
Era uma vez um rato.
Sabem? Um ratinho de cidade, daqueles que moram nos buracos das paredes, espreitando as pequenas oportunidades de assaltar a despensa ou os restos das refeições esquecidos sobre as mesas.
Este ratinho em especial vivia acompanhado da família - numerosa, como todas as famílias de ratinhos - num belo casarão, uma daquelas casas antigas com cave, arrecadações e sótãos cheios de baús misteriosos, partilhando aquele espaço imenso com a família Silva, o cão Tobias e o gato Tareco.
A família Silva, igual a tantas outras, era constituída pelo pai João, a mãe Teresa, o Roberto e a Aninhas, sem esquecer a avó Fernanda, que ali pernoitava todos os Invernos.
A família dos ratinhos - doze, no total - não tinha a preocupação humana de baptizar os seus elementos, conheciam-se pelo erguer dos bigodes, pelo cheiro do pelo cinzento, pelos guinchos autoritários do pai ou cauda pontiaguda da mãe. E, claro está que, como em todas as famílias… existia um certo ratinho um pouco mais traquinas do que todos os outros.
Era o mais novo da ninhada, talvez o mais mimado.
Cresceu a pensar que o mundo inteiro era um gigantesco parque de diversões, protegido pela astúcia do pai, a camuflagem dos irmãos, a ternura da mãe.
E claro que, quando num belo dia descobriu um maravilhoso pedacinho de queijo, a poucos centímetros da porta de casa… nem hesitou.
Como era saboroso.
A aventura, o sair do ninho, do seu buraquinho, sozinho… explorar todo o corredor, espreitar a cozinha, a despensa. Claro que não podia esquecer o Tobias ou o Tareco, mas o cachorro passava os dias a dormitar no tapete, junto à lareira… e o Tareco era um vadio, sempre a miar em telhados da vizinhança.
E a aventura… ah…. Que prazer incomparável…
Outro pedacinho de queijo? Milagre.
Esgueirou-se pela estreita abertura - era ele que estava a engordar ou a abertura estreitara ? - e lançou-se sobre o seu petisco. Ainda saboreava aquele néctar dos deuses… e já os seus olhinhos brilhantes descobriam outro pedacinho, a bem curta distância, junto da porta da cozinha.
- Hoje é o meu dia de sorte - pensou - os miúdos deixaram cair o lanche, só pode ser… aproveitemos, portanto…
E outro… e outro… - ainda espreitou se algum dos irmãos estaria a ver, não queria partilhar a sua descoberta com mais ninguém - mas não… o corredor permanecia em silêncio, as luzes apagadas.
Já na despensa, o delírio final. Dois… três… quatro, quatro deliciosos pedaços, perfumados, tenrinhos, com um aroma que lhe enchia por completo as narinas, deixando-o a salivar de antecipado prazer.
- Não consigo… não consigo mais… rebento… e ainda falta um pedaço…
Ainda pensou escondê-lo, para voltar mais tarde. Mas a barriga inchada, arrastando pelo chão, não lhe permitia grandes movimentos e esforços então… nem pensar.
Esfregou os bigodes, pleno de satisfação.
- Miau…
Miau? Ouvira bem?
Um miau… habitualmente significava … não, não podia ser, o Tareco devia andar a saltar pelos telhados, como sempre.
Virou-se lentamente, os bigodes a tentar descortinar algum odor familiar. Não precisou de se esforçar muito.
A curta distância, Tareco, o gato, segurava ainda entre as patas dois pedacinhos de queijo, que já nem precisara de utilizar para a sua engenhosa artimanha.
Miau… - fez ele novamente.
Gatos não riem - pensou o nosso ratinho - mas era capaz de jurar que aquele gato, em particular… estava mesmo a rir. E sentiu de repente um nó na garganta.
Correu, correu, correu… e o gato Tareco, tranquilamente, sem apressar o passo nem fazer esforço algum para o apanhar, lá foi atrás dele. Contornou a mesa da cozinha, derrapou na porta, atirou-se corredor fora, em direcção ao buraquinho estreito do lar, doce lar.
Mergulhou velozmente… mas… só a cabeça conseguiu transpôr a estreita abertura. O corpo, rechonchudo e lustroso, saciado de queijo, jamais conseguiria ultrapassar aquele último obstáculo, que o separava da salvação.
A passo lento e despreocupado, o gato Tareco lá se aproximou e com a pata, puxou-o para fora, segurando-o no ar pela cauda.
Lambeu os beiços, feliz.
Miau… - ronrronou novamente de prazer.