Quarta-feira, 30 de Setembro de 2009
A inspiração
" E então… agarrou-a com ímpeto e puxou-a…"
Não, nem pensar. Aquilo nem parecia uma declaração de amor, quase mais uma agressão na fila do supermercado. Não.
" Olhou para ela e os seus olhos faiscaram aquele brilho que…"
Hum… não, definitivamente… muito selvagem, sem duvida. Nada romântico.
Recostou-se na poltrona, em desespero.
Vazia, vazia, vazia. Nem uma ideia pequenina. Uma simples frase para rematar com chave de ouro a introdução do primeiro capítulo, na cena em que o personagem masculino se deveria declarar à sua amada.
Levantou-se, esticou os braços, bebeu dois goles de água. Bem à sua frente, o cursor continuava a piscar, irritante, a meio da linha inacabada.
Não lhe parecia muito correcto que a inspiração lhe fugisse assim, sem prévio aviso… e ainda por cima numa fase tão crítica, no final do primeiro capítulo. Mas a verdade é que, a cada nova tentativa, as palavras lhe soavam mais ocas, cheias de conteúdo mas … vazias de emoção, vazias de sentimento.
A sua personagem acabara de encontrar o amor da sua vida… e logo agora, que os tinha junto aos dois, num cenário idílico, no hall de entrada de um hotel de conto de fadas… o que deveria ele dizer-lhe? Por favor, por favor, só uma frase, uma frase inspirada… necessitava urgentemente de uma frase inspirada.
Mas… nada.
O nosso escritor sentia-se… insípido - isso mesmo, descobrira o termo certo para descrever aquele estado de espírito quase amorfo, em que queria vivamente expressar algo… e sentia que estava a retirar as palavras do recipiente errado.
" Foi então que decidiu, de uma forma viril…"
Não. Última tentativa.
Não valia a pena insistir.
Fechou o documento, encerrou o computador, acabou de berber a água. O pequeno portátil que comprara no natal anterior era - tinha que o reconhecer - bastante útil, principalmente fora de casa, quando se sentava calmamente a ler as noticias, a colocar os mails em dia ou simplesmente deixava um CD de música a tocar. Mas escrever os seus romances ali… começava a afigurar-se cada vez mais difícil. Ou então… era só uma questão de velhos hábitos.
- E porque não? - resmungou para consigo próprio.
Desligou as fichas e deslocou o portátil da mesa, pousando-o sobre uma cadeira. Depois rumou ao canto oposto do escritório, abriu um dos grandes armários embutidos na parede e, de entre a confusão de pilhas de livros e papéis, caixas de cartão e uma ventoinha de pé alto, ali esquecida desde o verão, apanhou um estojo de cabedal rígido, pouco maior que a mala de transporte do seu portátil.
Levou o embrulho até à mesa e do seu interior retirou um velho exemplar de uma Remington cor-de-rosa, um modelo dos anos cinquentamãe, ela própria também poetisa nas horas vagas.
Com um sorriso nos lábios, entalou uma folha de papel entre os rolos da máquina. Esta respondeu-lhe com o tradicional "clique-clique-clique", o verdadeiro som metálico dos rodízios e carretos em movimento.
Experimentou as teclas.
Ah… que saudades daquela sensação, poder sentir o peso das letras, conseguir observar o movimento dos travessões a elevarem-se e a marcar, de forma bem sonora, a sua letra bem tingida sobre a superfície branca do papel.
" Olhou para ela e sentiu-lhe a urgência. Ela debruçava-se sobre as palavras dele e, por um breve instante… teve a certeza de que ela já adivinhara o que ele ainda nem sabia como dizer"
Sem dúvida… melhor, muito melhor.
Esqueceu as horas e aquele programa de televisão, que tanto gostava de assistir.
E por um bom punhado de momentos, o silêncio do escritório encheu-se com o ruído compassado das teclas, à medida que as palavras iam dando lugar às frases e, sem querer, o segundo capítulo ia surgindo… assim, devagar, ao ritmo próprio da velhinha Remington cor-de-rosa…
Terça-feira, 29 de Setembro de 2009
Memórias
Tirou o capacete, passando a mão pela testa suada. - detestava capacetes, e ter que o utilizar, de cada vez que vistoriava uma obra, constituía um autêntico suplicio.
O inspector da obra, um homem já de meia idade, um par de quilos a mais e já algum cabelo a menos, era, por natureza, uma pessoa sorridente, daquelas que transmitem a sensação de acordar sempre com o pé direito, sem problemas na vida.
Claro que tinha problemas, todos têm problemas. Mas tirando o facto de nunca conseguir esticar o salário até ao fim do mês ou do seu clube favorito de futebol andar pelas ruas da amargura… é verdade, podia dizer que nem tinha problemas.
A saúde, essa era de ferro. A família, apesar de viver longe, reunia-se regularmente e quase todos os fins de semana se encontravam para passeios esporádicos ou churrascadas no quintal. A distância nunca fora impedimento.
Abriu a porta e entrou no edifício abandonado.
Não se considerava um sentimentalista… mas naquele momento sentiu um nó na garganta, como há muito não recordava.
A sua escola, a sua velha escola primária…
Como qualquer edifício antigo… chegara a sua hora. Ali seriam construídos mais alguns blocos de modernos apartamentos, um pequeno jardim, talvez até um parque infantil. A velha escola - há muito o sabia - ia ser demolida.
Nunca pensou poder vir a ser ele o responsável pela demolição, a tal pessoa que daria a ordem para alguém carregar no botão, dar a voz de partida para as bulldozer rasgarem as paredes e esventrarem os recantos que ele tão bem recordava.
Fora o mobiliário que já havia sido retirado, ainda existiam aqui e ali algumas cadeiras, mesas partidas, um velho mapa rasgado pendurado numa parede.
Percorreu o longo corredor que dava acesso às salas de aula. Primeiro, a sala da professora Susana, aquela mulher diabólica que parecia ter olhos nas costas, que via tudo e nada deixava escapar… as casas de banho, o gabinete da directora, a sala do professor Josué - bom sujeito, tinha saudades dele - e as portas de acesso ao pátio.
Que saudades…
E … aquela porta, ainda da mesma cor, aquele verde garrafa, a sala dos arrumos.
Deteve-se, um sorriso a bailar-lhe nos olhos.
Num flash instantâneo, o tempo recuou até uma manhã de Maio de um ano já longínquo, quando no meio do intervalo da manhã ele brincava no pátio. Teria oito? Talvez nove anos.
Ela chamava-se Luísa e tinha os caracóis mais sedutores que ele conhecera em toda a sua curta vida. Sentavam-se na mesma mesa, até partilharam algumas vezes o lanche no pátio.
Mas naquela manhã de Maio, o sol estava mais quente, as flores mais garridas, um aroma diferente pairava no ar.
E, no escuro da sala de arrumos, com a porta encostada e o coração aos saltos, ele beijara-a nos lábios pela primeira e única vez.
Um momento único, irrepetível como todos os primeiros momentos de qualquer coisa. Um momento que o acompanharia como uma lembrança… uma boa lembrança da sua infância.
Voltara a vê-la não há muito tempo, rodeada do marido e dos filhos, uma vida tão normal como a dele próprio.
Não fora nenhuma paixão, não fora nenhum amor, fora simplesmente um beijo.
Simplesmente?
Não, não tão simples.
Fora, isso sim… o primeiro beijo.
Segunda-feira, 28 de Setembro de 2009
Paris, mon amour...
Paris, manhã de domingo.
Sempre gostara de Paris. Não sabia bem porquê, e nem isso era importante - quando muito, conseguia explicar que era uma cidade que lhe transmitia uma sensação saborosa, vagamente parecida a uma brisa, uma cidade romântica, de recantos. Sim, era isso mesmo, recantos.
Ao virar de cada esquina, um pátio, um pequeno jardim, um fontanário, uma ponte. Perdia-se no Quartier Latin, correndo os alfarrabistas, admirando os pintores de rua, espiando as montras das croissanteries - autênticas obras de arte. Como era possível fazer uma montra se croissants… e o resultado ser digno de passar num desfile de alta costura?
Só mesmo Paris, pois então…
Quando decidira pegar no primeiro voo disponível, esquecer tudo e oferecer a si próprio um par de dias de absoluto abandono… só aquele destino o seduziu.
