
- É inevitável, não é?
A pequena flor encolheu as pétalas amarelas, naquele jeito tão característico de demonstrar resignação.
Bem ao seu lado, o enorme paredão de cimento estremecia, rangendo dorido sob a enorme pressão da água que, do outro lado, se avolumava mais e mais. Um gotejar inocente, de uma fissura bem na base no paredão, depressa se transformou num fio de água, para logo engrossar e brotar violente, rasgando o cimento à sua volta.
O paredão - ela sabia-o bem - estava condenado; era só uma questão de horas, talvez minutos… até a enorme bacia de água acumulada do outro lado rasgar as entranhas do cimento e projectar-se pelo vale, levando tudo à sua frente; os arrozais, as palmeiras, a aldeia…
O que poderia uma simples flor silvestre fazer, senão assistir num silêncio impotente à destruição de todo o vale? Nada, simplesmente nada.
Mais a norte, as encostas despidas de árvores desabavam sucessivamente em deslizamentos - o degelo da primavera fazia o resto. Ano após ano, as cheias da primavera aumentavam a destruição de um canto da floresta que já fora virgem, mas que agora mais se assemelhava a uma manta de retalhos queimados, com o barro sem vida exposto ao sol.
Os habitantes da aldeia pouco mais podiam fazer do que reforçar com algumas pedras o enorme paredão. Esforço inglório. A fúria das águas, empurradas pela mão do homem, devastadora, não se compadeceria com nada.
Era só… uma questão de minutos…
- Porque queres salvá-los?
A pequena flor olhou à sua volta. Muito a custo, descobriu a origem da voz.
- Olá… pequeno grão de areia… desculpa, não reparei que falavas comigo…
- Eu percebi, flor… mas não pude deixar de perceber o teu sofrimento… por esses aldeões…
- Tens razão, grão de areia… revolta-me nada poder fazer para os ajudar… porque daqui a pouco, sem aviso… as águas vão jorrar, destruindo toda a aldeia e ceifando vidas… vidas inocentes…
- Mas sabes, flor… são os homens os culpados por tudo isto…~
- Eu sei, grão de areia, eu sei… - e ia agitando as pétalas amarelas - mas não estes homens, não esta aldeia… estes são simplesmente… as vítimas.
O grão de areia não lhe respondeu. A natureza sempre possuira um dom especial para restaurar o equilíbrio, a harmonia. A natureza não conhecia o significado da palavra "vítima", isso não passava de uma mera interpretação humana das leis universais que regem o universo. Tudo se resumia afinal… a uma procura de equilíbrios, a uma paz efémera entre os opostos, entre as forças da criação e da destruição.
- Podes fazer alguma coisa para os salvar? - perguntou-lhe a flor, esperançada.
O grão de areia devolveu-lhe o olhar, brilhante de excitação.
- Posso. Não devo… mas posso.
- Podes? Como podes tu ajudar? Não passas de um ínfimo grão de areia…
- Eu sei, flor… mas eu sou um grão de areia especial. Aliás, todos somos especiais, sabes? Só que nem todos têm consciência da sua importância…
- Não te compreendo, grão de areia…
- Eu sei, flor, eu sei… mas não te preocupes, já vais compreender…
Metodicamente, o pequeno grão de areia inclinou-se sobre si próprio, apoiado na aragem; para a frente, para trás… novamente para a frente, outra vez para trás…
Finalmente, moveu-se.
Um milímetro, talvez menos.
- Tens mesmo a certeza, flor? Queres salvá-los?
A flor encolheu novamente as pétalas.
- Quero sim, grão de areia. Se o com seguires… salvá-os…
Mais um milímetro. E outro. Para o seu lugar, prontamente escorregou um outro grão de areia, e a seguir ainda outro. Uma pequena pedra cinzenta aproveitou o espaço livre e rebolou prontamente, num equilíbrio mais estável. E depois outra, e ainda mais outra, ligeiramente maior.
Segundos depois, toda a base da montanha dava de si, com enormes blocos de pedra a despenhar-se das alturas, numa avalanche incontrolável de cascalho, lama e troncos retorcidos, arrancados pela raiz. Num estrondo ensurdecedor, projectaram-se sobre o paredão, reforçando a estrutura e tapando todas as fissuras com um lençol de lama e pedras.
Finalmente, o pó assentou.
A aldeia, ao fundo do vale, continuava incólume, alheia a todos estes acontecimentos.
Uma última pedra resvalou ainda, rodopiando sobre as outras, até se deter sobre o local onde, bem pouco tempo antes, existira uma pequena flor silvestre, de pétalas amarelas.
E sobreveio de novo o silêncio, entrecortado pelo murmurar das águas do lago.
Como unidos podemos ser tão fortes! Gostei muito. Beijos.
Oi, Paula...
Como é verdade... sabes? Sempre quis escrever alguma coisa sobre a força tremenda das pequenas coisas... e daí... o lembrar-me do grão de areia, minúsculo e tão frágil...
Beijos.
