Segunda-feira, 14 de Setembro de 2009

Primavera das Flores

 

 

Era primavera.
Uma primavera de céus limpos de nuvens, com um sol tímido a espreitar as manhãs frias, fios de neblina ainda a escorrer pelas encostas da montanha.
Bem no centro do vale, os campos de flores silvestres disputavam as margens dos ribeiros, alimentados pelo degelo das neves.
As águas crepitavam azuis, aqui e ali arrastando ainda pequenos cristais de gelo, rumo ao lago.
Malmequeres, narcisos, fumarias, violetas bravas, miosótis… reproduziam naturalmente uma imensa aguarela de cores garridas, polvilhada por libelinhas e borboletas, esvoaçando em danças ao acaso.
O malmequer branco abanou ao de leve as suas pétalas, em jeito de cumprimento.
Bem ao seu lado, um malmequer amarelo ondulava ao sabor da brisa.
E às vezes… simplesmente às vezes, as suas pétalas tocavam-se, entrelaçavam-se… até o vento as separar de novo.
 
- Como custa… não te poder tocar, não te poder abraçar… -dizia o malmequer branco.
E a malmequer amarela agitava as pétalas, num sorriso de flor.
- Somos malmequeres… o movimento não faz parte da nossa natureza … só o vento nos pode tocar…
O malmequer branco queria ser como o vento.
- Mas eu queria tanto tocar-te, sempre… e não depender do vento para me empurrar contra ti… queria que fosses tu a receber-me nas tuas pétalas, e não que fosse o vento a empurrar-te até mim…
A malmequer amarela não lhe respondeu. Dissesse o que dissesse, nada mudaria a essência das coisas. Só a brisa que descia das montanhas poderia abraçá-la, fazê-la rodopiar, abrir e fechar as pétalas douradas. O malmequer branco, indefeso perante a imensidão dos elementos, nada mais poderia fazer senão presenciar a dança dos insectos em torno da sua amada, o soprar do vento caprichoso, que tanto o aproximava como o afastava dela… mais e mais.
- Meu amor… farias um sacrifício por mim? … Por nós?
Ela faria. Tudo o que ele lhe pedisse. Tudo o que vergasse a natureza e os mantivesse juntos, fizesse vento, chuva, neve ou sol.
- Faço sim… faço tudo…
 
 
Quando o dia seguinte amanheceu, nada mudara no vale. As águas continuavam a deslizar das montanhas, as flores repetiam o eterno bailado aos caprichos do vento, os raios de sol desfaziam pacientemente os últimos fios de nevoeiro.
Tudo permanecia sereno, silencioso, adormecido.
Excepto talvez… um par de malmequeres.
 
Uma e outra vez a brisa soprou mais forte, tentando separá-los. Parava, voltava a soprar, soprava novamente, mudava a direcção, aumentava, diminuía… mas os malmequeres continuavam unidos, balouçando como um só corpo, como uma só sombra, indiferentes ao ciúme do vento.
Junto aos caules, semi enterradas na terra húmida, ainda se viam as pétalas que, durante a noite, os dois amantes haviam arrancado um ao outro, de tal forma que quando soprou a primeira brisa da manhã e o malmequer branco foi empurrado contra a malmequer amarela… não mais se soltou. As pétalas em falta de um correspondiam às pétalas do outro, encaixando na perfeição umas nas outras.
 
As lágrimas de dor, vertidas no sofrimento da mutilação nocturna transformaram-se num choro de alegria, à medida que o vento acalmava, incapaz de separar as duas flores.
 
Continuava a ser primavera.
Para os dois malmequeres, talvez quase verão.

 

publicado por entremares às 17:26
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11 comentários:
De Recados da Lua a 14 de Setembro de 2009 às 20:26
Lindo conto....
Gostaria de ser esta flor...e viver bem juntinha do meu amado...eternamente...
Muito bonito seu blog...
Parabéns!!!
De entremares a 14 de Setembro de 2009 às 20:37
Oi, Recados da lua...

Fico feliz que tenhas gostado. E tenho a certeza que a estratégia dos malmequeres também deve resultar para os humanos...

Volta sempre.
Rolando
De Existe um Olhar a 14 de Setembro de 2009 às 21:34
Olá Rolando
A história passa-se com dois malmequeres, mas podia perfeitamente acontecer com duas pessoas que se amam, mas a força do destino teima em separá-las.
O final é a prova ,que mesmo entre flores, a força do amor vence todas as barreiras.
Beijos
Manu
De entremares a 14 de Setembro de 2009 às 22:58
Oi, Manu...

É uma mensagem de optimismo, e acredito mesmo nela... quando se quer... consegue-se.

Beijos.
Rolando

PS. Os blogs do sapo levaram todos um apagão. Coisa esquisita...
De Paula Raposo a 14 de Setembro de 2009 às 21:49
Uma deliciosa história de amor.
Assim deveria ser com os humanos. Beijos.
De entremares a 14 de Setembro de 2009 às 22:59
Ah, Paula...

Temos que ir tentando, não é.?.. sempre a tentar...Se os malmequeres conseguem, nós humanos também iremos conseguir...

Beijos
Rolando
De Jorge Soares a 14 de Setembro de 2009 às 23:02
Quando queremos mesmo algo, quando amamos mesmo alguém, não há vento nem tempestade que nos faça quebrar a vontade... a vida nem sempre é assim, mas na primavera todos os sonhos e esperanças são válidas....

Um texto muito bonito, obrigado
Jorge Soares
De entremares a 15 de Setembro de 2009 às 08:54
Olá Jorge...

É verdade, a vida nem sempre é tão linear, tem muitos "se", tem muitas curvas... mas o objectivo, lá no fim do arco-iris... continua o mesmo, não é?

Um abraço
Rolando
De lis a 14 de Setembro de 2009 às 23:22
Setembro é lindo porque inicia a primavera.Apesar das estações invertidas nos nossos paises , penso que vai chegar a primanvera por aí também ,ou nao?
Fiquei
pensando que o vento é mesmo um desmancha prazeres, despetala os malmequeres , dessarruma o cabelo das meninas e deixa inquieto os passarinhos.
Lindo,lindo "esse eterno bailado das flores , os raios de sol chegando" , ainda bem que vento se acalmou rs
Uma bela semana florida também com flores de lis e abraços

De entremares a 15 de Setembro de 2009 às 08:55
Oi, Lis...

Aqui... o verão está partindo, está chegando o outono. Vem o vento, as folhas caem... mas no meio das folhas caídas, existe sempre espaço para os malmequeres...

Beijos.
Rolando
De DyDa/Flordeliz a 15 de Setembro de 2009 às 12:09
Fiquei dividida se eram as flores que embelezavam a montanha ou se a montanha embelezava as flores. A imagem é uma delícia para os sentidos.
Quem não gostaria fechar os olhos, dilatar as narinas, inspirar e gritar ao abri-los: Cheguei ao paraíso e cheira tão bem (mesmo com uns espirros ).
Depois...
És positivo e transformas a tristeza em fantasia.
Uma maravilha!

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