Com extremo cuidado, inclinou-se e apanhou do chão mais uma folha.
Amarelo forte, quase alaranjado - e perfeita, de recortes simétricos, bem delineados, ainda brilhante e com um pé viçoso.
Na mão esquerda, já segurava outras três folhas, idênticas na forma e na perfeição dos traços, mas de tonalidades mais escuras, laranjas quase castanhos.
Afinal… eram essas as tonalidades do Outono.
Deslizou sobre o chão atapetado de folhas caídas, o longo manto a segui-la. Algumas aves mais afoitas pousavam no caminho, na esperança de alimento deixado a descoberto pelas folhas, levadas pelo vento. E a dama do Outono prosseguia imperturbável a sua demanda, na busca de mais algumas folhas.
O que procurava ela?
Algures num recanto que só ela conhecia, muitas outras folhas esperavam pacientemente por todas as que a dama recolhia agora. E da forma costumeira, ela levá-las-ia para junto das outras e voltaria a reordená-las tonas, numa fileira imensa de folhas, meticulosamente ordenadas do amarelo mais claro - quase branco - ao mais escuro dos castanhos, na panóplia das cores do Outono. Era essa a sua estranha, misteriosa missão, ao serviço dos senhores do tempo.
Em breve, teria todas as tonalidades possíveis. Um par de marcas vazias, aqui e ali espalhados pela fileira de folhas, anunciavam os locais exactos das folhas que ela ainda necessitaria de recolher, naquele mesmo dia, no dia seguinte, ou na semana seguinte.
Afinal de contas… o tempo não era ali a causa das coisas, simplesmente a consequência. Quando a sua fileira de folhas estivesse completa, levá-la-ia aos senhores do tempo e só então, nesse mesmo dia e não num outro qualquer, se daria por terminado o Outono e começaria o inverno.
E ela, a dama do Outono, poderia descansar novamente, durante longos meses, até a sua irmã do verão lhe passar o fardo das estações, no eterno ciclo das cores, da água, do vento, do frio e da neva.
Mas isso… seria depois.
Hoje, naquele dia presente… tinha esperanças de ainda encontrar pelo menos mais uma folha, para acrescentar à sua fileira do Outono.
Pela varanda, podia ver o mar.
O mar... tantas e tantas vezes fonte de inspiração, de alento, refúgio seguro de uma praia deserta.
O silêncio reinava ainda, mal interrompido pela algazarra matinal dos pássaros. Olhou sobre o ombro, a porta do quarto entreaberta. Ela dormia.
Uma longa madeixa de cabelos ocultava-lhe os olhos, os braços e o corpo abandonados sobre os lençóis numa posição de entrega, voluptuosa, sedutora.
Ele, por tantas vezes poeta, não conseguia dar à luz naquele momento uma única estrofe, um único verso.
Sentia-se feliz, e não conseguia colocar sobre o papel essa mesma felicidade.
- Porque não voltas para aqui?
Olhou de novo. Ela fitava-o, meia sorriso, meia súplica.
- Julgava que ainda dormias... estava aqui a tentar escrever algo...
Ela remexeu-se sob os lençóis.
- Eu vi, quando me olhaste...
Pousou a folha de papel sobre o grande cadeirão, virado de frente para o mar.
- Ias oferecer-me um poema... pela manhã?
Ele aquiesceu, algo inconformado.
- Nem sempre a inspiração surge... quando queremos dizer algo... e hoje queria mesmo dizer-te algo...
- Algo importante?
Ele concordou de novo.
- Ia fazer-te uma pergunta... uma daquelas perguntas dificeis, com consequências para o futuro... um pedido...
Ela entreabriu os lençóis e a pele branca assomou à superfície.
- Vem... - disse finalmente - vem, e se quiseres, faz a pergunta, faz o pedido... mas se quiseres... até posso responder-te já...
- Podes? Se ainda nem imaginas o que te quero pedir...
Ela afastou os cabelos dos olhos e um sorriso de garota rebelde iluminou-lhe os olhos escuros.
- Sei sim, amor... sei sim. E a a resposta é... sim. Eu caso contigo, eu fico contigo, eu vou contigo até ao fim do mundo...
- Então… como vai isso hoje?
Mal. Hoje, ontem, provavelmente amanhã. Foi isso que lhe respondeu.
- Ora… cá vamos andando… a máquina já está ficando velha…
- Seja optimista, homem. Quanto mais depressa sair daqui, melhor. Ou você gosta de ser cliente dos hospitais?
- Eu? Nem pensar…
- Ora vê? Portanto… veja lá se arrebita… e a propósito, tenho aqui o jornal desportivo de hoje, já o li… quer que lho deixe?
O doente arregalou os olhos.
- Se quero… isso é mesmo um presente caído do céu…
O visitante deixou-se rir.
