Quarta-feira, 23 de Setembro de 2009

A mulher que emprestou a alma

 

 

 

Os ponteiros do relógio galoparam frenéticos, indiferentes ao silêncio, à imobilidade da paisagem. Nada, tão pouco a brisa, soprava.
Só aquele silêncio, pesado, filtrando os raios de sol através dos cortinados, eles próprios também imóveis.
E ela.
Encostada à parede de pedra, há muito que se confundira com ela.
Olhava... sem ver, imersa em pensamentos longínquos, como quem desfolha lentamente todos os capítulos da vida.
Nicole. Chamava-se Nicole.
 
Uma vida. Conforto. Luxo. Abundância.
Há quanto tempo tinha tudo... sem ter nada?
O olhar, fixo numa janela de luz imaginária, continuava a fitar o vazio.
O vazio. Vazia por dentro e por fora... era assim que se sentia. Vazia de emoções, vazia de sentimentos, vazia de vontade própria.
 
O seu palácio de conto de fadas era agora a sua prisão, uma prisão dourada. O seu príncipe, outrora encantado, transformara-se no seu carcereiro, as prendas e jóias, outrora dádivas de amor, eram agora as suas algemas, os seus grilhões.
 
Primeiro deixara de trabalhar; a seguir de procurar os amigos de antigamente. Finalmente, deixara de os receber, de conviver, de rir com era costume fazer. O seu príncipe encantado chamara a si as rédeas do seu respirar, do uso do seu corpo, das horas do seu acordar, do deitar, das cores da sua roupa, do seu cabelo, do seu cheiro, do seu perfume. Emprestara-lhe a sua alma... e nunca mais a conseguira receber de volta.
 
Uma lágrima silenciosa assomou-lhe aos cantos dos olhos. Imóvel, deixou que engrossasse, avolumasse sal e tristeza suficiente... até cair, estranhamente lenta, sobre o soalho envernizado.
 
Nicole tomara uma decisão.
Pedira a sua alma de volta, vezes sem conta. Obtivera mais jóias, mordomias, uma viagem de sonho.
Súbitamente, os olhos recuperaram o brilho. Ergueu-se lentamente e acercou-se da janela envidraçada.
Quando a abriu, um vento de outono bateu-lhe na face. Mínusculos, automóveis e peões, como formigas, deslocavam-se nos carreiros da avenida, muitos andares abaixo. Ficou a vê-los passar, sentindo a tentação do abismo.
 
Levou a mão ao bolso. Carregava ali o seu único pertence. Sem malas, sem roupa, sem calçado, sem jóias. Tudo o que verdadeiramente importava, cabia no bolso do casaco.
Tirou a pequena moldura do bolso.
Um rosto de criança sorriu-lhe, por detrás do vidro, uns grandes olhos castanhos e caracóis, muitos caracóis.
- É a cara da mãe... – sempre lhe haviam dito. – Não há como enganar...
 
Rumou à porta, sem olhar para trás.
Não queria dizer adeus a nada.
Decidira recuperar a sua alma de volta.
 

 

publicado por entremares às 07:00
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29 comentários:
De Sara a 23 de Setembro de 2009 às 09:31
Quantas vezes é preciso coragem para erguer a cabeça , encher o peito e olhar a vida olhos nos olhos... Por vezes é necessário e consegue-se!!
Quantas Nicoles " não andarão por aí espalhadas, á espera desse golpe de coragem?

O importante é ter a força necessária para erguer a cabeça , levantar os ombros, endireitar as costas e enfrentar o Mundo e a Vida de frente!!

Acredito que muitos leitores se terão identificado nas linhas e entrelinhas deste conto, a eles TODOS apenas desejo imensa coragem para erguerem os ombros...

Beijinhos
De entremares a 23 de Setembro de 2009 às 12:34
Oi, Sara...

Sabes? Depois de escrever aquelas linhas... fiquei com a sensação do incompleto, de não ter dito tudo. Esqueci-me que para as "Nicole"... às vezes até falta o tal ombro de uma pessoa amiga, só para falar.
De resto, concordo com tudo o que dizes...

Beijos.
Rolando
De Sara a 23 de Setembro de 2009 às 13:04
Um ombro amigo pode realmente fazer maravilhas!!!

Queria tb aproveitar para te agradecer a tua deixa ficou óptima (aliás como não seria de esperar outra coisa...)! Será que mais alguém se atreve a continuar a história?

http://mikashipapagaia.blogspot.com/2009/09/um-desafio-e-um-contra-desafio.html

Beijokas larokas

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