
- Apontar…. Atenção… FOGO !
Com um estrondo enorme, o tanque estremeceu, cuspindo a sua carga mortal sobre o edifício branco – que já fora de apartamentos, agora só uma quase ruína.
O comandante Svetlin, capitão do 3º batalhão de cavalaria pesada, perscrutava cuidadosamente o horizonte, agarrado aos binóculos.
Não havia muito para ver.
Knin, a capital da pequena província de Krajina ( actual zona sul da Eslovénia ), estava praticamente destruída.
No futuro, quando alguém redigisse a história do conflito, chamar-lhe-iam simplesmente a batalha de Krajina, uma de entre tantas na longa guerra da Bósnia. A história não se preocuparia com o nome das ruas, com o nome dos feridos, dos mutilados, dos órfãos, das viúvas; tão pouco ficaria descrito o estado de destruição dos jardins, as estátuas amputadas, os tectos caídos dos museus e das igrejas, as padarias vazias, os animais abandonados nos becos ou aqueles bancos de escola primária – projectados para a rua quando os morteiros acertaram em cheio na sala de aulas, felizmente vazia.
O comandante Svetlin, militar de carreira, tinha a seu cargo uma missão – mais uma – de “limpeza residual”.
Quem se teria lembrado de semelhante nome ?
Não seria mais fácil dizer simplesmente “ eliminar tudo o que se mova “ ou simplesmente “ aniquilação total “ ? Claro que “limpeza residual” soava de uma forma mais suave… como se a mera troca de palavras pudesse suavizar os horrores da guerra.
A zona leste de Knin estava Já limpa de “residuais”, eufemismo político para referir tanto os franco-atiradores inimigos como a meia dúzia de famílias assustadas que ainda viviam no meio dos escombros das suas antigas casas. Tudo era … “ residual”.
- Dez graus à direita… Apontar… FOGO !
Novamente o lampejar, o recuo, o petardo a atingir com violência a parede. Uma cratera de estilhaços.
Na verdade, qual era a diferença entre militar no lado “certo” ou no lado “errado” ? A histórias das guerras é sempre a história escrita pelos vencedores... e não se compadece com as opiniões das minorias, dos que não concordam, dos que cumprem ordens.A história da guerra – de qualquer guerra – é sempre a história da conquista do poder, camuflada de maneira mais ou menos imaginativa, num cenário onde a lei da selva, como sempre, acaba por ditar ordens.
Assim pensava o comandante Svetlin, enquanto cumpria as suas ordens: “ Efectuar a limpeza residual da zona oeste de Knin”.
Ponto final.
- Demasiado por alto, demasiado... baixar um quarto... apontar ... FOGO !
A sequência repetia-se – Identificar o prédio resistente, confirmar a presença do inimigo, apontar os tanques, destruir o prédio. Nada de complicado. O inimigo, fosse ele qual fosse, nada podia contra os blindados de Svetlin, a desproporção de forças era abismal.
Voltou a ajustar os binóculos. O prédio seguinte aparentava estar ainda habitado – algumas peças de roupa penduradas numa janela. No tecto, um par de atiradores disparava frenéticamente contra os tanques, inutilmente.
- Apontem ao último piso – gritou pelo microfone – FOGO !
O fumo e o pó dificultavam a observação. O que seria aquele ponto colorido, junto dos escombros da entrada do edifício ?
Tentou sem sucesso focar os binóculos. Nada.
- Novamente. Apontem mais para cima...
De repente, o ponto colorido mexeu-se.
Voltou a tentar focar a imagem. O que era aquilo ? Não podia ser. Era impossível.
- Não disparem. Suspender fogo, suspender fogo – gritou.
Com um salto, desceu da cabine de comando do tanque e correu para o prédio. Do tecto do edifício, um saraivada de balas acompanhou-lhe os passos, lembrando-lhe que estava a cometer uma perfeita loucura. Os franco atiradores pretendiam vender bem cara a vida, e a figura do comandante a correr desprotegido, rumo ao edifício poderia ser a única vingança possível.
Sem saber como, conseguiu alcançar a entrada – a sorte protege os audazes. Ali já estava a coberto da linha de fogo.
Ainda mal acreditando no que estava à sua frente, ajoelhou-se diante do vulto cor-de-rosa que avistara pelos binóculos.