- Oh, homem, se eu soubesse… mas deixe lá, quando eu passar por aqui amanhã… não me esquecerei… vá… as melhoras…
Acenou-lhe e lá continuou o seu passeio matinal, como em todos os outros dias.
Os doentes daquela ala do hospital não o conheciam e aparentemente o pessoal médico também não.
Mas todos os dias, aquela simpática personagem, já bem entrada na terceira idade, lá percorria todas as enfermarias, todos os quartos, metendo conversa, contando novidades, distribuindo jornais e revistas, por vezes até livros.
E sempre com o mesmo sorriso.
Depressa todos se convenceram tratar-se de um elemento de qualquer organização de voluntariado, destacado para a ala de cardiologia daquele hospital.
E ele lá ia brincando, classificando os enfartes como de terceira divisão ( os insignificantes ), os da primeira liga ( aqueles mais dignos desse nome ) e os que davam acesso ao Mundial ( os de apuramento mais complicado ).
- O seu enfarte, complicado? - dizia sempre - não me faça rir. Ainda ontem perguntei ao seu médico, só para tirar as dúvidas… e ele disse-me que lhe vai dar alta para a semana. O seu foi daqueles de terceira divisão, oh homem…
E brincando, brincando, os dias passavam mais alegres, na ala oeste do hospital.
Até que, naquela manhã de sábado, Novembro, o simpático visitante não apareceu, ele que conseguia ser mais pontual que o receituário médico.
- Porque não apareceu? Quem era? - queriam todos saber - ele nunca falha, um único dia.
As enfermeiras do piso, num estranho silêncio, murmuravam pelos cantos, longe dos ouvidos dos doentes.
- Doutora Wania… então o nosso visitante, onde anda ele? Hoje não o deixaram vir visitar-nos?
A médica, uma das mais jovens do hospital, ainda abriu e fechou a boca várias vezes, hesitante nas palavras.
- Dona Hortense… sabe… a sua visita, isto é, aquele senhor que vinha aqui todos os dias…
- Nem sabemos como ele se chama, doutora.
- Ah… chama-se Eugénio, Dona Hortense. Isto é… chamava-se Eugénio…
A doente fixou o rosto da medicam habitualmente sereno e descontraído. Notou-lhe um pesar sentido, como se fosse portadora das piores noticias.
- Chamava-se? Então quer dizer…
A doutora Wania assentiu com a cabeça.
- Sim, Dona Hortense, ainda ninguém sabe, a senhora é a primeira. O nosso Eugénio…. Morreu ontem à noite.
- Mas… a doutora conhecia-o? Fala como se o conhecesse bem…
- Conhecia sim… conhecia-o bem… e gostava muito dele, era um bom colega…
- Ah, então era médico… bem me queria parecer, eu sempre suspeitei…
- Médico? O Eugénio?
E a doutora riu-se, os olhos brilhantes de emoção - Não, Dona Hortense, o Eugénio não era nenhum médico, era um doente aqui do hospital, tal como a senhora.
- Um doente? Mas como? Eu nunca o vi por aqui…
- Pois não… o Eugénio tem estado sempre internado na ala de oncologia. Há muito que se encontrava em estado terminal… mas nunca baixou os braços…
- Pensei, doutora… como lhe chamou colega…
A médica deixou transparecer um olhar de tristeza.
- Éramos colegas, sim… de um modo muito especial, e cada uma com as suas tarefas… sim, creio mesmo que era o meu melhor colega deste hospital…
Tudo de bom para ti, Wania.
Maria do Carmo Miranda da Cunha
Lembrava-se dela, sim.
1939, uma noite quente de Dezembro, quase ano novo.
Naquele mesmo local, outrora bem reluzente, atapetado de vermelho, as limusines a desfilar como pirilampos na noite. Os artistas, os famosos, os políticos de então, o governador, a aristocracia das redondezas…. Quem não gostaria de assistir a um dos shows do casino da Urca?
O casino, naqueles tempos já longínquos, reunia todo o glamour do cinema. Não raras vezes, os astros de Hollywood eram vistos nos camarotes, bebericando taças de espumante, numa vida boémia que o antigo bairro da Urca - pejado de aristocratas do Rio de Janeiro - sempre conseguira cativar.
E bem ao lado do casino… a praia, o sempre tentador areal branco.
Como o tempo passara rápido, desde aquela noite.
Teria ele talvez… dez, onze anos, não mais. Ajudava o pai na limpeza dos camarins, levava bouquets de rosas às coristas, polia os espelhos. E, naquela noite tão especial… ela iria actuar.
Bebeu mais um gole de café. Forte, de travo azedo. Como ele sempre gostara.
Bem no centro da parede do pequeno bar, no fim do areal, o cartaz do espectáculo, já amarelecido pelos anos, continuava a despertar-lhe as memórias, por mais que o tentasse ignorar.
