Domingo, 5 de Julho de 2009

Pó-de-Arroz...

 

Aproximou-se um pouco mais do espelho. O que era aquilo?
UMA RUGA?
Como era possível?
 
Só havia duas coisa nesta vida que ela, pura e simplesmente, não suportava; uma era o aparecimento daquelas coisas inestéticas, chamadas de rugas. A outra era o gesto irritante dos seus netinhos a chamarem-na de avó - a ela, que nunca se sentira como velha, agora a ser chamada de avó... era demais, sinceramente, era demais.
Dona Ascensão de Figueiredo Morgado tinha-se em muito boa conta, é certo. O Morgado fora-o buscar ao marido, um velho militar de carreira que apesar de falido, lhe deixara uma filha, duas casas e uma herdade, lá nos confins do alentejo. Ela acrescentara o "de" ao nome, sentia que o som era mais fidalgal. Um "de" no nome não era para todos e, como tal, a primeira coisa que fez na altura própria, foi registar a filha na conservatória com o proverbial nome de Patricia de Vasconcelos Figueiredo Morgado. Quando o marido lhe perguntou, na altura muito surpreendido, se o "Vasconcelos" vinha do lado do pai ou da mãe, ela despachara-o prontamente com um " Nem dum nem doutro...vem da societê..."
O problema foi quando nasceram os netos. Um par de gémeos, lindos de morrer, olhos verdes e cabelo castanho dourado. Ainda tentou imaginá-los parecidos com a filha... mas não havia como enganar, eram a réplica exacta do pai, um bancário alto e franzino por quem a filha se perdera de amores. Ainda por cima, não apreciara nada a intromissão dela, com umas inocentes sugestões para os nomes dos netos.
Enfim... era pena, perder-se assim um apelido tão bonito... Figueiredo Morgado... que tanto trabalho lhe dera a arranjar...
 
- Mãe, despache-se... eles já estão todos dentro do carro, só falta a mãe...
Ainda por cima.
Como se não faltasse mais nada... sempre com pressa, sempre com pressa. Aquilo eram as influências do genro, habituado aos horários do banco, campainha para aqui, toque para acolá...que coisa...
Ela... ela que lhes proporcionara o prazer da sua companhia... que até aceitara ir morar com eles - o genro escorregara um dia, convidando-a por cortesia no natal... é claro que ela não podia recusar, como é evidente... - e agora ali estava, a ser pressionada, sempre tudo às pressas para... para quê? Uma simples ida ao centro comercial, ou coisa que o valha....
 
Rebuscou a mala de lantejoulas e retirou novamente a caixinha do pó-de-arroz.
Com imenso cuidado, lá foi aplicando mais uns pózinhos sobre a renitente ruga, até a conseguir dissimular um pouco mais.
Olhou-se de novo ao espelho.
Perfeita.
Claro que não podia rir em demasia, bem entendido. Aí notar-se-ia outra vez. Mas também... onde estavam os motivos para rir?
Aplicou o baton, daquela cor que a filha passava a vida a comentar que já não era para a sua idade. Era o que faltava. Já não ter idade para usar a sua cor de baton favorita...
 
- Já vou, já vou...
Abriu a porta do quarto. A filha mirou-a de alto a baixo, soltando uma risinho de aprovação.
- Estás muito in, mãezinha... quase que parecemos ter a mesma idade...
A mãe passou a mão pelos cabelos, acabando de se compôr.
- Não parecemos, não, minha querida... essa tua corzinha que puseste já não se usa... e devias colocar um pouco de baton nessa boquinha... já se começam a perceber aí umas ruguinhas...
 
A filha mordeu os lábios.
- Velha bruxa... eu até que aposto que fui trocada na maternidade...

 

publicado por entremares às 14:06
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17 comentários:
De Paola a 5 de Julho de 2009 às 16:18
O tempo... que corrói admiravelmente o tempo que a gente tem.. Não como iludi-lo,,, nem com o pó-de-arroz... E que bem sabem as rugas... marcam a nossa continuidade... Gosto de sentir o tempo... mesmo que não goste... mesmo que cole as minhas rugas nos rostos que passam... Eu sei que vão passar...

