
Os ponteiros do relógio galoparam frenéticos, indiferentes ao silêncio, à imobilidade da paisagem. Nada, tão pouco a brisa, soprava.
Só aquele silêncio, pesado, filtrando os raios de sol através dos cortinados, eles próprios também imóveis.
E ela.
Encostada à parede de pedra, há muito que se confundira com ela.
Olhava... sem ver, imersa em pensamentos longínquos, como quem desfolha lentamente todos os capítulos da vida.
Nicole. Chamava-se Nicole.
Uma vida. Conforto. Luxo. Abundância.
Há quanto tempo tinha tudo... sem ter nada?
O olhar, fixo numa janela de luz imaginária, continuava a fitar o vazio.
O vazio. Vazia por dentro e por fora... era assim que se sentia. Vazia de emoções, vazia de sentimentos, vazia de vontade própria.
O seu palácio de conto de fadas era agora a sua prisão, uma prisão dourada. O seu príncipe, outrora encantado, transformara-se no seu carcereiro, as prendas e jóias, outrora dádivas de amor, eram agora as suas algemas, os seus grilhões.
Primeiro deixara de trabalhar; a seguir de procurar os amigos de antigamente. Finalmente, deixara de os receber, de conviver, de rir com era costume fazer. O seu príncipe encantado chamara a si as rédeas do seu respirar, do uso do seu corpo, das horas do seu acordar, do deitar, das cores da sua roupa, do seu cabelo, do seu cheiro, do seu perfume. Emprestara-lhe a sua alma... e nunca mais a conseguira receber de volta.
Uma lágrima silenciosa assomou-lhe aos cantos dos olhos. Imóvel, deixou que engrossasse, avolumasse sal e tristeza suficiente... até cair, estranhamente lenta, sobre o soalho envernizado.
Nicole tomara uma decisão.
Pedira a sua alma de volta, vezes sem conta. Obtivera mais jóias, mordomias, uma viagem de sonho.
Súbitamente, os olhos recuperaram o brilho. Ergueu-se lentamente e acercou-se da janela envidraçada.
Quando a abriu, um vento de outono bateu-lhe na face. Mínusculos, automóveis e peões, como formigas, deslocavam-se nos carreiros da avenida, muitos andares abaixo. Ficou a vê-los passar, sentindo a tentação do abismo.
Levou a mão ao bolso. Carregava ali o seu único pertence. Sem malas, sem roupa, sem calçado, sem jóias. Tudo o que verdadeiramente importava, cabia no bolso do casaco.
Tirou a pequena moldura do bolso.
Um rosto de criança sorriu-lhe, por detrás do vidro, uns grandes olhos castanhos e caracóis, muitos caracóis.
- É a cara da mãe... – sempre lhe haviam dito. – Não há como enganar...
Rumou à porta, sem olhar para trás.
Não queria dizer adeus a nada.
Decidira recuperar a sua alma de volta.
De
libel a 23 de Setembro de 2009 às 18:05
Olá Rolando, hoje o assunto não atrai as pipocas, vou mais num chocolate quente para o coração.
Esta história é comovente, mas ao mesmo tempo incomoda, no bom sentido...é claro. Faz pensar, exalta, dá raiva, agita, abana, emociona, mexe com muitos sentimentos ao mesmo tempo, e a racionalidade fica um pouquinho além de nós mesmos. Dá vontade de gritar a belos pulmões : Nada justifica esse empréstimo!!..Mas, infelizmente sabemos que não é assim. As pessoas são todas diferentes umas das outras, as oportunidades também, a força idem idem, a determinação aspas aspas, e por aí fora ...nascem Nicoles atrás de Nicoles que ficam deslumbradas com a possibilidade de uma vida facilitada, e não olham a meios para justificar fins e digo justificar, porque neste contexto adapta-se melhor, na entrega ou empréstimo da alma não se atinge um fim, mas justifica-se tal doação. Neste caso, sabemos que existe um filho, será por causa dele, será por motivo de doença?..Será porque apenas gosta de viver bem?..Será porque .... são apenas suposições....e então o que podemos dizer??...Nada...só mesmo quem passa pelas situações se pode pronunciar. É um assunto muito especial para ser comentado ou penalizado sem experiência, apesar dos nossos príncipios nos mostrarem outras direcções.
P.s. Beijinhos e olha..que amanhã é dia de pipocas outravez....já tirei bilhete...heimmmm....
Olá, Libel...
Tens razão, hoje é mesmo melhor o chocolate bem quente para o coração. Há dias assim. Dias em que nem sempre te consegues sentar em frente ao computador com um sorriso nos lábios.
Sei que não sou só eu, temos temos disso...
Beijos.
Rolando
( Traz as pipocas amanhã... )
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