Em grandes letras douradas, ainda se conseguia ler distintamente:
" Hoje, espectáculo com a estrela Cármen Miranda…"
Sim… lembrava-se dela. E daquele espectáculo, daquela noite.
Roubara uma rosa de um camarim e oferecera-lha. Ela, atarefada nos últimos retoques da maquilhagem, sorriu-lhe, deu-lhe um beijo na testa e desejou-lhe as maiores felicidades. E para seu deleite, cortou o comprido caule da rosa e ajeitou-a no seu toucado, por entre o colorido da fruta. Depois, piscou-lhe o olho.
- Vês? Assim saberás que não me esqueci de ti…
Setenta anos.
Como o tempo passara depressa.
Sorveu o último gole de café.
Ele também nunca a esquecera.
A sua diva, a sua primeira paixão de adolescente.
Hoje.... será uma história diferente. Lembrei-me de partilhar convosco esta experiência, um desafio mútuo entre a a folha de papel e a rádio, entre o escrever e o ler uma história.
Pronto. O cenário é o estúdio da Rádio Elvas. A data? Outubro de 2009.
Foi uma experiência agradável? Muito, mesmo muito. Depois contarei mais pormenores.
Um grande abraço para todos e depois digam-me se gostaram, está bem?
( Sim, eu sei.... claro que tenho sotaque alentejano, não é ? )
Rio de janeiro, Leblon. Noite quente de Novembro.
- Márcia….Márcia. Não te esqueças das horas, tens que ir buscar a tua irmã…
- Sim, mãe… tem tempo. Ainda são dez horas.
A mãe cruzou os braços, como sempre fazia quando já pressentia o desenrolar de uma história.
- Márcia… nem mais um minuto. Levanta-te e vai buscar a tua irmã. Podes apanhar trânsito, não quero que ela fique lá sozinha à espera…
A filha ainda tentou esboçar um "mas" - inutilmente, conhecia bem aquela expressão da mãe - e lá acedeu, contrariada, a desligar o pequeno computador.
- Sabias que és muito chata? - e deu-lhe um beijo, enquanto apanhava a carteira e as chaves do automóvel. - A tua sorte é que eu te adoro…
A mãe riu-se.
- Claro, claro…. Vá, despacha-te…
Deixou-se cair sobre a poltrona, defronte da televisão.
- Finalmente…. Um pouco de descanso… também mereço…
São Paulo, avenida paulista. Noite quente de Novembro.
- Tens a certeza? Nem um chopinho?
- Nah…. Hoje não pode ser…. Já viste a pilha de processos que ainda tenho aqui em cima da mesa?
- Já… já vi. E tu por acaso já viste que horas são? Dez horas.
- Eu sei, eu sei…. Vou só ficar mais um pouco, talvez meia hora…. Mas tenho mesmo que despachar mais alguns, tenho o arquivo todo desactualizado…
- Muito bem…. Olha, se mudares de opinião, estou no barzinho do costume…
Acenou.
Quando o colega saiu, o silêncio - exceptuando o zumbido do ar condicionado - era total.
- Bem… vamos a isto - resmungou para si próprio - ataquemos a maldita pilha dos pendentes…
Rio de Janeiro, Leblon. Noite quente de Novembro.
- Estou farto, Jô. Estou farto…
- Por favor… não faças isso…. Wilson… acalma-te…
- Não… não aguento mais… dizes sempre o mesmo… e voltas a fazer, uma e outra vez…. Não aguento mais…
- Wilson… foi sem querer… estava no bar…
- Não… foram muitas vezes sem querer, Jô… muitas vezes, mesmo…. Não consegues resistir, é mais forte que tu…
- Jô… pára. Acabou.
E sem mais, saiu porta fora.
Imóvel no meio da sala, o ex-companheiro ficou a vê-lo desaparecer no corredor.
- Não vás… - ainda tentou gritar. Mas a garganta permaneceu muda, o nó demasiado apertado para mais lamentos que o simples silêncio.
Fechou a porta devagar. Desligou as luzes e encostou-se à varanda, observando a praia, a avenida concorrida, os faróis coloridos dos automóveis e os pirilampos vermelho-azuis dos carros da policia, de um lado para o outro.
E foi no preciso momento em que o semáforo mudava para verde… que tudo se apagou.
De repente, uma escuridão estranha abateu-se sobre a cidade. As luzes dos apartamentos, os semáforos, os candeeiros da avenida, os neons, os placards de publicidade, os lampiões pendurados nas esplanadas da praia… envolvidos no breu da noite.
De repente, a única claridade resumia-se ao branco-vermelho dos faróis dos automóveis, rasgando feixes de luz por entre a escuridão.
- Esta agora… um apagão?