Rolando
De
lis a 16 de Agosto de 2009 às 17:20
Lindo texto.deu pra sentir exatamente como um pequenino grao de areia pode desfazer barreiras quase impossiveis à nossa vista, se tivermos consciencia da nossa importância no mundo. Dificil isso.Verdade mesmo é que sempre pensamos : sózinha nao posso nada! só eu? aí está a lição de que se iniciarmos qualquer processo, deslanchamos outros e outros...
Fica tranquilo Rolando, não foi cobrança, apenas uma cutucadinha rsrsrs ,coloquei o endereço no URL, será que vai dar certo? tem coisas aqui, que nao sei executar direito.Um abração .
Oi, Lis... já lá fui, finalmente...
Como estava dizendo à Paula, penso muitas vezes nos grãos de areia, quando estou na praia, passeando e apanhando pedras... penso na pequenez e na ordem das coisas, na súbtil importância de todas as coisas pequenas... e no não haver impossíveis... quando unimos esforços.
Beijos
Rolando
De
Infiel a 16 de Agosto de 2009 às 21:26
adoro as tuas historias, sempre tão plenas de grandes significados, mesmo vindo de coisas tão minusculas
obrigado :)
Obrigado, Infiel... e tens razão, são só coisas minúsculas, é verdade.
Mas sempre achei que até os grãos de areia poderiam ter uma história para contar...
:)
A amizade e a força que temos dentro de nós, tão enormemente mostrados nesta história. =)
Olá, Patricia...
As fábulas ( chamem-lhes assim ) são só um escape, não é? Uma forma mais solta de escrever pequenas coisas... sobre nós mesmos...
Uma óptima semana para ti...
Rolando
Grande grão de areia!
Mas as barrarrens são a morte dos rios.
Pois é, Espumadosdias... que grão de areia...
Teremos sempre que destruir algo para construir algo?
Assim poderá ser a pergunta ( uma das muitas ) a que muito dificilmente se responderá...
Obrigado pela visita.
Fica bem...
De Óscarito a 17 de Agosto de 2009 às 17:34
Para um "simples" grão de areia até que se portou bem.
Mas tinhas mesmo que soterrar a flor de pétalas amarelas?
É verdade que acontece muitas vezes uma boa intenção resultar num prejuízo a quem a pratica; mas neste caso não bastava deixar que lhe caíssem umas pétalas?
Bem, com a tua infinita sabedoria literária fico esperançado que a faças germinar...
Abraço/Óscar
Oh, Óscar... tu não fazes as coisas por menos...
Mas a brincar, a brincar, lá vais dizendo as verdades, não é?
Pois... às vezes as boas acções acabam prejudicando quem as pratica, é verdade...
Há uma palavra ( creio ) no dicionário para isso...
ALTRUÍSMO
Um abraço.
Rolando
De Óscarito a 17 de Agosto de 2009 às 20:15
Tá bem, que seja esse tal ALTRUÍSMO!
Ajudar sem esperar uma recompensa, etc. e tal, tudo bem e eu não discordo; são precisas muitas flores de pétalas amarelas; muitas mesmo!
Mas sem ser "lixado" na primeira "cavadela"!!!!!
Continuo confiando na tua sabedoria literária (e altruísta) para que as pétalas voltem; mesmo porque outras aldeias vão necessitar de ajuda!
Abraço/Óscar.
De
mfc a 17 de Agosto de 2009 às 20:31
A importância decisiva que cada um de nós tem na solução dos problemas comuns.
Um bonita alegoria.
Olá, mfc... como somos pequenos, não é?
E no entanto, como a participação de cada um é sempre ... DIFERENTE... E única.
É verdade.
Uma óptima semana.
De
SAM a 17 de Agosto de 2009 às 21:44
Gostei do texto que deixaste como comentário e muitissimo deste também. Reflexões e ensinamentos, em textos exemplares e bem escritos. Obrigada!
Beijos e linda semana!
Oi, Sam
Obrigado por teres vindo espreitar o "entremares".
Fica à vontade...
Uma óptima semana para ti.
Rolando
Tive pena da pequena flor silvestre, confesso.
Por vezes é necessário sacrificar muita coisa para se atingir um bem maior.
Tantas vezes menosprezamos a força dos mais pequenos e no entanto a prova que para a natureza nada é impossíve,l está neste texto maravilhoso que escreveste.
Beijos
Manu
Pois é, Manu... e foi a flor que despoletou todo o processo...
Que te hei-de dizer? Quase que me sinto "culpado" por ela jazer debaixo de todas as pedras e lama... com que salvou aquela aldeia...
Esta seria, certamente, a minha oportunidade para de uma forma singela, ali colocar algumas pedras... dedicadas a uma flor desconhecida...
Beijos.
Rolando
Esta história é muito bela e encerra ensinamentos espantosos. Gostei de verdade. Sim, valeumesmo a pena ter navegado e encontrado o meu blog para que pudesse depois encontrar o seu. O Universo prega destas partidas.
Um abraço,
Maria Emília
Obrigado, Maria Emilia...
É verdade, os acasos trazem-nos a estas esquinas assim, sem nada de premeditado. Fico feliz que tenha apreciado estar aqui tanto como eu gostei de descobrir o "seu canto"...
Uma óptima semana para si.
Rolando
Comentar post