Sábado, 26 de Setembro de 2009

A batalha dos casacas azuis

 

 

 

Amanhecera.
Um dia como quase outro qualquer, não fosse aquele ser o dia mais importante das suas vidas - dissera o general.
Seria? O dia mais importante ?
Encostado à amurada de madeira, sorveu os últimos goles de café. No acampamento, a azáfama nervosa da véspera dera lugar a um silêncio pesado, do medo que antecede a batalha. Dali a pouco, algures numa planície de ervas altas, uma multidão de rostos anónimos lutaria até à morte, empunhando todas as armas, os punhos, o corpo, o coração.
Dentro da casa improvisada para os jovens cadetes casacas-azuis, ela rolou nua sobre os lençóis amarrotados, chamando-o para o leito.
Ele não podia. Ninguém podia.
Hoje é o dia - dissera o general - o dia que todos aguardaram… e já não é possível voltar atrás…
Washington tinha razão.
No final daquele dia, apenas uma bandeira flutuaria sobre o campo pejado de mortos e feridos. Fosse ela qual fosse, muitos pagariam com a vida o desafio de defender uma causa, certa ou errada. Mas existiriam causas certas? Ou erradas?
Imaginou o que se estaria a passar do outro lado da colina, no acampamento inglês. Os casacas - vermelhas. Estariam eles a sentir o mesmo medo, transportado pelo vento? Saberiam eles o destino que pendia sobre todos?
Não… certamente que não…
Deixou o olhar divagar pela copa das árvores, aquecidas pelos primeiros raios do alvorecer.
O olhar. Aquele olhar…
A juventude transformada, a infância adiada, o casamento à pressa consumado na véspera da grande batalha.
Ele pedira-lhe: esperarás por mim? - ela respondera: Não… irei contigo.
E fora.
O toque mais aguardado soou por todo o acampamento. Toque de reunir.
Pousou o prato e a chávena de café ainda meia. Sentou-se na beira da cama, a contemplar em êxtase as curvas nuas da sua paixão. Dormia.
Não a quis acordar.
Apertou o peito para que o coração não batesse tão forte, ela poderia ouvir. Beijou-a suavemente no pescoço, nas costas, nas coxas. Ela mexeu-se um pouco, sem acordar.
- Adeus, meu amor - ainda murmurou.
 
Saiu de rompante, para se reunir ao seu pelotão.
 
Não o sabia. Nem ela, nem nenhum dos outros do seu grupo. Quando a noite caísse, alguém lhe daria a noticia e ela acorreria ao campo de batalha, junto de todas as outras jovens viúvas, para lhe recolher o corpo e chorar a sua memória.
 
Mas a noite ainda não chegara.
Um último toque. Ordem de marcha.
O homem do tambor iniciou o seu marca-passo.
O jovem cadete olhou uma última vez para o acampamento, à procura de um rosto.
Aliviado, percebeu que ela não chegara a acordar.

 

 

publicado por entremares às 08:25
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11 comentários:
De Regina d'Ávila a 26 de Setembro de 2009 às 15:22
Não...porque hoje é sábado.
Não estava preparada para uma notícia desta...
Não poderia pedir “emprestado” os óculos cor de rosa, de ontem? Seria mais colorido..seria mais alegre..

Não....ele não estava ali..procurou, junto com todas as outras jovens viúvas, mas não...ela sabia...seu coração dizia que ele não estava ali..

Pronto..prefiro assim..Posso?
Lindo... Rolando, como sempre...
Doces beijos,
Tenha um ótimo fim de semana,
Regina d’Ávila.
De entremares a 26 de Setembro de 2009 às 22:27
Oi, Regina...

Nenhum deveria partir. Não deveria ser necessário, nem causas, nem missões.
Não de veriam existir viuvas. Nem viuvas jovens tampouco.

Beijos.
Rolando
De mfc a 26 de Setembro de 2009 às 17:46
A verdade magoa, mas alerta... por isso é que deve ser sempre dita
De entremares a 26 de Setembro de 2009 às 23:12
É verdade, Mfc.

Nem tudo são contos de final feliz.

Um abraço.
Rolando
De ellen a 26 de Setembro de 2009 às 21:29
Gostei da história!
E obrigada pela sua visita no meu Blog...há uns tempos que não aparecia :)

Beijinho para si
De entremares a 27 de Setembro de 2009 às 00:05
Oi, Ellen

Tens toda a razão, desculpa a ausência. E obrigado pela tua visita, também.

Beijos
Rolando
De Teresa a 26 de Setembro de 2009 às 22:34
Por mais que sejam justas, as guerras são sempre estúpidas. E nunca é a hora certa para morrer.
Salvaguardadas as diferenças, fez-me lembrar "O Menino de sua mãe".
De entremares a 27 de Setembro de 2009 às 00:07
Não, Teresa, nunca é hora certa para morrer.

É um tema que me aflige, apesar de já ter sido militar ( e felizmente nunca estive numa guerra )

E talvez por isso mesmo escreva sobre elas.

Beijos
Rolando
De Existe um Olhar a 26 de Setembro de 2009 às 22:45
Não é justo Rolando, sobretudo quando há por detrás um grande amor e penso que esse amor se eterniza quando se supõe um final anunciado por um motivo injusto e demasiado cruel.
Uma história comovente que nos faz pensar o quanto tudo é impermanente nesta vida.
Beijos
Manu
De entremares a 27 de Setembro de 2009 às 00:09
Ah, Manu....

Eu sabia que era essa a palavra que me faltava.
Impermanente.

Como tens razão... tudo é impermanente... e quando damos as coisas por certas, pode algo sempre surgir.

Beijos
Rolando
De Paula Raposo a 27 de Setembro de 2009 às 14:11
Gosto de te ler neste suspense que dás às palavras...beijos.

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