- Passou muito depressa, não passou? Até parece que foi ontem…
Ele contemplou-a com admiração. O tempo passara depressa? Certamente que sim.
O tempo galopara… transformando os dias em semanas, os meses em anos. E assim, de uma forma leve, vinte e cinco anos haviam decorrido desde e primeira ( e também última ) vez que haviam pernoitado naquele mesmo quarto de hotel, numa ruela secundária de Vila Nova de Milfontes.
Corria então Agosto de 1984, um verão quente, a pacata vila do litoral alentejano invadida por turistas de pé descalço, com muita música no ar, cerveja sobre as mesas e grupos de escuteiros de mochilas às costas, rumo aos acampamentos de verão.
Vinte e cinco anos…
Ela pareceu ler-lhe os pensamentos.
- … tu também não estás mais novo… - lá foi dizendo baixinho.
Era verdade.
Nenhum dos dois estava mais novo. Ela engordara uns quilinhos, arranjara algumas rugas de estimação, umas dores nas pernas e meia dúzia de cabelos brancos, que lhe emprestavam um ar sereno, tranquilo mesmo. Ele deixara crescer a barba, passara a usar o cabelo sempre muito curto e desde que deixara de fumar, engordara horrores.
As três filhas, quais gotas de água, eram a imagem da mãe. Bem… mais a imagem, que o temperamento puxava mais ao pai, conciliador e rezingão, criativo… e preguiçoso, também.
Ele desligou o telemóvel e pousou-o sobre a mesinha de cabeceira.
- Hoje não estamos para ninguém… - e sorria, olhando para ela pelo canto do olho. - queres que chame o serviço de quartos ?
Ela soltou um suspiro de admiração.
- Temos direito a serviço de quartos? Mas que luxo… da primeira vez apontaram-nos as escadas e disseram-nos… olhem, é por ali…
- Ora… mas isso foi da primeira vez… ainda éramos uns gaiatos, hoje já temos assim um aspecto… mais adulto, diria eu.
Ela concordou.
- Está bem… chama lá o serviço de quartos.
- Apetece-te alguma coisa de especial? Alguma bebida, ou aperitivo, ou…
Os olhos dela ganharam um brilhozinho especial.
- Olha… seria giro… repetirmos a primeira vez… o que bebemos nós naquela noite, lembras-te ? Era um licor, ou qualquer coisa doce, não era?
- Era vinho do Porto… bebemos dois cálices de vinho do Porto…
- Porto… foi isso mesmo, já me recordo… pois olha, é isso que me apetece agora… um cálice de vinho do Porto…
Ele sorriu, bem disposto.
- Vamos já tratar disso, minha senhora…
- Os senhores desejam mais alguma coisa?
Ele fez-lhe sinal que não, que estava tudo bem.
- Então tenham uma muito boa noite… e muitos parabéns...
E saiu, com um sorriso matreiro.
- Ouve lá, João… não te pareceu que a funcionária do hotel estava muito… nem sei como dizer… muito esquisita?
Ele respondeu-lhe do outro extremo do quarto.
- Ora… talvez estivesse só bem disposta. Também tem direito, não?
- Sim, sim… mas tu nem reparaste? Até nos desejou parabéns e tudo… como é que ela saberia…
Olhou para o tabuleiro com a garrafa de vinho do Porto, os cálices e o ramo de flores.
- João…
Ele aproximou-se, já sem sapatos.
- Sim, Maria… o que foi?
- João… ela deixou-nos uma garrafa já aberta… olha para isto… já está a meio…
Ele sentou-se ao pé dela.
- Oh, Maria… e então? Talvez fosse a última… isso não é importante, pois não?
Ela enrugou a testa, naquela expressão que lhe era tão característica, quando sentia que estava a ser enganada… e não sabia como.
Voltou a olhar com mais atenção para a bandeja, os cálices, o arranjo de flores, a garrafa… a garrafa era estranha, familiar… e o que era aquilo ali no meio… parecia que tinha alguma coisa escrita…
Pegou na garrafa e estremeceu.
- João… olha para isto…
E apontava com o dedo para uns rabiscos no rótulo… um coração desenhado a tinta, com as letras M e J, uma de cada lado.
E então… lembrou-se.
O marido ficou a olhar para ela, um sorriso matreiro, deliciado com a situação.
Fizera bem em guardar aquela garrafa, no sótão da casa, durante todo aquele tempo. Vinte e cinco anos atrás… fora aquela a garrafa de vinho do Porto que lhes haviam levado ao quarto, aquele mesmo quarto, na noite de núpcias. Haviam bebido dois cálices cada um, trocaram juras de amor e com a esferográfica do hotel, ela desenhara um coração com as iniciais deles no rótulo da garrafa…
Ela olhou para ele, comovida.