Um pouco por toda a parte, uma multidão desesperada percebia a ausência da energia. Desde o comerciante - casa cheia de clientes, prateleiras cheias, ao elevador do prédio ao lado, parado bem entre o segundo e terceiro piso, a televisão resumida ao silêncio, os frigoríficos quentes, as ventoinhas de tecto imóveis, alguns semáforos laranja intermitentes, outros apagados. Medo, insegurança, escuridão, o ancestral medo da noite escura.
- Logo agora? Não podiam ter esperado pelo fim da novela? - e a mãe de Márcia lá se levantou, encaminhando-se para a varanda. - Que altura para falhar a energia…
No exterior, nada.
- Nunca tinha visto nada assim… - ouviu uma voz, bem perto de si.
Olhou sobre o ombro, a claridade dos faróis projectando sombras sobre as frontarias dos edifícios. O vizinho do lado, moço ainda novo, fumava um cigarro encostado à amurada.
- É mesmo… altura ruim… e foi geral, não se vê uma única luz em toda a avenida…
Ele concordou, com um aceno de cabeça.
- Nunca tinha visto semelhante apagão…. Depois destes anos todos, nunca.
Foi a vez dela concordar.
- Digo o mesmo…. Já estou aqui vai para quase oito anos… nunca vi algo assim…
Ele soltou uma baforada de fumo, como cabelos soltos ao vento.
- Coincidência… eu também vim para este apartamento há quase oito anos…
- É mesmo? Mas eu não me lembro de alguma vez nos termos cruzado…
- Também o creio…. Não me lembro de alguma vez a ter visto… nem no elevador…
- Estranho, não é? - e passou a mão pelos cabelos - vizinhos, morando no mesmo prédio, no mesmo andar… e nunca nos encontrámos… em quase oito anos…
- É… é a vida …
E remetendo-se de novo ao silêncio, continuaram encostados às respectivas varandas, observando o movimento ininterrupto dos automóveis, ao longo da avenida. Não sabiam - como poderiam saber - os milhões de outras pessoas desprevinas e atónitas, reagindo a medo, com desconfiança…. Ao apagão.
Por uma simples noite, a noite foi simplesmente uma noite…. Mais escura. Muito mais escura.
"As horas morrem, assim de repente
E eu morro com elas.
Trocava a glória, o beijo da eternidade
Pela paz dos anónimos, pela felicidade,
Um jantar à luz das velas
Um leito desfeito, um amor presente."
O prefácio, como todos os outros da sua já longa lista de obras publicadas, fora escrito pela sua amiga Joana, na forma de um poema.
"Memórias de um quarto vazio" - assim se chamava aquela punhado de páginas, com uma capa carmim, exibindo uma peça de roupa abandonada no chão atapetado de um quarto de hotel; um punhado de folhas na forma de um romance, retratando a vida de uma quase vulgar vendedora de produtos de cosmética, saltitando de hotel em hotel, de cidade em cidade, os seus amores e desamores, a sua procura por uma paz tardia de encontrar.
Eunice, a escritora, também bebia muito da sua personagem, desenhara-a à sua imagem e semelhança, como barro fresco. A vendedora, a irrequieta Sofia, era uma mulher independente e rebelde, que disfarçava a solidão com aquele hábito de nunca conseguir adormecer sozinha, mesmo que a companhia fosse alguém que acabasse de conhecer durante a noite. Ela, Eunice, não era independente mas ainda rebelde. De uma forma que não conseguia definir por completo, sentia que ainda não folheara as páginas mais interessantes da sua vida. E talvez por isso mesmo agora se sentisse mais apressada, mais sôfrega, na ânsia de atingir esse ponto de não retorno, onde tudo mudaria, e quem sabe…. A Eunice do presente voltasse a ser a Eunice que sempre desejara ter sido.
Com um gesto vagaroso, sorveu o café quente da caneca de louça.
O sol de Inverno entrava timidamente pela janela, rasgando os vidros baços e reflectindo-se no tapete branco e na roupa nele despejada de rompante.
Por um momento, imaginou o mesmo sol noutra vidraça, num outro lugar, talvez numa cabana à beira mar, numa casa velha de província, num recanto com um jardim de rosas e malmequeres, um quintal de arvores de fruto, telhados de madeira e quem sabe, uma chaminé para as noites frias de Inverno.
Mas nem isso seria o mais importante.
Mais um gole.
Um suspiro e um revolver de lençóis.
Olhou de soslaio por cima do ombro. Ainda dormia.
Tentou desesperadamente lembrar-se do nome dele, mas não conseguiu. Recordava simplesmente que o conhecera durante o jantar, na noite anterior, depois da sessão de autógrafos - o lançamento do novo livro.
A solidão - pensou - não era boa companheira. Mas a companhia de ocasião… seria?
