
- Desculpe, dá-me licença?
A mulher chegou-se para o lado, contrariada.
A muito custo, lá conseguiu subir os três degraus da carruagem, uma mão a segurar o corrimão de ferro, a outra o enorme saco de lona militar, desta feita mais pesado que o habitual.
Final de mês, a mesma azáfama de sempre; os táxis cheios, as filas intermináveis para comprar um simples bilhete, o bar da estação a abarrotar de emigrantes e soldados de fim de semana, os comboios cheios… enfim, o costume. Nada a que o soldado Matias, a prestar serviço no Porto, não estivesse habituado.
Um silvo agudo, contínuo, encheu o ar. O primeiro apito.
A enfermeira Maria voltou a espreitar pela janela entreaberta. Nada. Nem sinal dele.
- Não vai conseguir chegar a tempo… - ainda pensou.
Talvez conseguisse.
Aquela viagem até Coimbra não estava programada. Mas nem sempre a vida se programa, e ela trocaria aquela viagem de bom grado. Ir ao enterro do pai, que já não via desde o Natal… não… sem dúvida que era um motivo triste para voltar à terra que a vira nascer.
E o marido, onde estaria o marido, que nunca mais chegava?
- Ah, João, apressa-te… que ainda perdes o comboio…
No banco em frente, alheio à tristeza da enfermeira, um rapaz ainda jovem, de rosto tisnado pelo sol e barba mal feita, segurava com força uma mochila. Os olhos fitavam um ponto distante, bem para lá da estação de Santa Apolónia, bem mais longe que o bulício do trânsito da capital.
O sul de França era o seu destino. Talvez por dois, por três anos, quem saberia?
O seu Alentejo não conseguia dar trabalho a ninguém e, da sua aldeia das Pias, todos os braços fortes já haviam partido, deixando para trás os velhos, as mulheres e as crianças, à espera de cartas para matar saudades e de algumas notas para aliviar a miséria.
As mãos apertaram com mais força a alça da mochila, quando o apito estridente da máquina soou de novo pela estação.
O segundo toque. Uns minutos mais para os retardatários.
O "Quim bolas", como lhe chamavam os colegas, levantou-se da cadeira, pagou o café e dirigiu-se pelo passadiço até à composição.
O homem da bandeireta acenou-lhe.
- Quim bolas, és tu que levas hoje a máquina? Julgava-te de férias…
- Ora viva, Tónico…. isso de férias é só para quem pode… vou ver se consigo ganhar mais algum… sempre são umas horinhas a mais no final do mês…
O guarda ergueu a bandeireta e apitou.
- Vai com Deus, Quim bolas, vai com Deus…
Subiu os degraus de ferro até à cabine. O maquinista Joaquim Freire, Quim bolas para os amigos tinha mais uma viagem pela frente.
- Está tudo em ordem? - perguntou ao técnico, que acabava de verificar os últimos mostradores do comando.
- Está como nova, Quim… é toda tua…
Sentou-se aos comandos. Perderia o aniversário de casamento, no dia seguinte. Mas os tempos estavam ruins… e não havia como deitar fora aquelas pequenas oportunidades, quando surgiam. Uma viagem extra, em tempo de férias… renderia uma boa quantia, talvez até fosse suficiente para trocar o velho frigorifico… ou o fogão.
O comboio estava cheio.
Decidido, carregou no botão amarelo e um longo silvo voltou a encher os ares. O terceiro apito.
A vida entraria em suspenso, durante um breve intervalo.
Lentamente, as enormes rodas de ferro moveram-se, arrastando a meia dúzia de carruagens estação fora, os rostos à janela, mãos acenando, gritos, lágrimas, adeus.
Era só mais uma viagem, como tantas outras.
Só mais um dia, no decurso de todas as vidas a bordo.
Boa viagem.
Pareceu-me um poema esta tua história de vidas...beijos, gostei muito.
Olá Paula...
