
Nunca quisera contá-las.
Mas eram muitas, uma pétala rosa escura por cada tristeza que marcara no pequeno diário.
A vida ainda não lhe sorrira, talvez até pelo contrário.
Durante a adolescência, vira partir a mãe, um saco de viagem às costas, um simples beijo de despedida. A casa ficara subitamente vazia, o pai ao volante de um camião dias a fio, ela entregue a si própria, intercalando os dias de solidão com visitas esporádicas às casa da avó Joana, do outro lado da cidade.
Coleccionou amores e desamores, experimentou tudo o que lhe pediram para experimentar, suplicou por afecto a todos quantos conhecia, tentou crescer e não enlouquecer, mesmo quando os dias se arrastavam naquele interminável rol de horas mortas, despojadas de emoções.
Finalmente, a doença levara-lhe também o pai e ela depositou mais uma pétala no diário. Dia 28 de Janeiro, uma data como outra qualquer.
Uma brisa de fim de tarde agitou-lhe a longa cabeleira escura.
Debruçada sobre o molhe, contemplava o mar, talvez a única visão que verdadeiramente lhe serenava o espírito.
Uma pétala mais esguia fugiu-lhe por entre os dedos, prontamente arrastada pelo vento.
Mas ainda sobravam muitas – demasiadas – que apertava firmemente entre as mãos.
Tomara uma decisão.
O pequeno diário não comportava mais tristezas, as páginas pejadas de pétalas rosa escuras. Um dia, teria que colocar um fim naquele amontoar de cinzas do passado. Sim, cinzas. Um passado que lhe esfriara o coração e a alma, deixando-a com a cor do granito em plena noite escura, gélida e distante como as estátuas dos anjos.
Não. Mais não.
Tomara uma decisão – repetia continuamente para si própria.
Aquele dia seria simplesmente o fim do passado, o primeiro dia do resto da sua vida.
Queria ter direito de novo ao sol, queria redescobrir o prazer das gotas de chuva no rosto, o frio do amanhecer na praia, queria perder o medo de se rodear de pessoas, queria novamente.... dar-se a conhecer aos outros.
Queria deitar fora a sua concha, queria... expôr-se.
Lentamente, abriu as mãos.
As pétalas rosa escura dançaram em circulos sobre as mãos, arrastadas num remoinho pelo vento. Uma a uma, voaram para longe, salpicando o mar de minúsculos pontos coloridos, cada qual correspondente a uma tristeza passada, finalmente liberta de si mesmo.
O futuro só poderia começar depois de se libertar do passado – dissera-lhe alguém.
Era verdade.
Desperdiçara inutilmente muito tempo da sua vida enlutada por tristezas, esquecendo-se de ... continuar.
A última pétala fugiu-lhe das mãos e ela sentiu de repente que um peso enorme lhe fugia também dos ombros.
Sorriu.
Ainda ia a tempo.
Perdera já algumas estações.... mas o comboio da vida... esse ainda o apanharia.

- Já terminaste?
- Não... vou já picar... ai...
- Então? Isto não dói nada...
- A mim doeu-me.
- Deixa ver... claro, claro que te dói, idiota. A professora disse que era para picar o dedo, não era para cortares o dedo...
Riram-se.
O Rui e O Luis partilhavam a mesma secretária. Em Matemática, Fisica... e também ali, no laboratório. Aula de Biologia.
Um dia de experiências... já depois de observadas as cascas das cebolas, de dissecar os pobres ratinhos de laboratório, de observar as asas das moscas ao microscópio. Naquele dia... eles próprios, os alunos, seriam os observados.
Uma simples picadela ( para o Rui, um valente corte ), aplicar uns reagentes... e já está. Toda a gente ficaria a saber o respectivo tipo de sangue.
Claro que primeiro a professora Olivia, uma respeitável decana da escola, ainda explicou quais os diferentes tipos de sangue, as diferenças, a hereditariedade, o factor RH, etc, etc... mas o que todos queriam mesmo era passar da teoria à prática, e vá de picar os dedos.
Duas mesas à frente, faziam-se experiências não autorizadas, claro. Misturavam-se os sangues nas lamelas, adicionavam tinta,tudo para tentar enganar o resultado da experiência ou até – seria o momento de glória – originar um novo tipo de sangue, desconhecido até à data. Claro que seria a fama, até já tinham arranjado um nome para a descoberta e tudo: Sangue tipo CC.
É verdade que o novo tipo de sangue CC nunca viu a luz do dia, e as suas autoras, a loira Carolina e a morena Conceição lá levaram uma valente reprimenda, sendo obrigadas a repetir toda a experiência.
Mas pronto, aos dezassete anos...
O Luis seguia atentamente a mesa da frente. A Carolina, para além dos seus olhos azuis e uns cabelos cor de mel, tinha aquele condão misterioso de lhe aumentar os batimentos cardíacos, sempre que a via sorrir.