Bom domingo.
Beijinho.
De entremares a 5 de Julho de 2009 às 16:58
Obrigado, Paola... se o pó-de-arroz tapasse tudo... mas não tapa, pois não ?
E quem disse que o tempo não nos torna mais interessantes?

Basta sermos como o vinho do porto...

Beijos.
De Sara a 5 de Julho de 2009 às 17:18
Quando li o título pensei logo "pó-de-arroz do teu arrozal, és a tal que me encanta...", mas agora que li tudo até ao fim... bem... ainda bem que há excepções! Pessoas que sabem aceitar a passagem dos anos e a idade que tem, pessoas que sabem ser realmente como o "vinho do porto" e com o passar dos anos adquirirem ainda mais qualidade e Mães que sabem ser Mães!!!

Boa semana :)


De entremares a 5 de Julho de 2009 às 17:33
Olá Sara...o passar do tempo faz de nós pessoas mais... ( qual a palavra certa? ) vivas, talvez. Eu, pelo menos, quero sentir-me mais vivo, a cada dia que passe...

Um óptimo domingo para ti...
De vida de vidro a 5 de Julho de 2009 às 17:25
O passar do tempo é terrível quando se dá demasiado valor às aparências. Importante é o que se mantém intacto, o que nos liga aos outros. **
De entremares a 5 de Julho de 2009 às 17:35
Vida de Vidro... O próprio nome tem muito a ver com isto , não tem?

Vida de Vidro.

Ir assistindo ao passar dos anos, e aprendendo sempre algo...

Uma óptima semana...
De Deusa a 5 de Julho de 2009 às 18:39
Me divertindo .....rsrssr
De repente , até me identifiquei sob alguns ângulos do texto ...
Mães e filhas ....relacionamentos que só mudam de endereço ..rs
Gostei muito !
De entremares a 5 de Julho de 2009 às 19:24
Olá Deusa...

Mães e filhas é sempre complicado, não é?
Aqui, pelo menos... ainda não estão disputando entre si a caixinha do pó-de-arroz...

Bom domingo...
De julieta barbosa a 5 de Julho de 2009 às 20:42
Na expressão do meu rosto você vê marcados os anos da minha vida. Na minha alma, a tatuagem da minha alegria de viver. E se me perguntam a minha idade, eu lhes respondo: tenho a idade dos meus sonhos e esses, não acabam nunca.
De entremares a 5 de Julho de 2009 às 21:16
Julieta, Julieta... essa é a melhor definição ... temos a idade dos nossos sonhos...

Uma boa semana...
De BlueShell a 6 de Julho de 2009 às 00:25
Lindos os seus textos.
Lindos os textos deixados no meu blo. Não sei como agradecer. Simplesmente lindos e ternos...e parecem conhecer-me...essas tuas palavras.

Um enorme abraço
BShell
De entremares a 6 de Julho de 2009 às 01:14
Blue Shell, eu é que agradeço...
O seu post é uma bela história.

Uma óptima semana...
De DyDa/Flordeliz a 6 de Julho de 2009 às 01:40
As rugas da minha mãe são lindas. Às minhas, não acho graça nenhuma.
Mas como pela manhã o sono ainda é muito, ficam sempre sem a minha atenção.
Oh dura realidade...
Não há pó que o vento não leve deixando à mostra os regos que o tempo se encarregou de lavrar.
Bom início de semana e haja saúde.

De entremares a 6 de Julho de 2009 às 08:19
Oh, Flordeliz, que é isso ?
Então só as rugas da mãe é que são lindas ?

Boa semana...
De Óscarito a 6 de Julho de 2009 às 12:18
Entre outros artigos amplamente divulgados, há um que me tem chamado a atenção precisamente destinados à eliminação de rugas: a baba de caracol!
É certo que os caracóiis não têm rugas, mas daí a eliminá-las...
Bem, não à como experimentar.
Abraço/Oscar
De entremares a 6 de Julho de 2009 às 12:52
Há receitas estranhas, há receitas loucas... mas olha que esta da baba de caracol não lembra nem ao diabo...

Um abraço...
De Milu a 11 de Julho de 2009 às 16:51
O final pressupõe que a filha não ganhava à mãe em elegância, beleza e altivez , apesar de muito mais jovem! Quantos casos assim, nós podemos observar!
Escreve belíssimamente!

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