
Olhou cuidadosamente em redor. Ninguém.
Ao longe, os faróis amarelos dos automóveis continuavam a varrer a noite, como holofotes à procura do asfalto. Bem por cima, a estrutura de cimento tremia de esforço, de cada vez que os camiões carregados passavm sobre a estreita ponte.
Aquele era o local ideal.
Uma parede enorme, vazia, ainda virgem de traços, de riscos, de desenhos. Uma parede só para si.
Pousou as latas de spray no chão. Sentia-se inspirado.
Durante longos momentos, deixou-se ficar imóvel, já imaginando o resultado final que pretendia – um campo imenso e verde, nuvens brancas ao longe, talvez uma árvore solitária e flores vermelhas... sim, um manto de flores vermelhas, algumas amarelas, a cobrir uma planificie a perder de vista. Poderia até projectar alguns raios de sol, fazendo brilhar as gotas de orvalho na flor mais próxima... ou seria melhor pintar um nevoeiro mágico, reproduzindo a alvorada, com a copa da árvore a sobressair da névoa, qual gigante adormecido?
Decidido, atacou a parede vazia. Uma rasgo amarelo... outro verde... esqueceu tudo, mergulhou simplesmente na planicie imaginária coberta de flores silvestres.
- Alto... você aí...
Deteve-se estarrecido. Um par de faróis cegava-o de luz branca, iluminando a parede de cimento como um palco ainda nu, rabiscado de verde e amarelo. A policia.
- Aproxime-se... venha aqui e nada de tolices...
Obedeceu. Protegeu os olhos com uma das mãos, para conseguir não tropeçar no caminho.
- Senhor guarda... eu estava só...
- Você não sabe que é proibido? – e a voz do guarda não transmitia a menor emoção.
Claro que ele sabia. Há muito que era proibido. Por isso procurava sempre locais desertos, afastados de tudo. Pontes, vãos de escada, muros esquecidos de alguma casa em ruinas.
- Sei... mas eu estava sómente...
- Você vai pintar essa parede imediatamente... ou então vem connosco até à esquadra. O que prefere?
O outro agente aproximou-se, exibindo um par de algemas.
- Eu apago... eu apago...
Voltou à parede e pegou na lata de tinta amarela, começando a borrifar toda a superfície já anteriormente pintada.
- O que é que você está fazendo? Que cor é essa?
- Eu estou apagando, senhor guarda, vou já apagar...
- Páre. Páre. Mas o que é isso? Cor? Você está louco? Você não sabe que é proibido utilizar a cor? Ou você quer só ser preso, até já ser velho demais para tudo? É isso que quer? Cinzento, meu jovem... apague isso tudo imediatamente... pinte tudo de cinzento... JÁ!.
- Senhor guarda, mas é só...
- Jovem… cinzento... imediatamente... JÁ!
Pegou na lata de spray cinzento e voltou a borrifar toda a parede. Depois, olhos no chão, entregou todos os outros sprays aos guardas – o material proibido deveria ser imediatamente incinerado, principalmente as latas de tinta. Afinal de contas, naquele mundo cinzento, não era crime escrever o que quer que fosse nas paredes ou em qualquer outro local. Crime, verdadeiramente... era utilizar a cor.
- Jovem… veja se aprende, enquanto é tempo… a cor só dá problemas, cria-lhe problemas nessa sua cabeça… tenha juízo… o mundo é cinzento, é essa a lei… não queira fazer uma revolução está bem? As revoluções só dão confusão… vá… apague lá essa parede e vamos esquecer tudo isso…