- O arguido tem algo mais a dizer em sua defesa ?
Dito daquela forma, as palavras tornavam-se pesadas, como se de uma sentença capital se tratasse. O réu, um homenzinho pequeno ainda na força da idade, remexia-se nervosamente por detrás da antepara de madeira que separava a mesa da juiza da zona reservada aos arguidos e testemunhas.
- Doutora juiza, bem vê... foi sem intenção... não foi por mal...
- Mas o senhor sabe que o fez foi errado, reconhece isso ?
- Se o diz, doutora juiza... mas tem que se pôr no meu lugar... que mais podia eu fazer ? Não tenho feitio para me pôr a assaltar bancos...
A juiza enrugou a testa, pouco habituada a ser interpelada daquele modo.
- Tenha contenção na linguagem, senhor Fonseca, tenha contenção. Eu não estou aqui para responder às suas perguntas... o senhor é que foi presente a este tribunal para averiguar os factos de que é acusado... e assim, mais uma vez, pergunto-lhe... o senhor reconhece que praticou um acto ilícito ?
- Reconheço sim, doutora juiza.
- E, mesmo sabendo desse facto, praticou-o...
- Doutora juiz, como lhe tentei explicar, eu não consegui...
- Páre. Tudo o que eu preciso de saber está escrito aqui, nos autos. O senhor Fonseca foi presente a este tribunal por ter sido apanhado, em flagrante delito, no roubo de um supermercado, em concreto o estabelecimento Felicio e Irmãos, lda, na passada segunda-feira, dia quatro de Maio. Foi interceptado pelos agentes da autoridade, não ofereceu resistência e devolveu os bens furtados, à excepção daqueles que entretanto consumiu. São correctos, estes factos ?
- São sim, doutora juiza.
- Muito bem... então face ao disposto na lei, não tenho outra alternativa senão aplicar-lhe a pena de prisão por dez dias, ou coima equivalente de 500 euros, correspondente ao valor diário de 50 euros. Compreende o que lhe estou a dizer ?
O senhor Fonseca baixou os olhos, subitamente esmagado pelos números.
- Compreendo sim, doutora juiza.
- Vai pagar a multa, portanto?
- ...
- Senhor Fonseca... opta por pagar voluntáriamente a coima que o tribunal lhe está a aplicar?
O senhor Fonseca enrubesceu, a face cada vez mais corada, pronto a explodir.
- ... Doutora juiza... vossa excelência vai me desculpar... mas eu tenho que falar, que isto está-me aqui entalado na garganta, e se eu não digo isto, eu rebento... a senhora doutora juiza sabe o que é que eu roubei, sabe? Pois se não sabe, eu digo-lhe...roubei dois frangos congelados e duas embalagens de leite... e sabe porque roubei? Eu que nunca roubei nada na minha vida? Roubei porque fiquei sem trabalho, roubei porque fui despedido, porque fiquei com seis meses de salários em atraso, roubei porque tenho um filho lá em casa com fome... não roubei dinheiro, não roubei ouro nem jóias, só roubei coisas de comer... e se depois de saber tudo isto, ainda me está a perguntar se quero pagar 500 euros de multa, só pode estar a gozar comigo... portanto, faça o que quiser, que este país de miserável já não passa...
- Guardas...
- E ainda lhe digo mais... a doutora juiza sabe quem era o meu patrão, sabe ?
- Guardas... levem este homem ...
- Não sabe quem era, não está aí escrito? Mas eu digo-lhe... eu digo-lhe... eu trabalhava naquele supermercado, trabalhei lá durante oito anos... e foi esta a paga que eu recebi... fariam melhor em trazer aquele Felicio a este tribunal... mas não, eu é que aqui estou...
- Guardas... podem levar este homem...
- Senhor Fonseca... a lei é para se cumprir... por todos...
- Tem razão, doutora juiza, tem razão... oxalá nunca precise de fazer o mesmo que eu...