E agora ali, vagueando ao acaso às primeiras horas da manhã… veio-lhe à memória o prazer de respirar o ar boémio da cidade, recordando-lhe que houvera um tempo da sua vida em que ele próprio também fora assim, também se sentira um espírito mais livre, menos acomodado…
O primeiro barco de turistas - japoneses de máquina fotográfica sempre pronta a disparar - soltava amarras no Sena, fazendo-se à cidade luz. Encostado à amurada, inspirou profundamente o ar da manhã.
- Já devia ter feito isto… há muito, muito tempo… - murmurou.
Encaminhou-se para uma das muitas esplanadas, ainda quase vazias.
- Um café… um croissant com queijo…. Um sumo de laranja.
Esticou-se, o sol nascente a bater-lhe de frente, cegando-o de luz. Era mesmo disso que precisava - ainda pensou - sol, muito sol… nada como o sol para afastar os nevoeiros…
Levou a mão à testa, protegendo a vista.
Na sombra momentânea que se seguiu… viu-a.
Há imagens que, talvez pela surpresa, ficam gravadas para sempre no fundo dos olhos, naquele recanto da memória onde cabem as melhores recordações.
Aquele rosto feminino, emoldurado pelo verde das árvores, com o rio Sena ao fundo, seria certamente uma dessas imagens…
Teria uma idade aproximada da sua, se bem que nunca fora muito certeiro em adivinhar a idade do sexo oposto. As mulheres - sabia-o bem - eram exímias actrizes na arte da camuflagem, da transformação… e quando elas não o permitiam, nem adiantava tentar descobrir-lhes a idade… eram intemporais.
Mas … algo naquela mulher era diferente, especial até. Não conseguia compreender, mas sentiu uma mola interior disparar, obrigando-o a não conseguir desviar o olhar.
Ela lia tranquilamente um livro, compassado com alguns goles de chá fumegante.
Só quando ela ergueu o olhar, muitos minutos depois, é que ele compreendeu que ainda não deixara de a contemplar, completamente inebriado de uma sensação de beleza, de uma beleza tranquila que - mesmo aquela distância - conseguia encher todo os espaço em redor.
Os olhares cruzaram-se. Ela esboçou um indefinível sorriso, qual Mona Lisa moderna de uma qualquer esplanada. Em seguida retornou à sua leitura, sempre condimentada com alguns goles de chá.
- Posso … posso fazer-lhe companhia?
Os últimos segundos pareciam ter sido varridos da memória. O que fazia ele ali, de pé e a segurar a bandeja do seu pequeno-almoço, junto da mesa dela? Nem se lembrava de se levantar, percorrer os poucos metros que os separavam, estar ali.
Em simultâneo, um calafrio de vergonha e timidez percorreu-lhe a espinha, paralisando-o. Desejou que o chão de abrisse e que ele pudesse mergulhar, desaparecer por completo da face da terra. Mas… ao invés disso, ali estava ele, de pé, com um sorriso tonto nos olhos, a importunar uma perfeita desconhecida e a impor-lhe a sua presença.
Ela olhou-o tranquila, despindo-lhe a alma. Pousou o livro sobre a mesa e inclinou-se um pouco para a frente, as madeixas alouradas a cair sobre os olhos.
- Antecipou-se um par de linhas… eu ia fazer exactamente a mesma coisa, pegar no meu chá e perguntar-lhe se lhe podia fazer companhia… mas não resisti a terminar este capítulo do livro… e você antecipou-se…
Domingo, 27 de Setembro de 2009
Saudades do mar...
A garrafa verde escorregou-lhe das mãos. Lisa, muito polida, reluzente.
- A garrafa ideal – pensou
Sentou-se no cimo da duna, virado para o mar.
O céu azul confundia-se na linha do horizonte com a mancha escura das águas. Apesar do sol quente de Setembro, a praia estava deserta, as águas geladas, os veraneantes já regressados a casa. As conchas, os búzios, os mexilhões, podiam sair de novo tranquilos pela maré, reis e senhores do espaço que sempre fora seu.
Com a mão em concha, dedicou-se a ver deslizar a areia seca pelo gargalo da garrafa, como se de uma ampulheta se tratasse. Pelo meio, atirou lá para dentro algumas conchas minúsculas, que ficaram a brilhar, reflectindo o sol no vidro polido.
Um pensamento atrevido bailou-lhe no olhar e deixou-se rir. Iria valer a pena.
Só de pensar…
- Já vou, já vou…
Apertou o roupão caqui e desceu as escada aos tropeções. Sábado de manhã. Um dia sagrado. Será que a campainha da porta não deveria adivinhar que era sábado de manhã e, pura e simplesmente, não tocar?
Não… decididamente, não.
Quem seria, a uma hora daquelas?
Abriu a porta e a claridade cegou-a momentaneamente.
- Encomenda para a senhorita Sara…
O moço das entregas, todo aprumado na sua farda azul e cinzenta, esticava o braço, um pacote pequeno, cravejado de selos.
- Uma encomenda? Para mim?
Ele passou-lhe o recibo para assinar e entregou-lhe o pequeno pacote, pouco maior que um pacote de leite.
- Está bem, está bem… desde que não seja…
Levou-o ao ouvido, meio a sério, meio a brincar. Não… não fazia tic-tac… portanto, podia respirar aliviada.
Atirou-se para cima do sofá, mordida pela curiosidade. Ao invés de tentar ler o nome do remetente, atirou-se com energia a desfazer o cartão da encomenda. No interior, muitas tiras de papel, pedaços de plástico, bolinhas de ar… e uma garrafa. Uma garrafa verde.
Ficou a olhar para a garrafa.
Areia? Seria areia, aquilo no seu interior?
Foi então que reparou na pequena folha de papel, caída sobre o tapete da sala. Nem reparara nela, na excitação de abrir o pequeno pacote.
Desdobrou-a, numa curiosidade incontida.
“ Não é bem o mar… só um punhado de areia, para matar a saudade”
Retirou a rolha e entornou um pouco do precioso conteúdo sobre as mãos. Que saudades daquela sensação, dos minúsculos grãos de areia a rolar sobre a pele. Ainda cheiravam a mar.
Fechou os olhos e deixou-se estar ali sentada, por muito tempo.
Só ela… e o mar.
Nota: Dedicado à nossa amiga Sara, aqui sempre sentada à volta da fogueira…. E que em Munique, Alemanha, sente saudades do seu mar.
Sábado, 26 de Setembro de 2009
A batalha dos casacas azuis
Amanhecera.
Um dia como quase outro qualquer, não fosse aquele ser o dia mais importante das suas vidas - dissera o general.
Seria? O dia mais importante ?
Encostado à amurada de madeira, sorveu os últimos goles de café. No acampamento, a azáfama nervosa da véspera dera lugar a um silêncio pesado, do medo que antecede a batalha. Dali a pouco, algures numa planície de ervas altas, uma multidão de rostos anónimos lutaria até à morte, empunhando todas as armas, os punhos, o corpo, o coração.
Dentro da casa improvisada para os jovens cadetes casacas-azuis, ela rolou nua sobre os lençóis amarrotados, chamando-o para o leito.
Ele não podia. Ninguém podia.
Hoje é o dia - dissera o general - o dia que todos aguardaram… e já não é possível voltar atrás…
Washington tinha razão.
No final daquele dia, apenas uma bandeira flutuaria sobre o campo pejado de mortos e feridos. Fosse ela qual fosse, muitos pagariam com a vida o desafio de defender uma causa, certa ou errada. Mas existiriam causas certas? Ou erradas?
Imaginou o que se estaria a passar do outro lado da colina, no acampamento inglês. Os casacas - vermelhas. Estariam eles a sentir o mesmo medo, transportado pelo vento? Saberiam eles o destino que pendia sobre todos?
Não… certamente que não…
Deixou o olhar divagar pela copa das árvores, aquecidas pelos primeiros raios do alvorecer.
O olhar. Aquele olhar…
A juventude transformada, a infância adiada, o casamento à pressa consumado na véspera da grande batalha.
Ele pedira-lhe: esperarás por mim? - ela respondera: Não… irei contigo.
E fora.
O toque mais aguardado soou por todo o acampamento. Toque de reunir.
Pousou o prato e a chávena de café ainda meia. Sentou-se na beira da cama, a contemplar em êxtase as curvas nuas da sua paixão. Dormia.
Não a quis acordar.
Apertou o peito para que o coração não batesse tão forte, ela poderia ouvir. Beijou-a suavemente no pescoço, nas costas, nas coxas. Ela mexeu-se um pouco, sem acordar.
- Adeus, meu amor - ainda murmurou.
Saiu de rompante, para se reunir ao seu pelotão.
