
Aproximou-se um pouco mais do espelho. O que era aquilo?
UMA RUGA?
Como era possível?
Só havia duas coisa nesta vida que ela, pura e simplesmente, não suportava; uma era o aparecimento daquelas coisas inestéticas, chamadas de rugas. A outra era o gesto irritante dos seus netinhos a chamarem-na de avó - a ela, que nunca se sentira como velha, agora a ser chamada de avó... era demais, sinceramente, era demais.
Dona Ascensão de Figueiredo Morgado tinha-se em muito boa conta, é certo. O Morgado fora-o buscar ao marido, um velho militar de carreira que apesar de falido, lhe deixara uma filha, duas casas e uma herdade, lá nos confins do alentejo. Ela acrescentara o "de" ao nome, sentia que o som era mais fidalgal. Um "de" no nome não era para todos e, como tal, a primeira coisa que fez na altura própria, foi registar a filha na conservatória com o proverbial nome de Patricia de Vasconcelos Figueiredo Morgado. Quando o marido lhe perguntou, na altura muito surpreendido, se o "Vasconcelos" vinha do lado do pai ou da mãe, ela despachara-o prontamente com um " Nem dum nem doutro...vem da societê..."
O problema foi quando nasceram os netos. Um par de gémeos, lindos de morrer, olhos verdes e cabelo castanho dourado. Ainda tentou imaginá-los parecidos com a filha... mas não havia como enganar, eram a réplica exacta do pai, um bancário alto e franzino por quem a filha se perdera de amores. Ainda por cima, não apreciara nada a intromissão dela, com umas inocentes sugestões para os nomes dos netos.
Enfim... era pena, perder-se assim um apelido tão bonito... Figueiredo Morgado... que tanto trabalho lhe dera a arranjar...
- Mãe, despache-se... eles já estão todos dentro do carro, só falta a mãe...
Ainda por cima.
Como se não faltasse mais nada... sempre com pressa, sempre com pressa. Aquilo eram as influências do genro, habituado aos horários do banco, campainha para aqui, toque para acolá...que coisa...
Ela... ela que lhes proporcionara o prazer da sua companhia... que até aceitara ir morar com eles - o genro escorregara um dia, convidando-a por cortesia no natal... é claro que ela não podia recusar, como é evidente... - e agora ali estava, a ser pressionada, sempre tudo às pressas para... para quê? Uma simples ida ao centro comercial, ou coisa que o valha....
Rebuscou a mala de lantejoulas e retirou novamente a caixinha do pó-de-arroz.
Com imenso cuidado, lá foi aplicando mais uns pózinhos sobre a renitente ruga, até a conseguir dissimular um pouco mais.
Olhou-se de novo ao espelho.
Perfeita.
Claro que não podia rir em demasia, bem entendido. Aí notar-se-ia outra vez. Mas também... onde estavam os motivos para rir?
Aplicou o baton, daquela cor que a filha passava a vida a comentar que já não era para a sua idade. Era o que faltava. Já não ter idade para usar a sua cor de baton favorita...
- Já vou, já vou...
Abriu a porta do quarto. A filha mirou-a de alto a baixo, soltando uma risinho de aprovação.
- Estás muito in, mãezinha... quase que parecemos ter a mesma idade...
A mãe passou a mão pelos cabelos, acabando de se compôr.
- Não parecemos, não, minha querida... essa tua corzinha que puseste já não se usa... e devias colocar um pouco de baton nessa boquinha... já se começam a perceber aí umas ruguinhas...
A filha mordeu os lábios.
- Velha bruxa... eu até que aposto que fui trocada na maternidade...