O Rui ria-se.
- Qualquer dia, ainda ficas com os olhos tortos...
Divertiam-se, eram amigos.
Dias depois, a cartolina amarela estava pronta, com um quadriculado cheio de nomes e cruzinhas, muitas cruzinhas, indicando o tipo de sangue de todos os alunos.
- E olhem que todos vocês deviam arranjar um cartão com essas informações, e andar sempre com ele na carteira... nunca se sabe.... – insistira a professora, repetidas vezes
Alzira, Ana, Anabela,... bom, está bem.... estavam todos ordenados alfabéticamente.... Laurinda, Licinio,Luis... Roberto, Rosa, Rui...
Ficaram os dois a olhar para a cartolina, ali pendurada no hall de entrada da escola.
Como era possível que entre tantas e tantas dezenas de nomes... só dois tivessem a cruzinha naquela coluna do sangue do tipo A negativo... que como dizia a professora – conservem-no bem, meus amigos, porque não há muitos – como era possível?
Mas lá estava, sem margem para enganos.
Luis.... A negativo. Rui.... A negativo.
Olharam-se de soslaio, um sorriso de cumplicidade estampado nos rostos.
- Será verdade? Somos só nós os dois? – balbuciou o Luis.
O Rui riu-se, bem disposto.
- Olha... cá para mim, em vez de escrever no tal cartão o meu tipo de sangue... sabes o que eu devia escrever? Qualquer coisa assim do género : Chamem o Luis.
O amigo riu-se com ele.
A Carolina apareceu ao fundo do corredor, mas ele nem a viu.
- Vá, anda daí... vamos até ao bar.... hoje pago eu os cafés...
- Tu... hoje pagas? Deves estar doente...
E lá foram, rindo e aos empurrões, corredor fora.
Nota: A dedicatória é mesmo para o Luis, que vocês nem conhecem, não tem o hábito de se sentar aqui à volta da fogueira. Provávelmente, nem se aperceberá deste conto... apesar de ... aquela aula ter sido real, e o resto também. Mas acima de tudo... é bom ter amigos, sabem? Com A grande.

Ainda tentou encontrar uma estação de rádio com musica aceitável... mas sem sucesso.
Invariávelmente... publicidade, tertúlias aborrecidas, anúncios, notícias e mais notícias e claro... desporto, muito desporto. Música... nada.
Desligou o rádio e abriu os vidros. Apesar do calendário indicar Outubro, ninguém diria. Calor, muito calor... daquele calor abafado que prenuncia tempestades, apesar do céu continuar azul e limpo de nuvens.
- Vamos ter um inverno bem seco – dissera o locutor segundos antes. E era verdade.
Precisava de se afastar, de deixar que os pensamentos pousassem traquilos, precisava de um tempo para si próprio.
E como em tantas outras situações passadas, pegou no carro e fez-se à estrada, sem destino, simplesmente pelo prazer relaxante que lhe advinha de calcorrear o asfalto da estrada, solitário, só ele e a sua colecção de dúvidas.
Mal saiu da povoação, a primeira surpresa.
Junto da bomba da gasolina, uma jovem de braço esticado, o dedo arrebitado naquela postura inconfudível de quem pede boleia para algum lado.
- Há quanto tempo eu não via alguém a pedir boleia... e esta miúda arrisca muito, que isto hoje em dia... – ainda pensou.
Nunca fora grande adepto de parar e permitir-se à companhia de estranhos, dentro do seu próprio carro. Claro que, enquanto jovem, também pedira boleia... mas os tempos era outros, bem mais tranquilos, nada que se comparasse com os relatos de violência que todos os dias, enchiam os noticiários das televisões.
Apesar de toda esta relutância, parou junto da rapariga.
- Para onde vai? – perguntou-lhe.
- Para Lisboa? Pode deixar-me num sitio qualquer, sempre será uma ajuda...
Algo no aspecto dela – ou até a entoação da voz – lhe fez lembrar a sua filha mais velha. Aquele visual a lembrar as modas hippies dos anos sessenta, os lenços à volta do pescoço, a ganga esboroada e bastante roçada dos jeans, tudo isto numa rapariguinha que não teria mais que vinte anos, talvez nem tanto.
Ela acomodou-se no banco, a mochila aos pés.
- Não é perigoso andares assim à boleia... sózinha?
Ela riu-se, divertida.
- Claro que é... mas eu também não peço boleia a todos...
Foi a vez dele se rir.
- Ah, bom... sinto-me lisongeado... quer isso dizer então... que eu sou assim uma espécie de...
- ... isso, - terminou ela – isso... uma pessoa de confiança.
Ele ficou a olhar para ela de soslaio. Uma miuda simpática, não havia dúvida.
E falava imenso, oh como falava.
