
Era primavera.
Uma primavera de céus limpos de nuvens, com um sol tímido a espreitar as manhãs frias, fios de neblina ainda a escorrer pelas encostas da montanha.
Bem no centro do vale, os campos de flores silvestres disputavam as margens dos ribeiros, alimentados pelo degelo das neves.
As águas crepitavam azuis, aqui e ali arrastando ainda pequenos cristais de gelo, rumo ao lago.
Malmequeres, narcisos, fumarias, violetas bravas, miosótis… reproduziam naturalmente uma imensa aguarela de cores garridas, polvilhada por libelinhas e borboletas, esvoaçando em danças ao acaso.
O malmequer branco abanou ao de leve as suas pétalas, em jeito de cumprimento.
Bem ao seu lado, um malmequer amarelo ondulava ao sabor da brisa.
E às vezes… simplesmente às vezes, as suas pétalas tocavam-se, entrelaçavam-se… até o vento as separar de novo.
- Como custa… não te poder tocar, não te poder abraçar… -dizia o malmequer branco.
E a malmequer amarela agitava as pétalas, num sorriso de flor.
- Somos malmequeres… o movimento não faz parte da nossa natureza … só o vento nos pode tocar…
O malmequer branco queria ser como o vento.
- Mas eu queria tanto tocar-te, sempre… e não depender do vento para me empurrar contra ti… queria que fosses tu a receber-me nas tuas pétalas, e não que fosse o vento a empurrar-te até mim…
A malmequer amarela não lhe respondeu. Dissesse o que dissesse, nada mudaria a essência das coisas. Só a brisa que descia das montanhas poderia abraçá-la, fazê-la rodopiar, abrir e fechar as pétalas douradas. O malmequer branco, indefeso perante a imensidão dos elementos, nada mais poderia fazer senão presenciar a dança dos insectos em torno da sua amada, o soprar do vento caprichoso, que tanto o aproximava como o afastava dela… mais e mais.
- Meu amor… farias um sacrifício por mim? … Por nós?
Ela faria. Tudo o que ele lhe pedisse. Tudo o que vergasse a natureza e os mantivesse juntos, fizesse vento, chuva, neve ou sol.
- Faço sim… faço tudo…
Quando o dia seguinte amanheceu, nada mudara no vale. As águas continuavam a deslizar das montanhas, as flores repetiam o eterno bailado aos caprichos do vento, os raios de sol desfaziam pacientemente os últimos fios de nevoeiro.
Tudo permanecia sereno, silencioso, adormecido.
Excepto talvez… um par de malmequeres.
Uma e outra vez a brisa soprou mais forte, tentando separá-los. Parava, voltava a soprar, soprava novamente, mudava a direcção, aumentava, diminuía… mas os malmequeres continuavam unidos, balouçando como um só corpo, como uma só sombra, indiferentes ao ciúme do vento.
Junto aos caules, semi enterradas na terra húmida, ainda se viam as pétalas que, durante a noite, os dois amantes haviam arrancado um ao outro, de tal forma que quando soprou a primeira brisa da manhã e o malmequer branco foi empurrado contra a malmequer amarela… não mais se soltou. As pétalas em falta de um correspondiam às pétalas do outro, encaixando na perfeição umas nas outras.
As lágrimas de dor, vertidas no sofrimento da mutilação nocturna transformaram-se num choro de alegria, à medida que o vento acalmava, incapaz de separar as duas flores.
Continuava a ser primavera.
Para os dois malmequeres, talvez quase verão.