Não o sabia. Nem ela, nem nenhum dos outros do seu grupo. Quando a noite caísse, alguém lhe daria a noticia e ela acorreria ao campo de batalha, junto de todas as outras jovens viúvas, para lhe recolher o corpo e chorar a sua memória.
Mas a noite ainda não chegara.
Um último toque. Ordem de marcha.
O homem do tambor iniciou o seu marca-passo.
O jovem cadete olhou uma última vez para o acampamento, à procura de um rosto.
Aliviado, percebeu que ela não chegara a acordar.
Sexta-feira, 25 de Setembro de 2009
Aqueles óculos azuis
- Até amanhã, pro’ssora...
- Adeus, pr’ssora...
Ela lançou-lhes um sorriso.
- Adeus, João... adeus Catarina... portem-se bem... e não se esqueçam de fazer os trabalhos...
Eles sairam em corrida e ela dedicou-se a arrumar os papéis, a apagar o quadro, a apanhar os lápis e borrachas que sempre ficavam esquecidos de um dia para o outro, sobre as mesas ou no chão. Era sempre assim, a rotina diária.
Pousou os óculos acastanhados sobre o tampo da mesa. Gostava da profissão, a sério que gostava, mas naquele dia sentia-se particularmente cansada, como se a semana que ainda ia a meio fosse só um amontoado de segundas-feiras, todas elas cansativas.
Acabou de arrumar as suas coisas, despediu-se das colegas e saiu para a rua. O sol forte fê-la fechar os olhos. Setembro? Calor? O calendário inaugurara já o outono, mas aquele sol era um sol de verão, um sol quente e radioso, a pedir girassóis e palmeiras a esvoaçar ao vento.
Levou a mão à mala e retirou um par de óculos escuros, de lentes azuladas.
E mal os colocou, o mundo mudou de cor, quase de forma.
Ajeitou a saia e fez-se à rua.
Não precisava de olhar para trás... para saber que eles tinham ficado a olhar para ela.
Um sorriso enigmático moldou-lhe o rosto esbelto, a figura elegante, o andar seguro e ondulante.
Não eram só os estereotipados homens das obras que assobiavam à sua passagem; os vulgares transeuntes, os leitores de jornais ambulantes a caminho de casa ou do emprego, erguiam os olhos e lançavam-lhe um sorriso de desejo, uma piscadela de olhos furtiva, um beijo dissimulado.
Sabia ser sedutora, e sabia como seduzir. E sem nada provocar, sabia simplesmente que quando olhava para o mundo através daqueles óculos azuis, o mundo lhe sorria daquela forma ousada e ciumenta, como ervas cinzentas a contemplar uma flor amarela, que tivesse brotado solitária, em pleno alcatrão.
Continuou imperturbável o seu caminho, respondendo de vez em quando a algum piropo com um sorriso de compreensão, o que ainda lhe aumentava mais o encanto.
Definitivamente... uma flor. Uma maravilhosa flor amarela, no meio do alcatrão cinzento.
A vantagem da grande cidade, daquela cidade em particular... era a presença do mar. Um mar azul profundo, magnético, que rebentava em ondas de espuma no molhe, ao longo de todo o paredão da marginal, salpicando de espuma quem passava.
Aquele era o seu recanto, o seu refúgio pessoal.
A caminho de casa, muitas vezes os passos se desviavam sózinhos para ali, o espirito sequioso de se perder na imensidão azul.
Procurou um banco afastado e sentou-se, contemplando o mar.
Retirou os óculos azuis e deixou que a maresia fresca lhe banhasse o rosto.
Quem era ela?
Às vezes – tantas vezes – interrogava-se sem respostas, confinada às suas próprias dúvidas. Era tanta gente ao mesmo tempo, vestia tantas roupagens e tantas vezes se quedava assim, absorta e incerta, sem realmente saber qual a verdadeira cor da sua pele.
Quando colocava os óculos castanhos, sentia-se meiga, a professora ternurenta dos seus meninos. Às vezes, não resistia à tentação e aqueles óculos cor-de-rosa, em armação de metal, davam-lhe o ar mais selvagem, o seu ar mais nocturno, quando conseguia balouçar o corpo frenéticamente nas pistas de dança, noite dentro, sem se cansar. E outras vezes, aqueles óculos azuis como o mar deixavam-na como um malmequer reluzente, espalhando feitiços de sedução por onde passava.
Fechou os olhos, para sentir o mar.
Sem óculos, sem mais nada para além de uma vontade enorme de descobrir quem na realidade... era.
Nunca conseguira saber. Sempre que se despia daquelas cores, mudava de ser como um camaleão. Ela era tudo aquilo, era todas essas cores e ssas facetas, um baú cheio de personalidades, todas desarrumadas e despenteadas, ao sabor do sol e do vento, sempre prontas a despontar e a comandar-lhe a vida.
Ela era... aquilo tudo.
Sorriu.
Afinal de contas... sentia-se bem consigo própria. Mesmo sendo muitas, mesmo sem se compreender na totalidade.
Sentia-se viva... e imprevisivel.
Uma onda rebentou de mansinho no paredão e salpicou-lhe o rosto de espuma.
A sua alma de sereia sorriu.
Apesar do cansaçao... sentia-se bem.
Com a vida.
Quinta-feira, 24 de Setembro de 2009
Branca de Neve
Branca de Neve tinha um sonho, um sonho antigo; ser acordada pelo beijo de um príncipe, se possível encantado.
A tal ponto se dedicava a tentar realizar o seu sonho que, todos os dias, mal os sete anões partiam para a mina, prontamente se vestia com as suas melhores roupas, mordiscava uma maçã e deitava-se sobre a cama, imaculadamente branca, arrumada a um canto do jardim.
E por ali se deixava estar, de olhos fechados, a tentar cumprir uma história que – diziam – terminaria sempre com a chegada de um belo príncipe, que a beijaria nos lábios, despertando-a daquele sono profundo.
Branca de Neve, expedita nas acções, decidira saltar aquele passo intermédio e preferia ficar acordada, apesar dos olhos fechados.
Por mais de uma vez se levantou sobressaltada, fugindo a esconder-se no quarto. O Atchim, talvez o mais simpático dos sete anões, tinha o irritante hábito de aparecer de surpresa em casa. Dizia ele que não dispensava a sua casa de banho, que as instalações da mina eram muito... públicas. E lá corria a nossa Branca de Neve a fechar-se no quarto e a espreitar pela fechadura, à espera que o Atchim lá voltasse para os trabalhos da mina, mais aliviado.
Naquele dia em particular, a manhã estava calma e o Atchim ainda não a brindara com uma das suas aparições surpresa. Pelo contrário, um ruido compassado, a principio longínquo, progressivamente mais audível... fez-lhe disparar o coração. Alguém se aproximava... e a cavalo, dois cavalos, não havia como enganar.
Fechou os olhos e colocou a sua expressão mais serena, tantas e tantas vezes ensaiada em frente ao espelho do quarto.
Pouco depois, sentiu que alguém desmontava, ouviu-lhe as botas pesadas de encontro às pedras. Aproximava-se.
O tempo passou... e nada.
Mais uns momentos... nada de forçar a situação.
Mas ... não... definitivamente, não estava a acontecer nada, e muito menos o tal beijo esperado.
Abriu muito, muito suavemente uma fresta do olhar e viu-o. Era belo, sem dúvida. Príncipe ou não, mas definitivamente belo.
Uma longa cabeleira alourada, uns olhos azuis de cortar a respiração, uns lábios carnudos como morangos – ao menos que seja um príncipe – não se cansava de repetir para si mesma.
Um pouco enfadada pelo arrastar da situação, decidiu acelerar um pouco o processo. Num gesto bem estudado, suspirou lânguidamente, abrindo um pouco os olhos.
Ele pareceu surpreso.
- Meu príncipe... – sussurou ela, enquanto lhe segurava a face com as duas mãos.
E, não fosse a história ser levemente diferente do que pensava, decidiu ser ela a beijá-lo.
Puxou-o suavemente para si e apertou-lhe os lábios contra os seus. Mentalmente, conferiu se todas as peças do cenário estariam nos seus devidos lugares... incluindo os estratégicos últimos laços do vestido, que deixara propositadamente abertos, a pele branca do peito embebida de suave perfume.
- Por quem sois, vil creatura... largai-me...
E num gesto simultaneamente brusco e com alguns trejeitos, o talvez príncipe fugiu-lhe dos braços.
Mais atrás, o pajem segurava em silêncio as rédeas dos cavalos.
