Terça-feira, 29 de Setembro de 2009

Memórias

 

 

Tirou o capacete, passando a mão pela testa suada. - detestava capacetes, e ter que o utilizar, de cada vez que vistoriava uma obra, constituía um autêntico suplicio.
O inspector da obra, um homem já de meia idade, um par de quilos a mais e já algum cabelo a menos, era, por natureza, uma pessoa sorridente, daquelas que transmitem a sensação de acordar sempre com o pé direito, sem problemas na vida.
Claro que tinha problemas, todos têm problemas. Mas tirando o facto de nunca conseguir esticar o salário até ao fim do mês ou do seu clube favorito de futebol andar pelas ruas da amargura… é verdade, podia dizer que nem tinha problemas.
A saúde, essa era de ferro. A família, apesar de viver longe, reunia-se regularmente e quase todos os fins de semana se encontravam para passeios esporádicos ou churrascadas no quintal. A distância nunca fora impedimento.
 
Abriu a porta e entrou no edifício abandonado.
Não se considerava um sentimentalista… mas naquele momento sentiu um nó na garganta, como há muito não recordava.
A sua escola, a sua velha escola primária…
Como qualquer edifício antigo… chegara a sua hora. Ali seriam construídos mais alguns blocos de modernos apartamentos, um pequeno jardim, talvez até um parque infantil. A velha escola - há muito o sabia - ia ser demolida.
Nunca pensou poder vir a ser ele o responsável pela demolição, a tal pessoa que daria a ordem para alguém carregar no botão, dar a voz de partida para as bulldozer rasgarem as paredes e esventrarem os recantos que ele tão bem recordava.
Fora o mobiliário que já havia sido retirado, ainda existiam aqui e ali algumas cadeiras, mesas partidas, um velho mapa rasgado pendurado numa parede.
Percorreu o longo corredor que dava acesso às salas de aula. Primeiro, a sala da professora Susana, aquela mulher diabólica que parecia ter olhos nas costas, que via tudo e nada deixava escapar… as casas de banho, o gabinete da directora, a sala do professor Josué - bom sujeito, tinha saudades dele - e as portas de acesso ao pátio.
Que saudades…
 
E … aquela porta, ainda da mesma cor, aquele verde garrafa, a sala dos arrumos.
Deteve-se, um sorriso a bailar-lhe nos olhos.
Num flash instantâneo, o tempo recuou até uma manhã de Maio de um ano já longínquo, quando no meio do intervalo da manhã ele brincava no pátio. Teria oito? Talvez nove anos.
Ela chamava-se Luísa e tinha os caracóis mais sedutores que ele conhecera em toda a sua curta vida. Sentavam-se na mesma mesa, até partilharam algumas vezes o lanche no pátio.
Mas naquela manhã de Maio, o sol estava mais quente, as flores mais garridas, um aroma diferente pairava no ar.
E, no escuro da sala de arrumos, com a porta encostada e o coração aos saltos, ele beijara-a nos lábios pela primeira e única vez.
Um momento único, irrepetível como todos os primeiros momentos de qualquer coisa. Um momento que o acompanharia como uma lembrança… uma boa lembrança da sua infância.
 
Voltara a vê-la não há muito tempo, rodeada do marido e dos filhos, uma vida tão normal como a dele próprio.
Não fora nenhuma paixão, não fora nenhum amor, fora simplesmente um beijo.
Simplesmente?
Não, não tão simples.
 
Fora, isso sim… o primeiro beijo.

 

publicado por entremares às 12:44
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De lis a 29 de Setembro de 2009 às 15:36
Doces lembranças.
Saudades boas.Primeiro beijjo, com o namoradinho, a timidez nao ajuda e tem que ser rápido mas fica um sabor de bala de caramelo. Inesquecível.
Me dá uma saudade tamanha desses momentos de ternura ,da hora do recreio na escola, de bilhetinhos desenhados , da grande farra que foi a infância.O senhor Tempo se encarregou de transformar tudo em lembranças..
Agradeço-te pelo texto lindo que nos transporta até lá.,acendendo nossa memória.
Meu carinho e beijinhos
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