, como se procurasse algo. Rugiu, um som cavo e forte, como um chamamento.
O pequeno falcão olhou ainda uma última vez para o seu jovem amigo, abriu as asas e ergueu-se nos ares. E … enquanto subia, uma luminosidade desprendeu-se-lhe das penas, envolvendo-o numa aura de luz azulada. O corpo, elegante e esguio, alongou-se ainda mais, ganhou volume, uma cauda, as asas soltaram as penas e a figura inconfundível de um jovem dragão surgiu-lhes bem por cima das suas cabeças, voando desajeitado em direcção ao monstro que ainda pairava sobre eles, bem alto.
A jovem cria, naquele súbito e inesperado encontro com a mãe perdida… soltou um grito agudo, um som de júbilo, roçando a cabeça escamosa de encontro ao longo pescoço da progenitora.
Segundos mais tarde, desapareciam em direcção à neblina do lago.
O jovem falcoeiro, aturdido, permaneceu sentado no seu canto, enquanto os cavaleiros feridos se entreajudavam, no campo de batalha improvisado.
E por um momento, por um simples e breve momento, veio-lhe à memória aquela lembrança do pai adoptivo, quando ele lhe contava que também o descobrira, abandonado entre trapos, à porta do mosteiro, numa fria noite de Inverno.
O reencontro.
Ao menos, o seu jovem amigo… já tivera o seu.
De
Sara a 11 de Outubro de 2009 às 13:11
Arrepiante, emocionante, empolgante... não consegui deixar de ler toda de uma vez, queria saber o desenrolar do enredo. Tu escreves sempre tão bem Rolando, mas este conto desta vez e talvez por ser tão diferente do que estava á espera... fixou-me ao computador!!!
Desejo-te um Domingo cheio de aventuras e emoções ;)
Beijinhos, Sara
Oi, Sara...
Hoje apeteceu-me falar de reencontros. Quer sejam de dragões ou e pessoas, de amantes ou simplesmente de mães e filhos...
Um domingode sol para ti, Sara.
Muitos beijos
Rolando
De
lis a 11 de Outubro de 2009 às 15:30
Oi Rolando
Me lembra Vinicius j de Moraes com "a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida".
Agora os reencontros é que são também impolgantes, principalmente em se tratando de laços de família que sempre se atraem. É a força do amor!
Bom domingo e que ainda possamos viver reencontros ainda que no momento estejam só imagináveis
Muito afeto em familia e daqui pra aí. .
Oi, Lis
Os reencontros deveriam todos ser assim; mágicos.
Beijos
Rolando
Enquanto te lia pensei o quanto eu gostaria de ter o teu poder de contar. Poderia ter contado histórias todas as noites para adormecer os meus filhos, mas nunca o soube fazer.
Gosto muito de te ler e hoje não foge à regra. Um dia o reencontro acontecerá...
Beijinhos.
Olá, Paula...
Fico muito feliz em conseguir criar-te as "imagens " das histórias, acredita. Porque quem lê... é que na verdade as completa, cada um à sua maneira, não é?
Um beijo, Paula
Como eram as quase-historias que contavas aos teus filhos?
Rolando
Hoje não comento o teu conto.
Vou-te contar um segredo: estou cansadita, a letra assim é mais fácil de ler e levo para a caminha e leio antes de nanar.
Até amanhã.
Beijinho

Oi, Flordeliz...
Que o sono te seja leve... e os sonhos azuis... é o que te desejo.
Até amanhã.
Beijos.
Rolando
Tens poderes mágicos?
Antes de dormir sorri e pensei: O Rolando deve ser portista...
Só um portista acredita ser possível deixar partir um dragão no meio de um batalhão de cavaleiros, mesmo que seja por uma causa nobre - unir o filho ao progenitor 
Enquanto o sono não dava ares de graça fiquei a pensar qual a disciplina do Rolando...História? Português? HUmmm...eu acho que ele gosta de História...pouco importa, adormeci.
Boa semana para ti
Ai Rolando
Estou a imaginar-me á frente de um grupo de crianças a contar esta história... já estou a fazer a voz grossa do rei e o grito do soldado ordenando para que alguém o proteja , pelo meio inventaria um diálogo entre falcoeiro e falcão...tudo isto com gestos largos de grande dramatismo.
No fim perguntaria:
Quem quer fazer de falcoeiro?.. E de Rei?...E soldados?...são precisos muitos.
Eu talvez me empoleirasse em cima de uma mesa...seria a mãe que desesperadamente procurava o filho.
Já estou a fantasiar de mais...que tonta!
Beijos
Manu
Manu, Manu...
Como eu adoraria ver isso, acredita...
Imagino-te naquela feira medieval de Obidos, vestida a rigor, rodeada da criançada toda, empunhando aquelas espadas de madeira e ... ( estou a imaginar todo o cenário ).
E depois vem o dragão, os archotes apagam-se, a criançada grita e tu fazes a festa, entre muitas, muitas risadas...
Que delicia.
Obrigado, Manu. Um grande beijo
Rolando
Manu,
Ri muito quando li seu comentário...pois foi exatamente o que fiz para meu filho..hahaha
Ele, lógico, adorou...e então...”conta de novo”..”conta novamente”..hahaha..lá fui eu....
E com tantas vozes....fiquei com dor de garganta..hahaha
Mas como é gostoso , não?
Super beijos amiga,
E Rolando, como sempre, obrigada...você faz sonhar..
Beijos,
Regina d’Ávila.
Oi, Regina...
Só pela simpatia... pedi ao dragão, e ele aceitou o meu pedido.
Queres vir dar uma voltinha pelos ares, conhecer o mundo visto das nuvens?
A próxima saída do dragão é dia 15, tem vagas.( podes trazer o teu filhote, claro )
Muitos beijos.
Rolando
Maravilha este teu conto...Amanheci lendo-o, e fiquei presa!
Parabéns, e por favor que venham mais.
Jhs
Oi, Maria Clarinda...
É... há dias em que a gente acorda assim... com estas histórias na cabeça... e tanta força elas fazem.... que têm mesmo que sair... e é um prazer enorme, vê-las nascer...
Beijos.
Já te serviste do café? Está ali ao canto...
Rolando
:) Como sempre tua escrita é leve, deliciosa e nos leva para longe da realidade que monomentanea estamos a experienciar.
Ttens o Dom de levar-nos para outras Dimensões e isso é uma coisa que poucos tem.
Obrigada pela Partilha.
Um beijo e boa semana
Kiss Flower
Oi, Beija-flor.
Gostava de tornar os nossos dias mais leves, acredita. E se ao menos te consegui fazer sonhar um pouco, já fico feliz.
Beijos.
Rolando
Por vezes, por trás de de um anjo está escondido um monstro, não é Rolando?, mas até a mais medonha criatura tem o seu coração que mais tarde ou mais cedo amolece.
Belo texto
Abraço
Jorge
Olá, Jorge...
É mesmo... a pedra só é mole por fora...
O resto... bem, talvez seja preciso jeito, vocação... ou amor.
Um grande abraço
Rolando
Gostei! :)
Oi, saltapocinhas...
Obrigado por teres vindo tomar café connosco.
Já te serviste dos bolos?
Beijos
Rolando
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