" E então… agarrou-a com ímpeto e puxou-a…"
Não, nem pensar. Aquilo nem parecia uma declaração de amor, quase mais uma agressão na fila do supermercado. Não.
" Olhou para ela e os seus olhos faiscaram aquele brilho que…"
Hum… não, definitivamente… muito selvagem, sem duvida. Nada romântico.
Recostou-se na poltrona, em desespero.
Vazia, vazia, vazia. Nem uma ideia pequenina. Uma simples frase para rematar com chave de ouro a introdução do primeiro capítulo, na cena em que o personagem masculino se deveria declarar à sua amada.
Levantou-se, esticou os braços, bebeu dois goles de água. Bem à sua frente, o cursor continuava a piscar, irritante, a meio da linha inacabada.
Não lhe parecia muito correcto que a inspiração lhe fugisse assim, sem prévio aviso… e ainda por cima numa fase tão crítica, no final do primeiro capítulo. Mas a verdade é que, a cada nova tentativa, as palavras lhe soavam mais ocas, cheias de conteúdo mas … vazias de emoção, vazias de sentimento.
A sua personagem acabara de encontrar o amor da sua vida… e logo agora, que os tinha junto aos dois, num cenário idílico, no hall de entrada de um hotel de conto de fadas… o que deveria ele dizer-lhe? Por favor, por favor, só uma frase, uma frase inspirada… necessitava urgentemente de uma frase inspirada.
Mas… nada.
O nosso escritor sentia-se… insípido - isso mesmo, descobrira o termo certo para descrever aquele estado de espírito quase amorfo, em que queria vivamente expressar algo… e sentia que estava a retirar as palavras do recipiente errado.
" Foi então que decidiu, de uma forma viril…"
Não. Última tentativa.
Não valia a pena insistir.
Fechou o documento, encerrou o computador, acabou de berber a água. O pequeno portátil que comprara no natal anterior era - tinha que o reconhecer - bastante útil, principalmente fora de casa, quando se sentava calmamente a ler as noticias, a colocar os mails em dia ou simplesmente deixava um CD de música a tocar. Mas escrever os seus romances ali… começava a afigurar-se cada vez mais difícil. Ou então… era só uma questão de velhos hábitos.
- E porque não? - resmungou para consigo próprio.
Desligou as fichas e deslocou o portátil da mesa, pousando-o sobre uma cadeira. Depois rumou ao canto oposto do escritório, abriu um dos grandes armários embutidos na parede e, de entre a confusão de pilhas de livros e papéis, caixas de cartão e uma ventoinha de pé alto, ali esquecida desde o verão, apanhou um estojo de cabedal rígido, pouco maior que a mala de transporte do seu portátil.
Levou o embrulho até à mesa e do seu interior retirou um velho exemplar de uma Remington cor-de-rosa, um modelo dos anos cinquentamãe, ela própria também poetisa nas horas vagas.
Com um sorriso nos lábios, entalou uma folha de papel entre os rolos da máquina. Esta respondeu-lhe com o tradicional "clique-clique-clique", o verdadeiro som metálico dos rodízios e carretos em movimento.
Experimentou as teclas.
Ah… que saudades daquela sensação, poder sentir o peso das letras, conseguir observar o movimento dos travessões a elevarem-se e a marcar, de forma bem sonora, a sua letra bem tingida sobre a superfície branca do papel.
" Olhou para ela e sentiu-lhe a urgência. Ela debruçava-se sobre as palavras dele e, por um breve instante… teve a certeza de que ela já adivinhara o que ele ainda nem sabia como dizer"
Sem dúvida… melhor, muito melhor.
Esqueceu as horas e aquele programa de televisão, que tanto gostava de assistir.
E por um bom punhado de momentos, o silêncio do escritório encheu-se com o ruído compassado das teclas, à medida que as palavras iam dando lugar às frases e, sem querer, o segundo capítulo ia surgindo… assim, devagar, ao ritmo próprio da velhinha Remington cor-de-rosa…