Esta é a história do Gil e da Deb, duas personagens especiais de um mundo vulgar, numa qualquer pequena aldeia do interior.
O Gil era uma garoto franzino, de cabelo cor-de-cenoura e olhos castanhos, as maçãs do rosto pintalgadas de sardas que lhe davam um ar divertido, não fosse o facto do Gil… nunca se rir. Na verdade o Gil nunca - uma série de coisas banais. O Gil não ria, o Gil não falava, não se penteava, não se vestia, não jogava à bola nem subia às árvores, como todos os rapazes da sua idade.
O Gil era simplesmente… diferente. Autista.
Algures… bem lá no fundo daqueles olhos castanhos, uma chama semi-apagada vegetava tranquilamente ao longo dos dias, semana após semana, nos seus quase nove anos de idade.
O Gil ocupava o seu tempo construindo castelos e torres, utilizando peças de madeira muito semelhantes a Lego; construía, destruía, e em seguida construía novamente.
A Deb era… extrovertida, ruidosa, com uma curiosidade insaciável. Adorava caixas fechadas, jogos de bola, o mar e a praia. Adorava chapinhar na relva molhada do jardim, correr à chuva e por vezes, até mergulhar na piscina.
Não podiam ser, portanto, mais diferentes estas duas personagens especiais de um mundo vulgar, naquela pequena aldeia perdida no interior…
- Lídia… que prazer em ver-te… Olá, Deb…
As duas irmãs abraçaram-se, como se não se vissem há muitos anos.
- E o meu Gil? O meu sobrinho preferido… como está ele?
A mãe do Gil encolheu os ombros, naquele jeito que já se habituara a fazer quando alguém da aldeia lhe perguntava pelo filho.
- O Gil… está na mesma… talvez um pouquinho mais magro, mas é do calor, sabes? Anda com pouco apetite…
- Já lhe vou dar um grande beijo… mas conta-me… o teu Manel, como anda? E as tuas aulas de ginástica? Tu não escreves, nem telefonas, não sei nada de ti, és uma irmã desnaturada…
Sentaram-se as duas na sala, entre sacos de compras, a matar saudades.
Lídia, a mais nova das duas, vivia longe, na capital, dividida entre o trabalho no banco e as suas batalhas como activista do Greenpeace.
Sempre que podia, pegava no carro e lá rumava à aldeia natal, matar saudades, reconfortar a irmã, contar anedotas, meter-se na cozinha e experimentar pratos extravagantes. Quando resultavam… hum… que delicia. Quando não resultavam… bem, ao menos sobrava assunto para as conversas de serão, frente à lareira ou nos degraus da porta de entrada.
Deb, entretanto, já desaparecera.
Algures a meio de dois goles de chá, um ruído estranho fez-se ouvir, vindo do andar de cima. Fazia lembrar uma gargalhada, ou um grito, ou uma mistura dos dois.
As duas irmãs trocaram um olhar aflito, sobressaltadas.
- O Gil… o que lhe aconteceu?
Correram sala fora, galgando as escadas em direcção ao quarto do pequeno Gil.
Teria caído? Estaria magoado?
Num ápice, alcançaram a porta do quarto. Os gritos - não havia dúvida - provinham dali, mas algo de estranho… de muito estranho mesmo, se deveria estar a passar… pois o Gil não falava, nunca falara… e muito menos gritaria.
Estacaram à porta.
No centro do quarto, rodeado de peças de madeira em completa desordem, o pequeno Gil ria perdidamente, tentando fugir desajeitadamente às lambidelas que Deb, generosamente, lhe ia distribuindo por todo o rosto.
Ele afagava-lhe o pelo macio e comprido, o focinho pontiagudo de raposa. Ela, deliciada, rebolava-se ao seu colo, mordiscava-lhe os colarinhos da camisa, puxava-lhe o cinto das calças.
E o Gil ria, ria, ria…
A Deb - esquecera-me de vos dizer - era uma cadela collie, uma daquelas pequenas "Lassie", brincalhona e ternurenta… a substituta do filho que Lídia nunca conseguira ter…
Ficaram as duas ali à porta - boquiabertas - enquanto a Deb, imperturbável, continuava a desafiar a pequena chama da vida escondida do seu novo amiguinho…
E foi assim que Gil e Deb, duas personagens especiais de um mundo vulgar, numa pequena aldeia do interior… se conheceram.
. Sinais
. O rei morreu... Viva o re...
. Fé