- Meu príncipe... – ainda repetiu, os braços esticados sem o conseguir tocar – beijai-me com paixão, para que eu possa finalmente acordar deste sono profundo a que a bruxa malvada me votou...
Ele piscou os olhos e pegando com a ponta dos dedos na capa vermelha, lançou-a sobre os ombros, ao mesmo tempo que empertigava os ombros.
Foi nesse momento que Branca de Neve suspeitou que algo na história não se estava a desenrolar conforme o previsto.
- Que horror... mulher... estais quase ... nua... que afronta aos meus olhos...
Branca de Neve abriu muito os olhos, sem poder acreditar no que lhe estava a acontecer. Entre todos os príncipes e plebeus, possíveis e imaginários, com ou sem reino... tinha logo que por ali aparecer ... talvez o único... enfim.... mais delicado?
Talvez tivesse percebido mal. Decidiu jogar a sua última cartada. Num arrojo de ousadia, abriu os últimos cordões do vestido, expondo ainda mais generosamente o peito alvo de neve.
- Meu príncipe... quebra-me o encantamento...
O possível ou talvez príncipe revelou-se então em todo o seu esplendor. Levou as mãos aos olhos, gritou fininho e correu a agarrar-se ao seu fiel pajem que o abraçou carinhosamente.
- Pajem, pajem... socorro, acode-me que ela se está a despir... acode-me...
Nota: Esta é a verdadeira história. A outra, aquela que circula por aí, é a versão censurada, para poder ser contada às crianças, claro...
Quarta-feira, 23 de Setembro de 2009
A mulher que emprestou a alma
Os ponteiros do relógio galoparam frenéticos, indiferentes ao silêncio, à imobilidade da paisagem. Nada, tão pouco a brisa, soprava.
Só aquele silêncio, pesado, filtrando os raios de sol através dos cortinados, eles próprios também imóveis.
E ela.
Encostada à parede de pedra, há muito que se confundira com ela.
Olhava... sem ver, imersa em pensamentos longínquos, como quem desfolha lentamente todos os capítulos da vida.
Nicole. Chamava-se Nicole.
Uma vida. Conforto. Luxo. Abundância.
Há quanto tempo tinha tudo... sem ter nada?
O olhar, fixo numa janela de luz imaginária, continuava a fitar o vazio.
O vazio. Vazia por dentro e por fora... era assim que se sentia. Vazia de emoções, vazia de sentimentos, vazia de vontade própria.
O seu palácio de conto de fadas era agora a sua prisão, uma prisão dourada. O seu príncipe, outrora encantado, transformara-se no seu carcereiro, as prendas e jóias, outrora dádivas de amor, eram agora as suas algemas, os seus grilhões.
Primeiro deixara de trabalhar; a seguir de procurar os amigos de antigamente. Finalmente, deixara de os receber, de conviver, de rir com era costume fazer. O seu príncipe encantado chamara a si as rédeas do seu respirar, do uso do seu corpo, das horas do seu acordar, do deitar, das cores da sua roupa, do seu cabelo, do seu cheiro, do seu perfume. Emprestara-lhe a sua alma... e nunca mais a conseguira receber de volta.
Uma lágrima silenciosa assomou-lhe aos cantos dos olhos. Imóvel, deixou que engrossasse, avolumasse sal e tristeza suficiente... até cair, estranhamente lenta, sobre o soalho envernizado.
Nicole tomara uma decisão.
Pedira a sua alma de volta, vezes sem conta. Obtivera mais jóias, mordomias, uma viagem de sonho.
Súbitamente, os olhos recuperaram o brilho. Ergueu-se lentamente e acercou-se da janela envidraçada.
Quando a abriu, um vento de outono bateu-lhe na face. Mínusculos, automóveis e peões, como formigas, deslocavam-se nos carreiros da avenida, muitos andares abaixo. Ficou a vê-los passar, sentindo a tentação do abismo.
Levou a mão ao bolso. Carregava ali o seu único pertence. Sem malas, sem roupa, sem calçado, sem jóias. Tudo o que verdadeiramente importava, cabia no bolso do casaco.
Tirou a pequena moldura do bolso.
Um rosto de criança sorriu-lhe, por detrás do vidro, uns grandes olhos castanhos e caracóis, muitos caracóis.
- É a cara da mãe... – sempre lhe haviam dito. – Não há como enganar...
Rumou à porta, sem olhar para trás.
Não queria dizer adeus a nada.
Decidira recuperar a sua alma de volta.
Terça-feira, 22 de Setembro de 2009
Quando cai a noite...
- Não, João... hoje não.
- Mas Maria... outra vez?
- E então... qual é o problema? Tenho que dizer sempre sim, é isso?
- Bem... não, não é isso... mas hoje apetecia-me... e está na hora...
- Nem sonhes... é sempre a mesma coisa. Quando te apetece, quando está na hora... e as minhas preferências? Quando passo eu a decidir? És sempre tu a decidir?
- Não... mas ontem eu estava com uma dor de cabeça... e bem sabes que é verdade...
- Pois... mas quando sou eu que tenho dor de cabeça...
- Vá lá... não sejas mázinha...
- Não, não e não. Hoje não. Olha... vai para a sala. Porque não vais para a sala?
- Para a sala? Mas eu quero estar aqui na cama... contigo.
- Pois... mas é isso precisamente que eu queria evitar.... eu, tu a cama, juntos. Hoje queria só um pouquinho de paz... e tu só queres barulho, confusão. É sempre assim, andamos de ritmos trocados...
- Maria... por favor... eu lavo a louça durante uma semana...
- Deixa-me rir...
- Pronto, está bem... duas semanas.
- Duas semanas? ... estás a falar a sério... ou só a brincar comigo?
- Juro que estou a falar a sério.
- Hum... é negociável... mas tens que acrescentar a isso o despejar dos baldes do lixo e limpar a casota do cão... durante essas duas semanas...
- Sim, sim, sim...
- Não, não. Quero ouvir-te dizer. Estamos acordados?
- Estamos, estamos. Claro que estamos. Agora já posso?
( ... )
- Podes... és horrível, toma lá o comando... é sempre a mesma coisa. O que é que queres ver desta vez? Futebol, para não variar? Não podemos fazer mais nada na cama, para além de quereres ver sempre futebol? É que já cansa um pouquinho, João...
Segunda-feira, 21 de Setembro de 2009
Barbarella
Barbarella.
Estado civil: divorciada
Dados pessoais: 1,78m, 32 anos, morena, cabelos escuros, esguia.
Dados do perfil: Sonhadora, caprichosa, romântica, sedutora, boa cultura geral. Ocupação: Relações públicas
Hobbies: Ler e Viajar.
Estado: Descomprometida
Situação: à procura
Olhou novamente para a meia dúzia de linhas, ainda a piscar no écran. Sempre gostara daquele pseudónimo, fazia-a sentir-se como a heroína dos filmes, sensual, provocadora, com a agilidade de uma gata e o mundo a seus pés. A noite era o seu mundo, os telhados vazios e os becos escuros o seu jardim, os homens – todos os homens – as suas flores.
Barbarella.
Só o som da palavra a fazia estremecer de prazer. Tinha aquele toque quente, principalmente quando soletrado por um amante, no calor da noite. Um nome que evocava mil imagens de prazer, de tentação, de fruto proibido.
Claro que não era o seu verdadeiro nome. Maria da Purificação Vaz Almeida, esse sim...
Ora bem... quem é que iria, no seu perfeito juizo, marcar um encontro com ela, através daquele “site” tão popular... com um nome daqueles? Pois... não, não mesmo. Sempre sentiu que nomes daqueles só deveriam ser autorizados a freiras, noviças... enfim... essas pessoas.
Portanto... Barbarella, claro. Sentia-se melhor nessa pele.
O problema... o problema, bem vistas as coisas... até não era bem o nome... mas o resto. A idade... ao menos essa era verdadeira, tinha 32 anitos, bem feitos no dia de São Crisóstomo, que talvez tivesse até inspirado o seu nome tão angélico. Agora o resto...
Com saltos altos... sim, talvez com sorte chegasse ao metro e sessenta e qualquer coisa, e também era verdade ser morena, cabelos escuros, sonhadora e todas as outras coisas... excepto talvez... o esguia.
Mas já lá vamos.
A profissão era aparentada com relações públicas, afinal de contas passava o dia inteiro a falar com pessoas, essa é a verdadeira função de uma telefonista, não é? Conhecer pessoas pela entoação da voz, decorar-lhes os números de telefone, das extensões para onde ligam, as horas a que ligam... portanto, claro que era uma relações públicas, sempre soa melhor que telefonista. E também era verdade que adorava ler e viajar. Ou ler, pelo menos. Ainda não viajara para fora do país, mas – sinceramente – claro que iria gostar, quem é que não gosta de viajar?
