
Casar?
Bem… é tudo uma questão de – como explicar ? – querer, acreditar, desejar. O mundo não acaba se não houver casamento… e para além das poucas pessoas que venham a tomar conhecimento da cerimónia, é pouco provável que isso influencie a vida de todas as outras…
Esta talvez fosse a enésima tentativa de pensar no assunto … mas, por mais volta que lhe desse, não conseguia deixar de pensar no assunto.
- A minha filha… vou ficar sem a minha filha… e agora é que é de vez…
Acomodou-se na espreguiçadeira, bem encostada ao muro do jardim.
A noite estava morna, silenciosa e luarenta, como tantas outras noites de Maio…
O pequeno jardim interior, rodeado de paredes brancas e buganvílias vermelhas, que tantas vezes lhe servira de refúgio inspirador… parecia-lhe agora despido e vazio, solitário. A cama de rede, indolente entre os dois enormes chorões, recordava-lhe tempos passados, quando ali tentava adormecer a sua pequena fada, como ele lhe gostava de chamar.
Mas a pequena fada transformara-se de pronto numa bela princesa e – como o tempo passara depressa – sem se dar bem conta, crescera… saíra de casa, frequentara a universidade, voltara e… aos 24 anos… iria partir de vez, embarcando naquela viagem por mares desconhecidos chamada de … casamento.
Deu consigo a pensar que estava a ser idiota.
- Afinal de contas, ela só vai mudar de cidade…
O pio de uma coruja mais atrevida fê-lo abrir os olhos. No andar de cima, a luz do quarto permanecia acesa – a esposa estava ainda mais nervosa que ele, apesar de se recusar a admiti-lo.
- Isto de ser pai – pensou – tem que se lhe diga…
Deram-lhe o nome de Juliana, mas sempre a chamaram de Ju…
A Ju era, como provavelmente são todas as filhas, a menina do papá; talvez pela compatibilidade de feitios, pelos mesmos olhos castanhos e sorriso atrevido ou simplesmente por todo o tempo que tiverem a possibilidade de passar juntos, enquanto ele a via crescer…
Fosse como fosse, chegara a altura de a ver partir… e isso apertava-lhe a garganta e revolvia-lhe o estômago; não pelo casamento em si – o futuro genro até era um moço às direitas, daqueles príncipes encantados que ele próprio não fora… e, mais importante que tudo, estava perdido de amores por ela.
Os dois seriam independentes, autónomos … e felizes, disso tinha a certeza. E mais que isso não poderia desejar.
Mas se tudo fosse assim tão simples… porque motivo persistia ainda aquele nó na garganta… aquela sensação de um súbito vazio, como se de repente o mundo perdesse a cor e tudo se resumisse a um sépia entristecido ?
Talvez o vazio… talvez o quarto vazio. Teria que se habituar a passar pela porta do quarto e a deixar de olhar para os peluches ainda arrumados ao lado das almofadas… ou aquela tentativa de estátua de barro que ambos tinham tentado fazer na garagem, quando ela fez oito anos…
Não.
O que mais custava era mesmo a antecipação da distância…
Uma cidade diferente, uma viagem. É claro que existiam telefones, telemóveis, sms, Internet, essas coisas todas… mas enfim, teria que se habituar a isso…
Tão embrenhado estava nos seus pensamentos, que nem se apercebeu da figura que descia silenciosamente as escadas em direcção ao quintal.
- Ainda aqui estás?
Ele despertou, sobressaltado.
- Ju… nem dei por chegares…
- Isso percebi eu. Porque não te vais deitar?
- Ora… não tinha sono. Por isso lembrei-me de vir apanhar um bocadinho de ar fresco…
Ela sorriu.
- Mentiroso… vieste para aqui carpir as mágoas…
Foi a vez dele se rir. Para além de tudo, a filha sempre tivera a resposta pronta, na ponta da língua. Sempre fora assim.
- Não sejas tola… estava só a descansar… amanhã vai ser um dia bastante cansativo…
- Cansativo ? A quem o dizes… sou eu que me vou casar, não és tu…
Ele permaneceu em silêncio, a pensar numa resposta que não chegou a surgir.
- Olha… - acabou ela por dizer – sabes… tenho aqui uma pequena prenda para ti…
E puxando de uma pequena caixa escura, com um laçarote vermelho, colocou-lha nas mãos.
- O que é isto ? Tu é que te vais casar e eu é que recebo as prendas ?
Ela agarrou-se-lhe ao pescoço.
- Achei que ias precisar disto… abre, vê se gostas…
Curioso, desatou cuidadosamente o laço de fita. A pequena caixa de madeira escura, pouco maior que um maço de cigarros, sacolejava... como se algo baloiçasse no seu interior. Algo pesado.
Levantou a tampa.
Destacando-se do fundo branco, uma grande chave de ferro – daquelas antigas, de ferrolho – espreitava-o.
- Uma chave ?
Ela devolveu-lhe o olhar.
- Sim.. uma chave. É a chave da minha nova casa, sabes? ... Em sentido figurado, claro... mas não deixa de ser uma chave... que é para perceberes que lá por eu me ir embora... não significa que me vá embora... Por isso te dou essa chave, para que te apeteça usá-la... quando me fores visitar.
Ele ficou a olhar para ela, bebendo lá no fundo dos olhos aquela cumplicidade que sempre os acompanhara, ao longo de todos aqueles anos.
Afinal... – ele sabia-o agora – ela também lhe sabia ler os pensamentos...