Pousou a caneca vazia e em silêncio, foi apanhando as peças de roupa atiradas para o chão. O espelho do quarto - enorme, como em todos os quartos de hotel - surpreendeu-a assim, nua e agarrada a um punhado de roupas. Abriu os olhos de espanto.
A sua Sofia, a vendedora de cosméticos, deveria ter aquele aspecto. Imaginara-a assim, também, sem maquilhagem, as primeiras rugas a despontar, o peito a perder a firmeza de outros tempos.
- Adeus, Sofia…. - disse finalmente, como se falasse para consigo mesma - estou farta de viver a tua vida…. Vou voltar a ser Eunice….
Não fosse domingo de manhã... e talvez o parque, bem encaixado ali no centro da cidade dos arranha-céus, não estivesse tão vazio.
Mas o sol acabara de despontar sobre as montanhas do sul e o vento fresco do outono retia no conforto das casas os habituais corredores de fim de semana, os atletas viciados e os passeantes de animais.
O parque, aquela hora tão matinal, era um mundo de silêncios, quebrados uma vez por outra pelo canto dos pássaros ou pelos gritos estridentes dos esquilos.
O lago, adornado de patos e cisnes, ainda não recebera as habituais visitas; as crianças com saquinhos de pão, os pequenos barcos à vela, os botes de remar.
Sentou-se.
O velho banco de madeira, já bem precisado de pintura nova, rangeu sob o seu peso.
Não necessitava de fazer nada; sabia que dali a muito pouco tempo, eles se aproximariam, curiosos como sempre, à espera de um pedaço de pão ou outra guloseima qualquer.
Ele sabia disso também.
E como sempre, trouzera no bolso os dois saquinhos de plástico, bem cheios dos pequenos mimos para os “seus” cisnes.
Ficou a vê-los aproximar, sulcando graciosamente as águas imóveis – sem esforço, sem ruido, como veleiros em mar aberto, rasgando simplesmente a superfície das águas.
- Magníficos – pensou – simplesmente magníficos...
O grupo habitual era constituido por quatro cisnes, sempre nadando juntos, numa formação milimétrica que, obedecendo a ordens invisíveis, faziam com que todos guinassem na mesma direcção, em perfeita sintonia de movimentos.
- Aí estão vocês...
Abriu um dos saquinhos e entreteve-se metódicamente a atirar os pequenos pedaços de pão que trouxera para a água. Os cisnes, com um à vontade que o hábito já criara, nem disputavam os pedaços de pão, limitando-se a esperar que ele os atirasse para mais perto. Sabiam que todos receberiam o seu quinhão.
Sempre fora assim... e de há muito tempo.
- Mas... e o azul? – interrrogou-se de súbito – Onde está o azul?
Um, dois, três... três cisnes. Faltava um cisne, o seu cisne azul.
Sempre lhe chamara azul pelo colar de penas azuladas que lhe ornava o longo pescoço branco.
O seu cisne azul... sempre fora o especial – desde muito cedo, quando percebera que ele era o unico que não se interessava pelas migalhas de pão. Munira-se de paciência para lhe descobrir os gostos, e de tudo tentara; bagos de arroz, banana, amoras.... até finalmente acertar.
O cisne azul adorava... pedacinhos de maçã.
E com uma dedicação infinita, ele cortava as maçãs em pequenos pedaços e levava-as num segundo sauinho, como se de uma ementa especial se tratasse.
E agora... onde estaria o seu cisne azul?
Esperou em vão, procurou nos extremos, junto aos juncos, às ervas altas da margem. Estaria doente? Teria sido levado do lago?
- Onde está ele? – perguntou em voz alta, como se os restantes cisnes lhe pudessem grasnar a resposta.
Mas não. Nada nem ninguém lhe respondeu.
E sem perceber bem como nem porquê.... sentiu-se de repente um pouco mais triste, ou sózinho.
- Posso sentar-me aqui?
Acordou subitamente, os pensamentos interrompidos pela voz cristalina.
- Anh… claro, claro… deixe-me só afastar os saquinhos…
Ela sentou-se, ainda ofegante da corrida.
- Vê-se que está mesmo a precisar de uma pausa…. - lá foi ele dizendo, vendo-a corada do esforço.
Ela riu-se, divertida.
- É verdade… acho que hoje abusei um pouquinho… nem é habitual cruzar o parque por este lado mas hoje… sabe como é…por vezes dão-nos aqueles repentes…
Ele continuou a esvaziar as migalhas de pão, ela a esticar os membros cansados e a respirar longamente, tentando baixar o ritmo.
- Isso que aí tem nesse saquinho… - e ia apontando para o saquinho de plástico ainda fechado, abandonado sobre o banco - por acaso não são pedacinhos de maçã, pois não?
