Tirou o capacete, passando a mão pela testa suada. - detestava capacetes, e ter que o utilizar, de cada vez que vistoriava uma obra, constituía um autêntico suplicio.
O inspector da obra, um homem já de meia idade, um par de quilos a mais e já algum cabelo a menos, era, por natureza, uma pessoa sorridente, daquelas que transmitem a sensação de acordar sempre com o pé direito, sem problemas na vida.
Claro que tinha problemas, todos têm problemas. Mas tirando o facto de nunca conseguir esticar o salário até ao fim do mês ou do seu clube favorito de futebol andar pelas ruas da amargura… é verdade, podia dizer que nem tinha problemas.
A saúde, essa era de ferro. A família, apesar de viver longe, reunia-se regularmente e quase todos os fins de semana se encontravam para passeios esporádicos ou churrascadas no quintal. A distância nunca fora impedimento.
Abriu a porta e entrou no edifício abandonado.
Não se considerava um sentimentalista… mas naquele momento sentiu um nó na garganta, como há muito não recordava.
A sua escola, a sua velha escola primária…
Como qualquer edifício antigo… chegara a sua hora. Ali seriam construídos mais alguns blocos de modernos apartamentos, um pequeno jardim, talvez até um parque infantil. A velha escola - há muito o sabia - ia ser demolida.
Nunca pensou poder vir a ser ele o responsável pela demolição, a tal pessoa que daria a ordem para alguém carregar no botão, dar a voz de partida para as bulldozer rasgarem as paredes e esventrarem os recantos que ele tão bem recordava.
Fora o mobiliário que já havia sido retirado, ainda existiam aqui e ali algumas cadeiras, mesas partidas, um velho mapa rasgado pendurado numa parede.
Percorreu o longo corredor que dava acesso às salas de aula. Primeiro, a sala da professora Susana, aquela mulher diabólica que parecia ter olhos nas costas, que via tudo e nada deixava escapar… as casas de banho, o gabinete da directora, a sala do professor Josué - bom sujeito, tinha saudades dele - e as portas de acesso ao pátio.
Que saudades…
E … aquela porta, ainda da mesma cor, aquele verde garrafa, a sala dos arrumos.
Deteve-se, um sorriso a bailar-lhe nos olhos.
Num flash instantâneo, o tempo recuou até uma manhã de Maio de um ano já longínquo, quando no meio do intervalo da manhã ele brincava no pátio. Teria oito? Talvez nove anos.
Ela chamava-se Luísa e tinha os caracóis mais sedutores que ele conhecera em toda a sua curta vida. Sentavam-se na mesma mesa, até partilharam algumas vezes o lanche no pátio.
Mas naquela manhã de Maio, o sol estava mais quente, as flores mais garridas, um aroma diferente pairava no ar.
E, no escuro da sala de arrumos, com a porta encostada e o coração aos saltos, ele beijara-a nos lábios pela primeira e única vez.
Um momento único, irrepetível como todos os primeiros momentos de qualquer coisa. Um momento que o acompanharia como uma lembrança… uma boa lembrança da sua infância.
Voltara a vê-la não há muito tempo, rodeada do marido e dos filhos, uma vida tão normal como a dele próprio.
Não fora nenhuma paixão, não fora nenhum amor, fora simplesmente um beijo.
Simplesmente?
Não, não tão simples.
Fora, isso sim… o primeiro beijo.