- Tu já tinhas isto tudo planeado, não tinhas?
Ele acenou afirmativamente.
- Mas, minha querida… só podemos beber mais dois cálices, está bem… é que depois… vou ter que esconder novamente a garrafa…. e só a vais ver de novo daqui a … sei lá… talvez mais uns vinte e cinco anos, o que achas?
Ela atirou-se-lhe ao pescoço, um abraço apaixonado.
- João Maria Mendes da Conceição…. vem aqui imediatamente aos meus braços. Já.
De Armando Correia a 4 de Agosto de 2009 às 16:08
Eu acho a sua capacidade descritiva uma coisa absolutamente fantástica.
Dá gosto ler.
Um abraço.
Obrigado, Lovenox, por toda a simpatia.
Sabes... esta vida está cheia de histórias, não é? É quase como estarmos assim à volta da fogueira, e enquanto um conta... os outros enroscam-se nas mantas, a ouvir...
Um abraço. Volta sempre.
Rolando
De Sofia Diniz a 4 de Agosto de 2009 às 16:45
Um espectáculo!
Emucionou-me...
Parabéns pela sua escrita.
Oi, Sofia... obrigado.
Bemvinda à fogueira destes pequenos contos...
Até já...
De Sofia diniz a 4 de Agosto de 2009 às 16:47
emocionou-me, assim é que é...fugiu-me o dedo...
Eu não sei se é verdade, não sei se é mentira?!...
Se é verdade é de uma doçura sem fim!
Se é mentira é doce como o vinho do Porto!
PARABÉNS porque conseguiu transformar cada gesto em palavras.
Olá, Flordeliz...
Acertaste em cheio. O que é importante é que toque em cada um... à sua maneira; tenha sido verdade ou mentira, cada um pode rever-se naquele quarto de hotel... e reescrever a "sua" própria história...
Beijos
Rolando
De Pássaro do Atlântico a 4 de Agosto de 2009 às 16:58
Realmente vc é um grande escritor, não sou muito de fazer média, mas lendo alguns dos seus textos, lhe dou parabéns...abraços
Obrigado, amigo, palavras reconfortantes...
Seja bemvindo, sente-se junto da fogueira, pegue um café.
Estamos todos "batendo papo" e contando histórias por aqui...
Apeteceu-me depois de ler o que escreveste fazer um brinde.
Vinho do Porto, champagne, um licor...não importa... quero brindar ao teu talento e á capacidade que tens em transformar pequenos momentos em histórias repletas de ternura.
Já reparei que nem mesmo o nevoeiro e frio da Foz do Arelho te impedem de soltar a imaginação e dar asas ao que te vai na alma.
Que amanhã o sol brilhe!
Beijos
Manu
Oi, Manu... nem te vi chegar ( foi do nevoeiro, tenho a certeza ).
Vá, brindemos.
Um gole por todos os que aqui andam, cada um com as suas histórias, cada um com as suas peripécias...
Afinal de contas, o que mais leva a gente desta vida, senão os amigos?
Beijos.
Rolando
De Lis a 4 de Agosto de 2009 às 20:37
Seria esse Joao o último dos romanticos? gestos que são raros nessa vida moderna . Muito lindo, muito gostoso de ler.Adorei. Vocé é mesmo um excelent cronista o, contador de estórias , poeta , diria.
Abraços
Oh, Lis... espero que aquele João não seja o último dos romanticos... faz falta gente assim, torna a vida mais colorida...mais doce.
Um abraço.
De
marta a 4 de Agosto de 2009 às 23:33
gostei. mais uma vez :) íssimo.
Oi, Marta... como no teu post... Homens perfeitos?
Bjs.
De
gilmara a 4 de Agosto de 2009 às 23:47
Olá!
Tem um selo la no blog pra vc!!
Abraços!!
Oi, Gilmara, obrigado pelo selo. Vou já "colocar na carta" para seguir viagem...
Beijos.
Rolando
Caro Rolando,
Gosto demais da forma como escreves! Parabéns!
Se é verdade, então felicito-os pelas bodas; se é ficção, parabéns também, pela delicadeza ao abordar situação que para muitos não passaria de corriqueira...
Saber valorizar estes "momentos" é uma característica sua que admiro muito!
Um abração,
Neli
Olá, Neli... obrigado pelo apoio...
As histórias acabam sendo um bocado de verdade acrescentado de pormenores... só para que cada um possa ler a história "à sua maneira"... e imaginar o melhor fim para ela...
Nós todos somos as histórias. E de vez em quando, surge-me só a ideia de retratar ... o dia-a-dia de alguém...
Beijos.
Rolando
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