E finalmente... pois... descomprometida, a procurar... sim, aqui fora o mais possível honesta... infelizmente.
Voltou a pousar os olhos sobre a tal linha complicada. O cursor continuava a piscar sobre a palavrinha... esguia. E aí... seria complicado, porque Maria da Purificação, de esguia... talvez nos pulsos, e não mais que isso. Redondinha, anafada, simpática. Era assim que todos a descreveriam, se alguém os questionasse sobre o seu perfil. Talvez até sublinhassem o redondinha...
Suspirou.
O que fazer?
Anular o encontro? Contar a verdade?
A colega observou-a no seu dilema. Pousou os auscultadores e lançou-lhe um sorriso cúmplice.
- Então, Maria... que é isso? Estás com cara de caso...
Maria da Purificação devolveu-lhe o sorriso, embrulhado com um laçarote.
- Pois... é um caso... lá nisso tens toda a razão...
E após uma pequena pausa...
- Olhá lá... por acaso não estás assim a ver nenhuma maneira rápida de eu perder aí uns.... vinte quilitos, talvez?
Domingo, 20 de Setembro de 2009
A cor do coração
- Mãe...
- Tu gostas muito de mim, não gostas?
- Se gosto? Mas isso nem se pergunta, meu amor... eu adoro-te.
- E a Joana?
- Também a adoro... muito, muito, muito...
- Mas eu cheguei primeiro... devias gostar mais de mim...
- Oh, Luisinha... como seria possível? Eu adoro as duas, vocês as duas são as coisas mais especiais da minha vida...
- Então... gostas o mesmo... de nós as duas?
- Gosto... gosto muito... e gosto o mesmo das duas...
( Silêncio )
- Sabes, mãe... lá na escola às vezes perguntam-me coisas... que não consigo responder...
- Sim, Luisinha? E que coisas?
- Tantas coisas... mas há sempre uma coisa que perguntam mais do que todas as outras...
- Sim, meu amor? E o que é?
- Querem sempre saber... porque é que eu sou de uma cor e a mana é de outra cor... não deveríamos ser ambas da mesma cor?
( Silêncio )
- Luisinha... chega aqui...
- Sim, mãe?
- Queria só mostrar-te uma coisa... estás a ver isto?
- Estou ... são aquelas duas blusas novas que tu compraste ontem... a branca e a preta...
- Sim... essas mesmas... fecha os olhos, quero que descubras uma coisa...
(...)
- Estás a sentir? Consegues senti-lo?
- Claro que sim, mãe... é o teu coração a bater... já me tinhas mostrado antes...
- Sim... mas agora é outra coisa que te quero mostrar... não abras os olhos, deixa-me só trocar...
(...)
- E agora? Continuas a senti-lo?
- Sim... está igual. É outra vez o teu coração.
- E não notaste nenhuma diferença, nem um pedacinho?
- Não... porquê? Já posso abrir os olhos?
- Já, querida, já podes...
(...)
- Mãe... trocaste de camisa? Para quê?
- Nada de especial, meu amor... foi só para ter a certeza que reconhecias o bater do meu coração...
- Mas o teu coração... é sempre o mesmo, mãe...
- Pois é... A cor da blusa é como a cor da pele, não é? Como é que eu não hei-de gostar de vocês as duas por igual? O coração é o mesmo...
( Silêncio )
- Mãe...
- Sim, meu amor?
- Estavas a falar da Joana, é isso? Da cor da pele dela, é isso?
A mãe sorriu.
- Não meu amor...da cor da pele, não... da cor do coração.
Sábado, 19 de Setembro de 2009
O sonho dos deuses
Cupido. Filho de Vénus e Marte. Lembram-se dele?
Da mãe herdara a beleza, a doçura do olhar, a meiguice do trato. Do pai, a energia inabalável, a sagacidade, a audácia.
Nascera com a missão de interceder pelos espíritos humanos, ajudando-os a encontrar o rumo das emoções, orientando-os, através de pistas dissimuladas, na busca das almas gémeas.
Era esse o seu destino, a razão última da sua existência. Ajudar os outros – os humanos – a encontrar a felicidade.
Armado de um pequeno arco, disparava setas certeiras sobre os corações desprevenidos, incutindo-lhes pressentimentos, vontades súbitas de reparar em pequenos pormenores, desejos incontroláveis de se dirigirem a determinada pessoa... ou simplesmente adoçando-lhes o olhar, deixando-os com aquelas expressões tão características de quem acabou de colorir o mundo inteiro de cor-de-rosa.
O que ninguém sabia... porque a ninguém importava, era todo o trabalho árduo que se encontrava por detrás de cada uma dessas flechas, de cada uma dessas vitórias do amor.
A ninguém importava toda a procura de Cupido, analisando e perscrutando as profundidades das almas, à procura de semelhanças, de emoções comuns, de pontos de união.
Não.
Os humanos acreditavam simplesmente que uma seta direita ao coração fazia simplesmente... um milagre. Como se ele pudesse fazer milagres...
Mais um dia se aproximava do fim.
Cupido descansava, encostado ao tronco de um velho álamo. O arco e as flechas, pousados bem ao seu lado, já haviam realizado muitos sonhos, e também naquele dia, como em todos os outros dias.
Mas Cupido desviou o olhar, subitamente entristecido. Cada vez lhe custava mais pegar no arco, cada vez lhe era mais difícil apontar... e disparar as setas mágicas do amor.
Psiqué... a borboleta do mar, era a mais bela das mulheres que alguma vez os seus olhos haviam podido contemplar.
Em sonhos, imaginava-se nos seus braços, revolvendo-lhe de beijos os longos cabelos, entrelaçando as mãos, segurando-a entre as asas e percorrendo os céus, rumo a um paraíso escondido que fosse só deles.
E ali estava ela, longe, rodeada de amigas, colhendo flores no jardim.
Um olhar… só um breve olhar… ao menos um olhar.
Ficou a sonhar, de longe.
Não era justo.
Não era justo que as suas flechas só pudessem encontrar a felicidade para os outros. Não era justo que ele próprio não pudesse ser alvo, que ele próprio não pudesse ter a mesma ajuda que concedia aos outros, aos humanos.
Fechou os olhos. Com força.
Não sabia como, nunca aprendera. Mas desejou com todas as forças ser um pouco menos deus, um pouco mais humano…
A mão tocou o arco, abandonado sobre as ervas. Sentiu uma estranha sensação, como se algo estivesse bem ali ao seu lado, a espreitá-lo sobre os ombros. Impossível – tinha a certeza de estar sozinho.
Ergueu simplesmente o olhar.
Lá bem ao longe, sentiu um brilho nos olhos. Psiqué.
Olhava para ele. Fixamente.
E parecia… não… estava… seria mesmo?... parecia sorrir…
Sexta-feira, 18 de Setembro de 2009
Hoje é dia de Gincana
BLOG GINCANA - Hoje é o dia...
1º TAREFA - Escolha, entre os inscritos, os dois ou três blogs que mais te agradaram, e diga:
a) O por que?
b) Se já os conhecia, ou se esta visitando-os pela primeira vez?
c) Escolha uma imagem postada nesses blogs, que os represente, copie e poste junto com suas respostas.
Lembrem, sempre, de fornecer o nome e link dos blogs citados.
Ora bem... cá vamos nós.
Este blog é… especial.
Porque consegue ser o espelho da sua autora, uma alma livre que aspira “viver despenteada”.
Porque a Regina é uma pessoa doce, que consegue transmitir nos posts um olhar positivo para a vida, para os sentimentos.
Finalmente… porque se os nossos blogs fossem casinhas brancas arrumadas ao longo de uma comprida avenida, a “Maison d’Avila” era a vizinha que eu gostaria de encontrar ao lado da minha.
O João é um jovem que fotografa “coisas”. Eu explico: O João Meneres faz no seu blog duas coisas que eu aprecio muito… mesmo muito. Primeiro… colabora com outros, ilustrando com as suas fotografias poemas e escritos vários. Segundo, apesar de bastante jovem ( um abraço, amigo João ) tem muito bom gosto na cor e nas perspectivas das imagens que partilha connosco. Vale a pena visitar.
A Selena e o seu blog são uma caso … eu diria diferente. Um sentido de estética cuidado, uma grande variedade de temas abordados, o mundo do cinema como pano de fundo ( e pretexto ) para falar de muitas outras coisas. A descobrir.