Que idade teria ? Meses, provavelmente...
Onde estariam os pais ? O que faria ali, semi soterrada pelas escombros ?
Pegou delicadamente na criança – não estava ferida. Instintivamente, ela agarrou-se-lhe aos ombros, na busca da segurança possível.
Ficou a olhar para ela, enquanto lhe passava a mão pelo cabelo, tranquilizando-a com palavras baixinho, protegendo-lhe os ouvidos dos estampidos das balas.
Ergueu os olhos em direcção a um protector invisivel.
- Obrigado... – murmurou
A pequenita começou então a chorar. De fome, de frio, de sono.
A vida teria que continuar.
- Já vamos tratar de ti, pequenina, já vamos...
De Najla a 22 de Maio de 2009 às 14:23
O texto, como sempre, excelente. Mas hoje, por uma grande razão, não consigo comentar sobre o mesmo.
Aguardarei pelo próximo.
Beijos e um bom fim-de-semana.
Cá esperarei por ti.
Um óptimo fim de semana...
Beijos
“A sorte protege os audazes.”
É quase um lema que me fartei de ouvir ao longo da minha vida.
Não gostei do post, sinceramente não gostei!
Talvez pelo realismo que foi empregue na escrita ou por a guerra se só por si uma coisa maléfica e estúpida o nome (limpeza residual) dá-lhe ainda mais frieza se é que isso é possível..
“certo” ou no lado “errado” não sei se isso existe..
As histórias de guerra são sempre escritas pelos “sobreviventes “ não pelos vendedores… penso eu.
Uma luta de poder, a guerra é isso mesmo .. e não é feita pelo soldado que está no terreno, muito menos pelo sargento ou pelo “ comandante batalhão” que por norma são ou tenente coronel ou majores.Os generais já nem falo que a maioria está com o dito refastelado na cadeira o dia todo..
A guerra é feita pelos senhores de fato e gravata que estão no poleiro em nome de um “deus” chamado ganância e poder.
Ok ok, é um tema que não domino mas…
Boa tarde
Sabes ?
A ideia da história surgiu após "tropeçar" com esta imagem na net. Como de costume, os inocentes é que sofrem, seja na Bósnia, no Golfo, em África ou Timor.E as crianças ( todas ) são as mais inocentes.
Svetlin poderia ser só mais um elo na cadeia. Um cumpridor de ordens.Para todos os "cumpridores de ordens" não existem vítimas, existem "alvos". A noção de vítima já é subjectiva. Se for do lado certo, chamam-lhe baixa...
E concordo contigo noutra coisa. A guera não é nenhum romance de cavalaria. É nojenta, fria e crua.
E mortal também...
Um bom fim de semana...
Não resisto e deixa-me discordar..
(supostamente os comentários devem ser concordantes mas..)
""Para todos os "cumpridores de ordens" não existem vítimas, existem "alvos".""
Não é tão verdade com isso... eles têm sentimentos.. Guardam magoas e memorias e podem acompanha-los por uma vida.
Bom fim de semana
É verdade o que dizes.
Eles todos, mesmo os cumpridores de ordens ... têm sentimentos e guardam mágoas que os perseguem para toda a vida.
Acredito que muitas histórias destas se tenham passado, um pouco por toda a parte. E acredito também que se chamam as vítimas de "alvos" para suavizar o premir do gatilho. Hoje em dia, quem dispara nem vê a vítima a cair, será que percebem ao menos que acabaram de ceifar uma vida ?
Um bom fim de semana para ti...
( Se os comentários fossem todos concordantes, vestiamos todos de amarelo... )
- O lado certo!
- O lado errado?
Nesta narrativa é mais - o minuto onde o cor de rosa continuou a bater e a brilhar em coração de gente.

" coração de gente"... gostei da imagem, transmite bem o sentimento.
Ser " lado certo" ou "lado errado" ... depende do nosso próprio lado. O que hojé é um terrorista, um revolucionário... amanhã poderá vir a ser venerado como um libertador, um herói...
Mas a faceta humana de quem é obrigado a disparar ... espero sinceramente que continue a existir.
Bom fim de semana.
"depende do nosso próprio lado"
Eu preciso acreditar que a bondade existe. Espero que prevaleça mesmo quando escolhemos um dos lados ou nos obrigam a disparar.
Igualmente um bom fim de semana.
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