
- É meia noite… e está tudo bem, com a graça do Senhor…
A noite estava fria. Uma neblina franzina, empurrada do rio, galgara o porto e espalhara-se pelas ruas desfocando os contornos e criando auréolas esbranquiçadas em torno dos candeeiros. As sombras, húmidas, escorregavam pelas paredes de pedra, abafando os passos nas calçadas de pedra.
A cidade dormia.
Não fora a presença do guarda nocturno, de lanterna em punho… e dir-se-ia que o silêncio era total; até os estivadores das docas, habituais fregueses tardios dos bares e tabernas da zona ribeirinha, haviam partido para parte incerta… deixando as ruas desertas.
O guarda Marcelino, primeiro cabo da guarda, nunca se conseguira habituar à cidade.
Lisboa, por muito que lhe dissessem o contrário, era suja, tresandava a peixe e albergava os piores facínoras do reino – ladrões, agiotas, mercenários das colónias, assassinos.
Mas em tempos de crise…
Enquanto caminhava ao longo da praça, veio-lhe à memória a imagem da sua aldeia natal, perdida entre os pinhais e as dunas, lá bem para o norte, junto da foz do Mondego.
- Ah, o campo, nada como o campo… - deu consigo a murmurar.
Mas o campo e a província ficaram longe, tal como a família.
- Se tudo correr bem… são só três anos – prometera ele – faço uma comissão e depois venho-me embora…
A mulher esperaria por ele. A mulher e as crianças, as quatro pequeninas e a que já vinha a caminho… se Deus quisesse, havia de ser um rapaz… depois de quatro raparigas, tinha que ser um rapaz…
E os três anos haviam passado.
Aquela ronda... seria a penúltima ronda. A sua comissão terminaria no dia dois de dezembro, e se os santos o permitissem, ainda chegaria a casa antes do natal.
Contornou o pelourinho e dirigiu-se à mouraria.
Algumas vozes e o passar de uma carroça trouxeram-no de novo à realidade.
- É uma da manhã... e está tudo bem, com a graça do Senhor...
Um pouco à frente, alguém despejava um balde de água para a rua; desviou-se a tempo, pragejando.
- Ó da casa... arre que vem gente a passar....
Ninguém lhe ligou.
Continuou, ladeira acima, os lampiões da fachada do castelo a assomar por entre as sombras da noite. Ajeitou melhor o agasalho.
O frio... aquele frio húmido que ia direito aos ossos, como detestava aquele frio. Mas o inverno ia ser chuvoso, diziam os entendidos.
O ano da graça de 1755 não fora de feição para a terra. O verão viera tardio, as searas mal espigaram, o trigo escasseava nos mercados. Os varões sadios e escorreitos alistavam-se no exército, que el-rei pagava mal mas alimentava as bocas e provia tecto a toda a gente.
Um leve tremor agitou-lhe os passos, desequilibrando-o.
- Ora essa... – estranhou – quem me visse diria que nem me tenho nas pernas...
Não teve tempo para novo pensamento. Um rumor grave e surdo foi aumentando de volume, como se as entranhas da terra gemessem uma dor infernal. Voltou a sentir o chão o tremer com violência, ao mesmo tempo que algumas pedras se desprendiam das paredes e tombavam sobre a calçada.
O que era aquilo, por Deus?
Aqui e ali, gritos irromperam. Num instante, a rua encheu-se de gente, candeias acesas, as mães fugindo de cas com os filhos nos braços.
Após uns segundos de intervalo, a terra tremeu novamente.
Caiu por terra.
- Por todos os santos... fugi, fugi todos... – passou alguém a correr – fugi que é um terramoto...
O guarda Marcelino ainda tentou levantar-se. Mas a torre da igreja, com um rugudo de dor, precipitava-se já sobre ele, desfazendo tudo à sua passagem.
Corria o dia um de dezembro do ano da graça de 1755, em Lisboa.
Penúltima ronda do guarda Marcelino, primeiro cabo.