Terça-feira, 4 de Agosto de 2009

Um cálice de vinho do Porto

 

- Passou muito depressa, não passou? Até parece que foi ontem…
 
Ele contemplou-a com admiração. O tempo passara depressa? Certamente que sim.
O tempo galopara… transformando os dias em semanas, os meses em anos. E assim, de uma forma leve, vinte e cinco anos haviam decorrido desde e primeira ( e também última ) vez que haviam pernoitado naquele mesmo quarto de hotel, numa ruela secundária de Vila Nova de Milfontes.
Corria então Agosto de 1984, um verão quente, a pacata vila do litoral alentejano invadida por turistas de pé descalço, com muita música no ar, cerveja sobre as mesas e grupos de escuteiros de mochilas às costas, rumo aos acampamentos de verão.
Vinte e cinco anos…
Ela pareceu ler-lhe os pensamentos.
- … tu também não estás mais novo… - lá foi dizendo baixinho.
Era verdade.
Nenhum dos dois estava mais novo. Ela engordara uns quilinhos, arranjara algumas rugas de estimação, umas dores nas pernas e meia dúzia de cabelos brancos, que lhe emprestavam um ar sereno, tranquilo mesmo. Ele deixara crescer a barba, passara a usar o cabelo sempre muito curto e desde que deixara de fumar, engordara horrores.
As três filhas, quais gotas de água, eram a imagem da mãe. Bem… mais a imagem, que o temperamento puxava mais ao pai, conciliador e rezingão, criativo… e preguiçoso, também.
Ele desligou o telemóvel e pousou-o sobre a mesinha de cabeceira.
- Hoje não estamos para ninguém… - e sorria, olhando para ela pelo canto do olho. - queres que chame o serviço de quartos ?
Ela soltou um suspiro de admiração.
- Temos direito a serviço de quartos? Mas que luxo… da primeira vez apontaram-nos as escadas e disseram-nos… olhem, é por ali…
- Ora… mas isso foi da primeira vez… ainda éramos uns gaiatos, hoje já temos assim um aspecto… mais adulto, diria eu.
Ela concordou.
- Está bem… chama lá o serviço de quartos.
- Apetece-te alguma coisa de especial? Alguma bebida, ou aperitivo, ou…
Os olhos dela ganharam um brilhozinho especial.
- Olha… seria giro… repetirmos a primeira vez… o que bebemos nós naquela noite, lembras-te ? Era um licor, ou qualquer coisa doce, não era?
- Era vinho do Porto…  bebemos dois cálices de vinho do Porto…
- Porto… foi isso mesmo, já me recordo… pois olha, é isso que me apetece agora… um cálice de vinho do Porto…
Ele sorriu, bem disposto.
- Vamos já tratar disso, minha senhora…
 
- Os senhores desejam mais alguma coisa?
Ele fez-lhe sinal que não, que estava tudo bem.
- Então tenham uma muito boa noite… e muitos parabéns...
E saiu, com um sorriso matreiro.
 
- Ouve lá, João… não te pareceu que a funcionária do hotel estava muito… nem sei como dizer… muito esquisita?
Ele respondeu-lhe do outro extremo do quarto.
- Ora… talvez estivesse só bem disposta. Também tem direito, não?
- Sim, sim… mas tu nem reparaste? Até nos desejou parabéns e tudo… como é que ela saberia…
Olhou para o tabuleiro com a garrafa de vinho do Porto, os cálices e o ramo de flores.
- João…
Ele aproximou-se, já sem sapatos.
- Sim, Maria… o que foi?
- João… ela deixou-nos uma garrafa já aberta… olha para isto… já está a meio…
Ele sentou-se ao pé dela.
- Oh, Maria… e então? Talvez fosse a última… isso não é importante, pois não?
Ela enrugou a testa, naquela expressão que lhe era tão característica, quando sentia que estava a ser enganada… e não sabia como.
Voltou a olhar com mais atenção para a bandeja, os cálices, o arranjo de flores, a garrafa… a garrafa era estranha, familiar… e o que era aquilo ali no meio… parecia que tinha alguma coisa escrita…
Pegou na garrafa e estremeceu.
- João… olha para isto…
E apontava com o dedo para uns rabiscos no rótulo… um coração desenhado a tinta, com as letras M e J, uma de cada lado.
 
E então… lembrou-se.
 
O marido ficou a olhar para ela, um sorriso matreiro, deliciado com a situação.
Fizera bem em guardar aquela garrafa, no sótão da casa, durante todo aquele tempo. Vinte e cinco anos atrás… fora aquela a garrafa de vinho do Porto que lhes haviam levado ao quarto, aquele mesmo quarto, na noite de núpcias. Haviam bebido dois cálices cada um, trocaram juras de amor e com a esferográfica do hotel, ela desenhara um coração com as iniciais deles no rótulo da garrafa…
 
Ela olhou para ele, comovida.
- Tu já tinhas isto tudo planeado, não tinhas?
Ele acenou afirmativamente.
 
- Mas, minha querida… só podemos beber mais dois cálices, está bem… é que depois… vou ter que esconder novamente a garrafa…. e só a vais ver de novo daqui a … sei lá… talvez mais uns vinte e cinco anos, o que achas?
 