Ele virou-se para ela, meio atónito, meio distraído.
- São… por acaso são… se gostar, sirva-se…
- A sério? Posso? Nem sabe como gosto… pedacinhos de maçã, já cortadinhos e tudo…
E abrindo o saco, pegou em dois pedacinhos e colocou-os na boca, deliciando-se com o sabor.
- Hum… são óptimos… mesmo muito bons… a sério que não se importa se eu tirar mais um?
Ele sorriu - Claro que não… sirva-se à vontade…
Simpatizou com ela. O fato de treino branco, aquela gola azul, o cabelo despenteado sobre os ombros… fazia-lhe lembrar algo de familiar, apesar de não lhe surgir à memória o quê.
- São mesmo bons… - lá continuou ela - e olhe que coincidência, ainda bem que decido correr por este lado do parque… mas… não come também? Não gosta?
- Os pedacinhos de maçã? Não, não… não eram para mim… mas sirva-se… ainda bem que gostou…
Ficou a olhar para ela, a alegria a brilhar-lhe nos olhos. Ou talvez fosse simplesmente a juventude.
E de repente, assaltou-lhe o espírito aquele pensamento incómodo de que talvez - quem sabe, talvez - há demasiado tempo que se estivesse a esconder do mundo, refugiando-se no silêncio, vivendo um luto que há muito já perdera toda a razão de ser.
Tudo… mas mesmo tudo na vida… continuava.
- Olhe… - e viu-se a estender-lhe a mão, num cumprimento banal - eu sou o João…
- Que simpatia, João… e obrigado pelos pedacinhos de maçã… são mesmo muito bons… eu sou a Joana…
Riram os dois.
- Joana? … Engraçado… João, Joana… mas pronto, Joana… quando acabar de devorar esses pedacinhos de maçã, será que me quer fazer companhia num café com uns bolinhos? É que… de a ver comer assim… até me abriu o apetite…
Ela riu-se, os olhos de cisne a disparar sobre ele.
- Um café? Claro que sim… e paga você?
Foi a vez dele rir.
- Pagar? Claro que pago. Desta vez… pago eu…. Mas para a próxima…
Ela acenou a cabeça, simplesmente.
E voltou a rir.
A pequena Matilde ergueu delicadamente os braços… um, dois, três… para cima… para baixo…
- As pontas, Matilde… as pontas.
Ela obedeceu.
Para cima, para baixo… uma meia volta para a esquerda, a curva… novamente a volta, os braços… aquele pequeno desequilíbrio…
- O pescoço direito, Matilde… sempre a olhar em frente… em frente… isso mesmo.
E continuou repetindo, uma e outra vez, a mesma sequência de movimentos.
Chegara finalmente… o grande dia. O ensaio geral decorrera normalmente, sob o olhar atento da professora.
Por quanto tempo treinara ela os "Frappê", o "Rond de jambe", o "Pás Chassé" ?
Quantas horas por dia, apesar de todos os contratempos dos horários, dos dias de frio e chuva, das viagens cansativas de casa até ao pequeno ginásio, do outro lado da cidade?
Quantos sacrifícios?
Ali bem perto… ouvia os aplausos do publico.
A Julieta, a sua colega de ensaios, dançaria nesse momento o tema central do "Quebra-Nozes", acompanhada pelos figurantes do ginásio.
E, a julgar pelos aplausos… todo o treino, todo o empenho… estariam agora a ser justamente recompensados.
E a seguir… seria ela.
A bela adormecida, de Tchaikovski.
O acto principal, onde ela deveria percorrer o palco em pontas, leve como uma borboleta, os braços em flor a tocar as nuvens.
Conseguiria?
Seria capaz?
Sentiu uma mão pousar-lhe sobre o ombro.
- Não estejas nervosa… tu conheces todos os passos…
Ela sorriu, tremendo por dentro.
Conhecia, claro que conhecia todos os passos. Sabia-os de olhos fechados, sonhava com eles, ao ritmo dos acordes que já nem precisava de ouvir.
Mas, mesmo assim… o receio. O receio da reacção do público.
- Podes vir… - assomou alguém à porta - a Julieta está já a terminar…
Seguiu pelo corredor, hesitante. O maillot arroxeado, as lantejoulas bordadas, a fita no cabelo, a sapatilha escura.
O que iria ver o público?
Uma sapatilha.
Tentou… mas não resistiu a um último olhar, antes do subir do pano.
A prótese era quase, quase perfeita… mas mesmo assim, não era a sua verdadeira perna, perdida naquele trágico acidente de moto, três anos antes…
Sob a cor suave do maillot, notava-se facilmente o pé articulado de plástico e metal, que ela conseguira dominar, a pouco e pouco, com uma persistência infinita.