Pronto… este não estava na lista dos inscritos, mas creio que o espírito da gincana também passa por aqui, o de descobrir através dos participantes… outros blogs interessantes, que contribuem de alguma forma para que a blogosfera fique mais rica. A Manu tem um jeito inconfundível de falar do que gosta, do que a preocupa e isso “ é “ o blog, o seu encanto. Fala de pessoas, mesmo quando as disfarça de objectos ou pequenas fábulas.
Gosto muito.
Finalmente, e porque talvez venha a propósito, deixo aqui umas pequenas sugestões para possíveis tarefas futuras:
- Escolher uma data ao acaso. Todos os concorrentes deverão escrever um post sobre algo que tenha ocorrido naquela data.
- Apresentar um conjunto de várias imagens, retiradas de alguns posts dos concorrentes. A tarefa consistiria em identificar a proveniência de cada uma das imagens.
E como esta participação na gincana não se esgota aqui, lembrei-me de expressar aqui o que penso de alguns dos blogs e seus autores, daqueles que visito todos os dias. Fazendo uma coisa muito simples; escolhendo a “coisa”, a tarefa, a actividade que gostaria de fazer com cada um deles. Querem ver?
Se eu fosse:
Saltar de pára-quedas… levaria a Sara comigo
porque é irreverente… e me empurraria porta fora, se na altura me faltasse a coragem para saltar…
Viajar de mochila às costas… levaria a Lilian comigo
porque adora espreitar por debaixo das pedras… e conseguiria arranjar uma história para descrever cada nova paisagem visitada…
Para a primeira linha de uma manifestação, segurando a faixa… levaria o Jorge comigo
porque é uma pessoa de causas, porque é coerente, porque tem opiniões, porque se bate…
Entrevistar alguém para um daqueles programas da televisão, daqueles que passam a horas tardias… levaria a Najla comigo
Porque para ela não há temas profanos, e consegue falar do difícil como se fosse fácil…
Escolher um livro de poesia… levaria a Lis comigo
Porque a Lis tem aquela sensibilidade dos poetas, que conseguem em duas linhas escrever um mundo inteiro de emoções…
Passar a tarde em frente ao rio, bebendo uma cerveja gelada… levaria o João Meneres comigo
Porque apesar da tenra idade, faz boa conversa… e até captaria com a máquina fotográfica os sorrisos disfarçados de quem passasse e nos visse ali…
Escolher o que gostaria de colocar no meu primeiro livro… levaria a Manu comigo.
Porque a Manu tem aquela serena calma das tertúlias, onde as conversas são mais silêncios que palavras…
Para passar aqueles restos de noite na praia, já depois das fogueiras apagadas, quando só restam os que não conseguem dormir… levaria a Regina comigo.
Porque de todas as maneiras possíveis de distribuir amizade e calor humano, a dela é a que mais me toca…
E finalmente… se eu fosse lançar o meu primeiro livro de histórias ( um dia será ) … levaria TODOS comigo, todos aqueles que aqui não coloquei e que se sentam no entremares, tomando café e ficando de conversa. É neles que as histórias se inspiram, na vida real…
Um abraço para todos esses amigos.
Quinta-feira, 17 de Setembro de 2009
O futuro adiado
- Não... assim não, nem pensar...
Com um gesto seco, amarrotou sem piedade a folha de papel, ainda húmida de tinta.
- Talvez se tentasse ser... – ainda murmurou.
Bateu nervosamente com a ponta da caneta no tampo de madeira. Onde se refugiara a inspiração, agora que mais precisava dela?
Lançou a bola amassada de papel para junto de todas as outras, caídas em redor do caixote do lixo.
- O começo… o começo é fundamental… é o mais importante… se errar no começo, o que pensarão de mim… não, não pode ser…
Por mais que se esforçasse, as palavras teimavam em não pingar do aparo. Colocou uma música de fundo, abriu a janela, voltou a encher a chávena de chá, ergueu-se e voltou a sentar-se… para nada.
Quantas vezes já tentara começar aquela aventura? Cem, mil? Já lhe perdera a conta. Sabia o que queria escrever, planeara-o até ao mais ínfimo pormenor no seu espírito metódico e organizado. Dividira a história em capítulos, em planos, esboçara até em rascunho os contornos das principais personagens. Nada.
A folha branca, pousada sobre a escrivaninha de madeira, parecia querer dizer-lhe algo.
Indecisão.
Sempre fora o seu grande defeito, a sua mais secreta limitação. Sentia-se fadado para um destino grandioso, mas nunca soubera qual a porta que deveria tentar abrir em primeiro lugar. Queria simplesmente… não errar.
Mas o tempo passara, a indecisão persistira… e agora, já bem perto da velhice, descobrira que afinal… ainda não abrira nenhuma porta, com medo de errar…
Tal como aquela folha branca, e todas as outras folhas brancas dos inúmeros cadernos e blocos de apontamentos que inutilizara, sempre à procura do prefácio ideal, da primeira frase que resumisse a sua obra… a sua obra prima.
Afinal de contas… aquela seria a sua autobiografia.
Pensara escrevê-la há mais de vinte anos… e pacientemente, tentara começá-la todos os dias… sem sucesso. Nunca encontrara as palavras certas para se descrever a si próprio e preferira nada escrever… com medo de escrever o errado, com medo de menosprezar o seu futuro grandioso, que continuava a acreditar… se iria realizar um dia.
O relógio de parede bateu as doze badaladas, como todos os dias.
E como todos os dias, o escritor adiado levantou-se, na sua rotina costumeira, guardou o bloco de apontamentos na gaveta da escrivaninha, enroscou a caneta de tinta permanente e afastou os cortinados da janela.
A hora da refeição, metodicamente servida ao meio-dia, era sagrada.
- Nada como um espírito disciplinado – pensou, enquanto se dirigia para a porta do escritório – e aliás…sinto que amanhã me deverá chegar a inspiração… ou na pior das hipóteses… depois de amanhã…
Quarta-feira, 16 de Setembro de 2009
A luz e as sombras...
A escuridão era imensa...e as mãos tremiam-lhe, como nunca.
Um fósforo. Um simples fósforo.
A escuridão, para quem nunca vira a luz... não era escuridão – era simplesmente o mundo, tão real e palpável como outra coisa qualquer. Quem já experimentara a luz... dizia que não havia palavras para explicar essa sensação; as cores, as formas, as tonalidades.
Mas ele, desde sempre convivendo com a noite negra, não sabia isso. Nem conseguia imaginar ao menos esse êxtase dos sentidos... quando riscasse aquele fósforo e dali brotasse a luz.
Teve medo. Um pânico de morte, de não saber o que iria sentir a seguir. Como seria... a luz? Como seria... o seu calor, a sua claridade? Que sensações de prazer lhe assaltariam a pele?
E, pior ainda... e se ele se viciasse nessa sensação?
E se ele se tornasse um dependente da luz? O que fazer?
O que fazer depois, quando o único fósforo de que dispunha... se esgotasse em cinzas e ele retornasse à eterna escuridão?
O que fazer?
Valeria a pena?
Compensaria um breve momento de prazer absoluto... uma possível vida inteira de torpôr, de adormecimento?
As mãos tremiam-lhe.
E então... lembrou-se.
Alguém que lhe dissera, depois de experimentar a luz, que “ mais valia arrepender-se depois de experimentar, do que lamentar-se de nunca o ter tentado”.
Vagarosamente, pegou no seu precioso tesouro.
Morreria se não o tentasse.
Morreria de desejo, de ansiedade, de uma vida por cumprir.
Respirou fundo.
E como quem se lança do alto do abismo... acendeu o seu fósforo.
Terça-feira, 15 de Setembro de 2009
O futuro cinzento...
Olhou cuidadosamente em redor. Ninguém.
Ao longe, os faróis amarelos dos automóveis continuavam a varrer a noite, como holofotes à procura do asfalto. Bem por cima, a estrutura de cimento tremia de esforço, de cada vez que os camiões carregados passavm sobre a estreita ponte.
Aquele era o local ideal.
Uma parede enorme, vazia, ainda virgem de traços, de riscos, de desenhos. Uma parede só para si.
Pousou as latas de spray no chão. Sentia-se inspirado.