Conversaram sobre o tempo, sobre a universidade, sobre a poluição dos mares, sobre os sonhos dela vir a ser uma reputada biologa marinha, sobre a vida em Lisboa, sobre a sua aldeia, lá bem na Beira Interior, nos pais, nos amigos, até falaram dos animais de estimação, quando se aperceberam que ambos nutriam uma especial afeição por canários e periquitos.
E ele também lá lhe foi dizendo que naquele dia, não ia com destino certo, ia simplesmente gozar um pouco a viagem , arejar as ideias, falar consigo próprio.
E, sem se aperceber, quase como se estivesse a falar sózinho, ouviu-se a ele próprio contar aquela desconhecida que tinha a alma dorida.... roída pela suspeita de que a mulher lhe era infiel.
- Eu... não tenho certezas... mas quase, quase que são certezas... ela anda distante, ela não fala... eu tenho quase a certeza de que ela tem um caso... um caso com alguém, só pode ser isso...
Ela ouvia-o atentamente, esboçando aqui e ali um sorriso, abanando a cabeça em concordância, para lhe dizer que sim, que percebia o que ele tentava dizer, mesmo quando nem todas as palavras faziam sentido.
- No outro dia, creio que no domingo... até se arranjou como se fosse para um baile... a que propósito, pergunto eu? A que propósito? Só podia ser para se ir encontrar com o outro, não vejo outro motivo...
Ficaram uns minutos em silêncio, ele afogado nas suas dúvidas, ela roendo um pirolito que retirara de um dos bolsos da mochila.
- Mas olha lá... – e imediatamente colocou a mão sobre os lábios – desculpe, foi sem querer, estou habituada a tratar toda a gente por tu...
Ele riu-se, bem disposto. Começava a gostar mesmo daquela rapariguinha. Tinha um ar rebelde, mas um sorriso que desarmaria qualquer pai.
- Não faz mal, deixa estar... a culpa foi minha, nem nos apresentámos. Eu sou o Ernesto. Ernesto da Silva, camionista de profissão, neste momento desempregado. E tu? Qual é o teu nome?
- Júlia... Julia Maria.
- Pronto, Julia... tu até pareces uma mocinha simpática... e fico feliz de ter sido eu a apanhar-te na estrada, a sério que fico. Fazes muito boa companhia.
- Mas você... mas tinhas dito que precisavas de estar sózinho... que tinhas vindo arejar as ideias...
- É verdade, e continua a ser verdade. Mas não faz mal. De uma certa maneira, tu até me fazes lembrar a minha filha mais velha... tens até o mesmo gosto para as roupas, parece que voltámos ao passado...
Mais uns minutos de silêncio.
- Sabes que podes estar enganado, não sabes? – disparou ela, sem aviso.
Ele interrogou-lhe o olhar, mas não obteve respostas.
- Enganado? Como assim... enganado? Não percebo...
- Claro que percebes... estás pensando que ela talvez tenha um caso... mas... e se eu te disser que neste momento... ela sente exactamente o mesmo a teu respeito? Que tu é que tens um caso? Que ela é que se sente como ... a vitima?
- Essa agora... porque dizes isso?
A rapariguinha lançou-lhe um olhar enigmático.
- Ora... porque sim. Porque tu também te arranjas muito bem, nos últimos tempos... até compraste um frasco de perfume, começaste a usar camisas bem mais coloridas do que aquelas que usavas habitualmente... creio que ela até estranha porque motivo agora andas sempre de barba bem aparada, quando antes eras um completo desleixado...
Uma buzinadela de um automóvel ao lado fê-lo desviar o olhar e dar uma guinada ao volante.
Mas a que propósito sabia aquela rapariguinha tantos pormenores da sua vida? Ele não lhe contara nada... absolutamente nada... aliás, tinha a certeza de que nem a mulher reparara no frasco de perfume que ele comprara quinze dias antes... como poderia aquela miuda saber?
Virou-se para o lado, perplexo.
- Olha lá, Julia... mas como é...
A frase morreu-lhe a meio nos lábios.
- Júlia?
O banco ao seu lado continuava vazio, tão vazio como estava, quando se sentara dentro do automóvel e ligara a chava na ignição.
Parou o automóvel na berma da estrada, aturdido.
O que se estava a passar? Estava a sonhar? Estivera a sofrer alucinações, durante todo aquele tempo?
Fechou os olhos, confuso e amedrontado. Mil imagens assaltaram-lhe o cérebro, vozes sem nexo, perguntas e respostas cruzadas, imagens do passado, algumas até do presente, de cenas quotidianas, de peripécias, de pequenas alegrias e algumas pequenas tristezas.
Súbitamente, teve a certeza de que precisava de fazer algo.
Ligou de novo a chave na ignição e o carro respondeu-lhe com aquele chiar agudo dos pneus, forçados a inverter a direcção.
Precisava de ... respostas.
Todas as dúvidas... precisavam de uma resposta.