Ela atirou-se-lhe ao pescoço, um abraço apaixonado.
 
- João Maria Mendes da Conceição…. vem aqui imediatamente aos meus braços. Já.

 

publicado por entremares às 15:47
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26 comentários:
De Armando Correia a 4 de Agosto de 2009 às 16:08
Eu acho a sua capacidade descritiva uma coisa absolutamente fantástica.
Dá gosto ler.
Um abraço.
De entremares a 4 de Agosto de 2009 às 16:57
Obrigado, Lovenox, por toda a simpatia.

Sabes... esta vida está cheia de histórias, não é? É quase como estarmos assim à volta da fogueira, e enquanto um conta... os outros enroscam-se nas mantas, a ouvir...

Um abraço. Volta sempre.
Rolando
De Sofia Diniz a 4 de Agosto de 2009 às 16:45
Um espectáculo!
Emucionou-me...
Parabéns pela sua escrita.
De entremares a 4 de Agosto de 2009 às 16:59
Oi, Sofia... obrigado.
Bemvinda à fogueira destes pequenos contos...

Até já...
De Sofia diniz a 4 de Agosto de 2009 às 16:47
emocionou-me, assim é que é...fugiu-me o dedo...
De DyDa/Flordeliz a 4 de Agosto de 2009 às 16:56
Eu não sei se é verdade, não sei se é mentira?!...
Se é verdade é de uma doçura sem fim!
Se é mentira é doce como o vinho do Porto!
PARABÉNS porque conseguiu transformar cada gesto em palavras.

De entremares a 4 de Agosto de 2009 às 17:02
Olá, Flordeliz...

Acertaste em cheio. O que é importante é que toque em cada um... à sua maneira; tenha sido verdade ou mentira, cada um pode rever-se naquele quarto de hotel... e reescrever a "sua" própria história...

Beijos
Rolando
De Pássaro do Atlântico a 4 de Agosto de 2009 às 16:58
Realmente vc é um grande escritor, não sou muito de fazer média, mas lendo alguns dos seus textos, lhe dou parabéns...abraços
De entremares a 4 de Agosto de 2009 às 17:04
Obrigado, amigo, palavras reconfortantes...

Seja bemvindo, sente-se junto da fogueira, pegue um café.
Estamos todos "batendo papo" e contando histórias por aqui...

De Existe um Olhar a 4 de Agosto de 2009 às 19:23
Apeteceu-me depois de ler o que escreveste fazer um brinde.
Vinho do Porto, champagne, um licor...não importa... quero brindar ao teu talento e á capacidade que tens em transformar pequenos momentos em histórias repletas de ternura.
Já reparei que nem mesmo o nevoeiro e frio da Foz do Arelho te impedem de soltar a imaginação e dar asas ao que te vai na alma.
Que amanhã o sol brilhe!
Beijos
Manu
De entremares a 4 de Agosto de 2009 às 19:32
Oi, Manu... nem te vi chegar ( foi do nevoeiro, tenho a certeza ).

Vá, brindemos.
Um gole por todos os que aqui andam, cada um com as suas histórias, cada um com as suas peripécias...
Afinal de contas, o que mais leva a gente desta vida, senão os amigos?

Beijos.
Rolando
De Lis a 4 de Agosto de 2009 às 20:37
Seria esse Joao o último dos romanticos? gestos que são raros nessa vida moderna . Muito lindo, muito gostoso de ler.Adorei. Vocé é mesmo um excelent cronista o, contador de estórias , poeta , diria.
Abraços
De entremares a 5 de Agosto de 2009 às 17:48
Oh, Lis... espero que aquele João não seja o último dos romanticos... faz falta gente assim, torna a vida mais colorida...mais doce.

Um abraço.
De marta a 4 de Agosto de 2009 às 23:33

gostei. mais uma vez :) íssimo.
De entremares a 5 de Agosto de 2009 às 17:49
Oi, Marta... como no teu post... Homens perfeitos?

Bjs.
De gilmara a 4 de Agosto de 2009 às 23:47
Olá!
Tem um selo la no blog pra vc!!
Abraços!!
De entremares a 5 de Agosto de 2009 às 17:52
Oi, Gilmara, obrigado pelo selo. Vou já "colocar na carta" para seguir viagem...

Beijos.
Rolando
De neli araujo a 5 de Agosto de 2009 às 03:12
Caro Rolando,

Gosto demais da forma como escreves! Parabéns!

Se é verdade, então felicito-os pelas bodas; se é ficção, parabéns também, pela delicadeza ao abordar situação que para muitos não passaria de corriqueira...

Saber valorizar estes "momentos" é uma característica sua que admiro muito!

Um abração,
Neli
De entremares a 5 de Agosto de 2009 às 17:55
Olá, Neli... obrigado pelo apoio...

As histórias acabam sendo um bocado de verdade acrescentado de pormenores... só para que cada um possa ler a história "à sua maneira"... e imaginar o melhor fim para ela...

Nós todos somos as histórias. E de vez em quando, surge-me só a ideia de retratar ... o dia-a-dia de alguém...

Beijos.
Rolando

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