Sabes... lembrei-me que todos os dias, quando nos cruzamos com alguém, ou mesmo quando circulamos por entre a multidão...nem imaginamos as histórias com que nos cruzamos... as boas, as más... e as improváveis, as estranhas.
Todas são únicas, creio.
Beijos.
Rolando
É a vida acontecendo, misturando as histórias, e o trem já vai conduzindo as angústias e alegrias das pessoas. Belo texto. Bj
Tens razão, Adriana, é a vida...
E a gente vai passando, o trem vai passando, e as coisas acontecendo...
Beijos.
Volta sempre
De
tatyane a 26 de Julho de 2009 às 16:11
Ahhhhhhh
Adoro contos de fadas!!! Tenho dascinação pela sininho! rsrsr
Amei, posso te add no meu blog?
vou ficar te visitando e lendo!
beijos
Pinta sempre por lá!
Taty!
Oi, tatyane...
Os contos de fadas são assim, conseguem contar histórias sérias ... a brincar...
Beijos.
De
aflores a 26 de Julho de 2009 às 17:11
Uma maravilhosa história e uma viagem no tempo (como é bom recordar) impossível com o TGV :):):)
Brincadeira de lado...adorei esta viagem que me fez (re)viver os meus tempos de tropa com viagens de comboio maravilhosas entre a minha cidade (Porto), Chaves e Lisboa.
Tenho aqui, neste teu cantinho, motivos de leitura para aqui voltar;)
Agradeço e retribuo visita ao meu blog.
Grande abraço
AFlores...
Se eu sei?
Eu fazia o percurso Porto - Reguengos no comboio do correio, saia do quartel às cinco e só chegava a casa às 9 da manhã do dia seguinte...
Um abraço.
Rolando
De lisette a 26 de Julho de 2009 às 17:53
" ...Lá vem a Maria Fumaça
Trazendo e levando saudades
Por onde passa.
Por toda composição
fica espalhada esperanças
Lá vem o trem de ferro
carregadinho de sonhos...
No apito do trem
a cabeça viaja
e o amor,que ainda nao voltou
É esperado na rampa
Lá vem a Maria Fumaça.. "( do blog de Edson Milton V.Paes)
Boa lembrança me traz esse seu texto: "o comboio apiitou tres vezes". Na minha vida apitou mais vezes,rsrs.
Quis citar esse poema porque tem tudo a ver com a vida que vemos passar pelas janelas desses trens.
Posso passar muitas horas aqui ,lendo voce.Gosto muito.
Obrigadinha pela ida no flor de lis ,deixando um lindo presente - o seu comentário.
com carinho
Lisete, que posso eu dizer ?
Senta um pouco, pega no café e nos biscoitos que tem ali em cima da mesa... e sirva-se à vontade.
Sinta-se em casa, é só o que desejo.
Beijos.
Rolando
Olá Rolando
É inquestionável a qualidade dos textos que vai colocando no seu blog, como sempre é um prazer ler o que escreve. Este não foge á regra.
Desculpe, mas hoje vou deixar uma nota mais brejeira, isto porque quando vi o nome do maquinista me fez lembrar uma anedota muito engraçada, que não vou contar aqui, claro, mas se calhar também conhece.
Desculpe o atrevimento, mas também é bom sorrir de vez em quando.
Desejo-lhe uma óptima semana.
Beijos
Manu
Oh, Manu...
Se é bom sorrir de vez em quando...
Eu até sou daqueles que pensa que somos demasiado sisudos, levamos tudo a tão a sério, somos tão formais, sr doutor isto, vocemesse aquilo...
Se eu tivesse jeito para contar anedotas, até faria um blog...
Beijos, uma óptima semana para ti...
Rolando
Cada pessoa um mundo, uma historia, uma vida, um comboio cheio de vidas.. paradas naquele segundo em que as rodas iniciam o seu movimento.
Excelente texto
Abraço e boa semana
Jorge
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