Durante longos momentos, deixou-se ficar imóvel, já imaginando o resultado final que pretendia – um campo imenso e verde, nuvens brancas ao longe, talvez uma árvore solitária e flores vermelhas... sim, um manto de flores vermelhas, algumas amarelas, a cobrir uma planificie a perder de vista. Poderia até projectar alguns raios de sol, fazendo brilhar as gotas de orvalho na flor mais próxima... ou seria melhor pintar um nevoeiro mágico, reproduzindo a alvorada, com a copa da árvore a sobressair da névoa, qual gigante adormecido?
Decidido, atacou a parede vazia. Uma rasgo amarelo... outro verde... esqueceu tudo, mergulhou simplesmente na planicie imaginária coberta de flores silvestres.
- Alto... você aí...
Deteve-se estarrecido. Um par de faróis cegava-o de luz branca, iluminando a parede de cimento como um palco ainda nu, rabiscado de verde e amarelo. A policia.
- Aproxime-se... venha aqui e nada de tolices...
Obedeceu. Protegeu os olhos com uma das mãos, para conseguir não tropeçar no caminho.
- Senhor guarda... eu estava só...
- Você não sabe que é proibido? – e a voz do guarda não transmitia a menor emoção.
Claro que ele sabia. Há muito que era proibido. Por isso procurava sempre locais desertos, afastados de tudo. Pontes, vãos de escada, muros esquecidos de alguma casa em ruinas.
- Sei... mas eu estava sómente...
- Você vai pintar essa parede imediatamente... ou então vem connosco até à esquadra. O que prefere?
O outro agente aproximou-se, exibindo um par de algemas.
- Eu apago... eu apago...
Voltou à parede e pegou na lata de tinta amarela, começando a borrifar toda a superfície já anteriormente pintada.
- O que é que você está fazendo? Que cor é essa?
- Eu estou apagando, senhor guarda, vou já apagar...
- Páre. Páre. Mas o que é isso? Cor? Você está louco? Você não sabe que é proibido utilizar a cor? Ou você quer só ser preso, até já ser velho demais para tudo? É isso que quer? Cinzento, meu jovem... apague isso tudo imediatamente... pinte tudo de cinzento... JÁ!.
- Senhor guarda, mas é só...
- Jovem… cinzento... imediatamente... JÁ!
Pegou na lata de spray cinzento e voltou a borrifar toda a parede. Depois, olhos no chão, entregou todos os outros sprays aos guardas – o material proibido deveria ser imediatamente incinerado, principalmente as latas de tinta. Afinal de contas, naquele mundo cinzento, não era crime escrever o que quer que fosse nas paredes ou em qualquer outro local. Crime, verdadeiramente... era utilizar a cor.
- Jovem… veja se aprende, enquanto é tempo… a cor só dá problemas, cria-lhe problemas nessa sua cabeça… tenha juízo… o mundo é cinzento, é essa a lei… não queira fazer uma revolução está bem? As revoluções só dão confusão… vá… apague lá essa parede e vamos esquecer tudo isso…
Segunda-feira, 14 de Setembro de 2009
Primavera das Flores
Era primavera.
Uma primavera de céus limpos de nuvens, com um sol tímido a espreitar as manhãs frias, fios de neblina ainda a escorrer pelas encostas da montanha.
Bem no centro do vale, os campos de flores silvestres disputavam as margens dos ribeiros, alimentados pelo degelo das neves.
As águas crepitavam azuis, aqui e ali arrastando ainda pequenos cristais de gelo, rumo ao lago.
Malmequeres, narcisos, fumarias, violetas bravas, miosótis… reproduziam naturalmente uma imensa aguarela de cores garridas, polvilhada por libelinhas e borboletas, esvoaçando em danças ao acaso.
O malmequer branco abanou ao de leve as suas pétalas, em jeito de cumprimento.
Bem ao seu lado, um malmequer amarelo ondulava ao sabor da brisa.
E às vezes… simplesmente às vezes, as suas pétalas tocavam-se, entrelaçavam-se… até o vento as separar de novo.
- Como custa… não te poder tocar, não te poder abraçar… -dizia o malmequer branco.
E a malmequer amarela agitava as pétalas, num sorriso de flor.
- Somos malmequeres… o movimento não faz parte da nossa natureza … só o vento nos pode tocar…
O malmequer branco queria ser como o vento.
- Mas eu queria tanto tocar-te, sempre… e não depender do vento para me empurrar contra ti… queria que fosses tu a receber-me nas tuas pétalas, e não que fosse o vento a empurrar-te até mim…
A malmequer amarela não lhe respondeu. Dissesse o que dissesse, nada mudaria a essência das coisas. Só a brisa que descia das montanhas poderia abraçá-la, fazê-la rodopiar, abrir e fechar as pétalas douradas. O malmequer branco, indefeso perante a imensidão dos elementos, nada mais poderia fazer senão presenciar a dança dos insectos em torno da sua amada, o soprar do vento caprichoso, que tanto o aproximava como o afastava dela… mais e mais.
- Meu amor… farias um sacrifício por mim? … Por nós?
Ela faria. Tudo o que ele lhe pedisse. Tudo o que vergasse a natureza e os mantivesse juntos, fizesse vento, chuva, neve ou sol.
- Faço sim… faço tudo…
Quando o dia seguinte amanheceu, nada mudara no vale. As águas continuavam a deslizar das montanhas, as flores repetiam o eterno bailado aos caprichos do vento, os raios de sol desfaziam pacientemente os últimos fios de nevoeiro.
Tudo permanecia sereno, silencioso, adormecido.
Excepto talvez… um par de malmequeres.
Uma e outra vez a brisa soprou mais forte, tentando separá-los. Parava, voltava a soprar, soprava novamente, mudava a direcção, aumentava, diminuía… mas os malmequeres continuavam unidos, balouçando como um só corpo, como uma só sombra, indiferentes ao ciúme do vento.
Junto aos caules, semi enterradas na terra húmida, ainda se viam as pétalas que, durante a noite, os dois amantes haviam arrancado um ao outro, de tal forma que quando soprou a primeira brisa da manhã e o malmequer branco foi empurrado contra a malmequer amarela… não mais se soltou. As pétalas em falta de um correspondiam às pétalas do outro, encaixando na perfeição umas nas outras.
As lágrimas de dor, vertidas no sofrimento da mutilação nocturna transformaram-se num choro de alegria, à medida que o vento acalmava, incapaz de separar as duas flores.
Continuava a ser primavera.
Para os dois malmequeres, talvez quase verão.
Domingo, 13 de Setembro de 2009
A menina dos rouxinóis
Chamava-se Clara. Morava ao fundo da rua, numa casa igual a todas as outras, de paredes amarelas e vidraças embaciadas. Via sózinha e não era muito dada a conversas, apesar da vizinhança ser afável, simpática até.
Todos os dias, encetava a mesma rotina, desde que trocara a pacata aldeia do interior por aquele emprego na cidade, como ajudante de cabaleireira; pequeno almoço a correr, cinco minutos ao longo da avenida até à estação de comboios. Depois, uma sonolenta viagem de meia hora, ainda um outro autocarro. Pela tardinha, o mesmo percurso, em sentido inverso. Ao almoço, talvez um pulo até ao shopping, uma sopa de pé, um hamburger, uma limonada.
Que dia era hoje? Que dia fora ontem?
Por vezes, era-lhe dificil descobrir as diferenças.
Sábado.
Recordou-se súbitamente, era sábado, a sua folga naquela semana.
O pequeno almoço poderia ser, naquele dia, um pouco mais demorado.
Colocou as fatias de pão na torradeira e o café para aquecer. Distraídamente, ligou o rádio, esquecido sobre o frigorífico.
( Llovió – Presuntos implicados - http://www.youtube.com/watch?v=lX5j95aMIMk )
Sorriu. Há quanto tempo não ouvia aquela musica?
Sem querer, esboçou um solitário passo de dança, deslizando ao longo do fogão, quase indo de encontro à pequena mesa de refeições.
Abriu a janela.
Uma rajada de ar mais fresco fê-la estremecer. O outono anunciava-se para breve. Mas... que som era aquele?
Acercou-se, apoiando-se sobre o aluminio húmido e frio. Pousado sobre um dos ramos mais próximos, uma pequena ave escura, de bico alaranjado, observava-a, sem aparente receio.
- Olá... – murmurou ela, como se falasse consigo própria – és novo por aqui, não és?
A ave emitiu um sonoro chilrear e ela deixou-se rir.
- Já somos dois, pequenino... já somos dois...
O ruído da máquina de café puxou-a de novo para a cozinha. Encheu bem a chávena e levou-a com a torrada para a beira da janela.
A pequena ave ainda lá estava, olhando para ela.