Ainda no hospital, poucos dias depois do acidente, olhando para a perna ausente, decidira firmemente para si própria:
- Não, não e não… o sonho não vai terminar aqui… recuso-me a terminar aqui…
O pano vermelho subia, vagarosamente.
Avançou até ao centro do palco, esperando o inicio da musica.
Mas entretanto… algo aconteceu.
Primeiro um, depois outro, depois ainda outro, uma multidão de rostos anónimos levantava-se das cadeiras e aplaudia de pé, contagiando todos os outros que, em poucos segundos, se ergueram e estrondosamente aplaudiam… a coragem.
A pequena Matilde tentou permanecer imóvel, os braços para cima, um pé cruzado à frente do outro, na espera impaciente dos primeiros acordes.
Uma lágrima de emoção deslizou-lhe pelas faces miúdas.
O sonho… o sonho ia realizar-se.
Finalmente… os primeiros sons… inconfundíveis, da bela adormecida encheram a penumbra do teatro.
Fechou os olhos… e deixou-se ir.
O pequeno Rodrigo, olhos azuis como o céu, olhava extasiado para a pequena borboleta branca que lhe pousara sobre a mão.
- Olá, Rodrigo...
Muito tempo antes, o Rodrigo apercebera-se, da pior forma possível, que não era uma criança igual a todas as outras. Médico após médico, especialistas em cadeia, todos lhe auguraram um destino sombrio – o Rodrigo não suportava a luz, o sol, o ar mais forte do verão.
Apesar de todos os tratamentos para lhe suavizar a enfermidade, o Rodrigo confinara-se ao seu próprio casulo, à velha casa da aldeia – de paredes grossas, caiada de branco, com um grande pátio de arcadas no interior – onde ele tanto gostava de correr, saltar, subir aos ramos mais altos da velha oliveira ou até assustar os peixes vermelhos do pequeno lago.
Os pais, na ânsia de lhe suavizar a prisão, taparam parcialmente o grande pátio, criando zonas de sombra onde o pequeno Rodrigo pudesse brincar, ler os seus livros da escola ou até brincar com os amigos, quando estes o visitavam.
Rodrigo, o branquinho – como gostavam de lhe chamar.
- Gostava de ter pássaros no quintal – pedira ele à mãe certo dia. – Achas que poderemos arranjar alguns, mãe? Por favor? Seria divertido, tenho a certeza...
A mãe não lhe conseguia dizer não.
- Oh, Rodrigo.... claro que podemos... mas olha lá, tu já tens pássaros no quintal... eu vejo sempre por ali bandos de pardais, libelinhas.... até borboletas... para que queres tu mais pássaros?
- Oh, mãe... então tu não vês? É que esses não são meus, esses vão e vêem quando lhes apetece, nunca sei quando eles ali estarão...
A mãe sorriu, divertida.
- Nisso tens razão, Rodrigo... os pardais e as borboletas creio que nem resistiriam... se os prendesses numa gaiola. Mas olha... porque não tentas tu atraí-los para o jardim?
Os olhos do pequeno Rodrigo brilharam.
- Atraí-los para o jardim? Como posso eu fazer isso?
- Oh, Rodrigo.... mas isso é muito fácil... só tens que cuidar do jardim, torná-lo bonito, apetitoso, cheio de flores e sementes... e assim, tenho a certeza, todos os pássaros das redondezas quererão vir aqui fazer o seu ninho...
- Oh, mãe... achas... achas mesmo que aconteceria? Eles viriam?
- Claro que viriam... ah, a propósito... também não te podes esquecer da água... sempre água limpa e fresca para eles saciarem a sede.
E assim de repente, o pequeno Rodrigo descobrira uma ocupação para os seus dias habitualmente monótonos, refugiado na penumbra do quarto, diante da televisão ou do computador.
Dia após dia, esmerou-se no cuidar dos canteiros, na limpeza dos musgos, no aparar da relva, até colocando pequenas latas cheias de água espalhadas ao longo das paredes, nas zonas mais frescas.
E como ficou deliciado, quando certa manhã ao sair para o jardim, descobriu um mar de borboletas brancas a dançar graciosamente sobre o canteiro das campainhas lilazes.
E depois... vieram as andorinhas.
E os pardais.
Um cuco.
E uma vez por outra, um rouxinol tímido e inquieto, que fugia mal ele abria a janela.
- Olá, Rodrigo – repetia a voz, baixinho.
O pequeno olhou para a borboleta branca que lhe pousara na mão, sem querer acreditar.
- Quem... falou? Quem me está a chamar?
A borboleta abanou as asas ao de leve, como se lhe estivesse a pedir atenção.
- Fui eu... eu mesma, pousada aqui sobre a tua mão... só te queria agradecer...
- Agradecer? – e o pobre Rodrigo mal conseguia soletrar as palavras, de maravilhado que estava – mas tu falas? Como é possível que tu fales?