- Toma... queres um pedacinho... é pão ... toma...
E estendeu-lhe a mão, com dois minusculos pedacitos de pão. A ave ainda hesitou mas, para sua surpresa, esvoaçou para junto dela e apanhou a medo um dos pedaços, voltando de seguida para o seu pouso seguro. Em seguida, emitiu uma série de sonoros trinados, como se estivesse a transmitir uma mensagem.
- Não precisas de me agradecer... tens aqui mais um pedacinho...
Segundos depois, um novo chilrear. Vinda de alguma árvore vizinha, uma segunda ave veio pousar ao lado da primeira. Trocaram um breve agitar de penas e sem hesitação, a recém chegada apressou-se a ir recolher o segundo pedaçito de pão... na mão ainda estendida de Clara.
- Ora esta... quem me diria...
Ficou a vê-los, a debicar mutuamente as penas um do outro.
- Olá vizinha...
A voz vinha lá de baixo, da rua. Olhou.
Lá estava ele de novo, o vizinho da porta da frente. Acenava alegremente, como era seu hábito, apesar de na maioria das vezes ela lhe responder com um monossilábico aceno de cabeça e às vezes, nem isso.
Sem se aperceber, deu consigo a responder.
- Bom dia vizinho... já vai para o jogging outra vez?
Que horror. Colocou a mão sobre a boca. Acabara de proferir numa única frase mais palavras do que talvez durante todo o tempo que já ali vivia. E aparentemente, o bom do vizinho também reparou nisso.
-Anh... ah, pois, pois... o jogging, claro... olhe, também devia vir, sabe? Faz muito bem à saúde...
Ela deixou-se rir. As aves levantaram voo, talvez assustadas pelo súbito quebrar do silêncio.
- Oh, vizinho... é capaz de ter razão... e porque não me convida um dia destes para ir consigo? Quem sabe... pode ser que até lhe apanhe o gosto...
Sábado, 12 de Setembro de 2009
Bolinhos da sorte...
O velho restaurante chinês, escondido entre a paragem de autocarros e o acesso ao jardim das palmeiras, acendeu finalmente os lampiões vermelhos. Um homenzinho atarracado, de impecável uniforme branco, abriu as portas de par em par e postou-se de vigia, qual militar de turno, de ementa na mão, à espera do primeiro freguês.
Não teve de esperar muito.
Um casal aproximava-se em passo lento, conversando em voz baixa.
A avaliar pela postura seriam certamente amigos, talvez até um pouco mais que isso. Ela agarrava-lhe o braço e inclinava-se sobre ele, fazendo-o desequilibrar. Por vezes era ele a segredar-lhe algo ao ouvido e ela ria, ria, ria.
Ambos já deviam ter ultrapassado a dita idade madura e caminhavam – pelo aspecto – alegremente para a terceira idade, talvez já roçando os setenta. Com uma vénia galante, ele convidou-a a entrar no restaurante, dispensando a ementa que o funcionário zeloso insistia em mostrar.
Sentaram-se numa mesa junto à janela.
Apesar da idade, os traços da beleza de outrora ainda sobressaíam daquele rosto, de pele muito branca, aqui e ali semeados de sardas. Tinha os olhos violeta, de um tom raro que condizia maravilhosamente com o colar de ágatas que trazia ao pescoço. Ele deveria ter a mesma idade, o rosto tisnado de sol e um sorriso que desenhava uma rugas de expressão inconfundíveis. Parecia estar sempre a sorrir.
- Tens cara de actor de cinema – dissera-lhe ela uma vez.
Há quanto tempo se conheciam? Vinte, trinta anos? Talvez mais.
Haviam sido colegas de trabalho, antes de ela ser promovida e de ele ter aceitado uma oferta de trabalho no estrangeiro.
Em muitas ocasiões, roçaram o limiar da amizade, o limiar da paixão... mas nunca tombaram para nenhum dos lados e limitaram-se a sofrer em silêncio, indecisos, trémulos de receios e de expectativas.
Entretanto, ele continuara lá fora, trocara de empresa, trocara de país, fundara a sua própria empresa. Ela casara com um antigo colega de escola e ainda primo afastado. Foram felizes até passarem a ser infelizes. E depois, decidiu ficar sózinha, entregar-se à carreira e aos sobrinhos, e depois aos filhos dos sobrinhos.
Quando finalmente ele voltou, encontraram-se por acaso à sáida de um cinema. Reconheceram-se, sorriram e de repente... foi como se o tempo não tivesse passado, como se tudo se tivesse resumido a um fim de semana de ausência.
- Queres jantar um dia destes? – perguntara-lhe ele
E ela dissera-lhe que sim. Aquele e a muitos outros convites, para passeios no jardim, para idas ao cinema, para excursões.
Naquele dia, convidara-a para um jantar ali... no restaurante chinês.
Conversaram, riram, comeram, indiferentes à meia dúzia de comensais que ocupavam as mesas vizinhas. Finalmente, o empregado trouxe-lhes um pratinho com os tradicionais bolinhos da sorte.
- Tens curiosidade? – quis saber ela, sorrindo.
- Claro que tenho... sabe-se lá se não estará aqui o futuro... escrito nesses papelinhos...
Abriram os papelinhos em simultâneo.
Ele mirou-a de relance, para logo desviar o olhar. Ela sentiu que estava a ser observada e deixou-se ficar muito quieta, a segurar ainda o papelinho com a ponta dos dedos.
Permaneceram assim largos segundos, como se ambos esperassem um gongo que os despertasse.
Finalmente, ele ergue-se da cadeira.
- Margarida...
Ela levantou a cabeça, para o interpelar. Não teve tempo.
Com um ímpeto que ela não lhe conhecia, ele agarrara-lhe as mãos e beijava-a com ardor.
Dois segundos depois, ela soltou-se das mãos dele e agarrando-o pelos ombros, puxou-o para ainda mais junto de si, fundindo-se com ele naquele beijo prolongado e por tantos anos adiado.
O papelinho do biscoito da sorte que segurava soltou-se-lhe dos dedos e rolou pela toalha da mesa, indo imobilizar-se junto do dele.
Estranhamente, ambos os bolinhos tinham no seu interior o mesmo dizer:
“ A vida é demasiado curta para ser desperdiçada. De que estás à espera para ser feliz? “
Nota: Posso oferecer um destes bolinhos a cada um de vocês?
Sexta-feira, 11 de Setembro de 2009
Conversa de amigas...
- Estou indecisa, Marta… a sério, estou mesmo indecisa…
- Oh, Joana, então, então… nem parece teu… tu, indecisa?
- É mesmo… vê lá tu.. é o João…
- O João? Como assim? O teu João ?
- Pois… esse mesmo… o meu João… ele ontem fez-me um daqueles pedidos…
- Hum… daqueles… daqueles dos tais… desses ?
- Pois… daqueles pedidos que tu ficas de cabeça à roda, já sabes qual…
- Anh… mas eu nunca me pareceu que ele fosse assim do tipo de fantasias…
- O João? Nah… é muito impulsivo, sabes… só isso…
- Percebo-te… e então, o João… queria assim… coisas diferentes, é? Daquelas mesmo muito diferentes, é isso?
- Pois, vê lá… foi a primeira vez… nunca me tinha pedido…
( silêncio )
- E então… conta lá… fizeste-lhe a vontade?
- Anh?
- Vá… não faças de conta que não percebeste… fizeste-lhe a vontade?
- Pois… só para que fiques a saber… não, não fiz.
- Não fizeste?
- Não. Ainda não me sinto preparada…
( risos, muitos risos )
- Oh Joana… preparada, o que é isso? Há quanto tempo vocês dormem juntos? Seis meses?
- Seis… sim talvez sete meses. Mas porque perguntas? O que tem isso a ver?
- Não tem? Então ele pede-te a tal coisa esquisita, tu ficas com a cabeça a andar à roda e agora dizes-me que não te sentes preparada? Como é? Foi ele que inventou alguma nova posição tão estranha, tão estranha… e que te apanhou assim desprevenida? É só sexo, minha querida, é só sexo…
- Marta… tu és mesmo perversa… mas quem é que está a falar de sexo, pode saber-se?
- Tu.
- Eu? Nah… eu não… tu é que inventaste isso tudo.
- Então… o que foi que o teu João te pediu para fazer, que te deixou nesse estado… e que ainda por cima… nem é sexo?
- Pois… esse foi o problema. Ele pediu-me para o acompanhar lá à aldeia … quer apresentar-me aos meus pais dele…
- Ah…