- Oh, Rodrigo... claro que eu falo, claro que todas nós falamos... mas nem sempre vocês nos ouvem... mas sabes... eu vim mesmo agradecer-te...
- Mas porquê? Que fiz eu para que me queiras agradecer?
- Fizeste este jardim, Rodrigo... – e abanou novamente as asas – e sem o saberes, ajudaste-nos a todas nós... pequenas borboletas brancas... que nem conseguimos suportar a luz do sol...
- Vocês... vocês são como eu?
- ... e graças ao teu jardim, cheio de flores, sementes, água e sombra, muitas sombras... aqui podemos descansar todos os dias, em paz... por isso te quis agradecer... sem o teu jardim... nada disto teria sido possível.
E soltou-se dos dedos, volteando graciosamente no ar.
O pequeno Rodrigo, ainda de boca aberta, ficou a vê-la afastar-se.
Tão embriagado de felicidade estava... que nem se apercebeu da chegada da mãe.
- Rodrigo.... meu filho, não te descuides com as horas.... olha que o sol está quase a despontar...
Ele voltou-se para a mãe, o rosto radiante de felicidade.
- Mãe, mãe.... nem vais acreditar no que acabou de acontecer, agora mesmo... nem vais acreditar...
A estranha figura alada descreveu um novo círculo nos céus; procuraria algo, perscrutando tão atentamente os rochedos, lá em baixo no solo?
O sol despedia-se vagarosamente das nuvens arroxeadas.
No solo, as criaturas do dia apressavam-se nos seus afazeres diários, preparando a noite que se avizinhava. A noite seria sempre um tempo de espera, um tempo em perigos e sobressaltos, de vida e de morte.
No mundo de todas as coisas vivas, a noite era idêntica ao dia. O dia possuía as suas criaturas, o seu ritmo, a sua luz; a noite despojara-se da luz mas rodeara-se de mitos e lendas, de seres mitológicos que guardavam os portões do crepúsculo e que, em certas noites de lua cheia, até conseguiam imitar o canto das sereias ou o uivo dos lobos.
A noite era simplesmente…. A porta da alvorada.
A criatura alada continuou planando sobre os céus, cada vez mais escuros.
O seu corpo, lembrando as formas majestosas de um leão, garras portentosas e cauda arrogante, era encimado por uma cabeça de águia, asas imponentes e penugem brilhante. Um grifo.
Um ser prestes a desaparecer dos céus, como já tinham desaparecido antes dele muitas outras criaturas fantásticas, extintas com os tempos antigos, onde a magia agonizava já dentro das páginas bolorentas dos livros dos bruxos.
O grifo planava, talvez o seu último voo.
Muito abaixo, sobre os rochedos, as doze sacerdotisas - vestes brancas, grinaldas de flores nos cabelos - esperavam pacientemente.
Câncer, Libra, Gemini, Aures… todas elas idênticas, todas elas tão diferentes, representando os elementos sacros do universo, a terra, o fogo, a água, o ar, as imagens do Zodíaco.
Uma delas seria a bafejada pelo voo do grifo, tal como muitas outras já o haviam sido, por outras criaturas à beira da extinção, em tempos idos.
Aquele era, porém, o dia do grifo.
O belo animal planou, descrevendo círculos cada vez mais apertados, mais baixo, mais baixo… até abrir as asas de águia e pousar no centro do círculo formado pelas sacerdotisas.
Durante um longo momento, os olhos aguçados observaram as doze figuras, lendo-lhes a alma. Elas permaneceram em silêncio, esperando pacientemente o cumprir de um destino anunciado.
Finalmente, o grifo arrastou-se até junto de uma delas, enrolou-se aos seus pés e, entoando um último lamento, imobilizou-se para sempre.
Libra, a escolhida… inclinou-se sobre a estranha criatura e ao tocar-lhe com os dedos a penugem macia das asas…. Uma claridade desprendeu-se do corpo inerte e impregnou as vestes brancas da sacerdotisa, como uma auréola. O grifo, imóvel … solidificou-se, escureceu…. E em breve nada mais restava, para além da memória, uma estátua de pedra macia, uma estranha criatura alada, de corpo de leão e cabeça de águia, que outrora sobrevoara os céus e vigiara os portões da madrugada.
As sacerdotisas partiram, cada um para seu destino, até um novo chamamento.
Excepto Libra, sentada ao lado de uma estátua de pedra.
Olhou para os céus.
Em tempos, um grifo planara sobre eles.
Nota: Vá lá saber-se porquê, o meu amigo João Meneres não é do signo Balança ( Libra ) como lhe competia pelo Grifo, mas Escorpião. Mas pronto, amigo João, mesmo assim ... cá vai. Uma possível origem para esse nome de blog tão... planante.
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