Terça-feira, 30 de Junho de 2009

O pai da virgem...

 

- Pai...
- Sim, filha?
- Eu tenho cara de virgem?
Metade da chávena de café foi cuspida contra a parede, a outra metade caiu directamente – a ferver – sobre as calças. Ficou sem respirar, o café escaldante a queimar-lhe as pernas e o cérebro em rodopio. Gaguejou.
- Vi...vi... Virgem? Co...como assim?
- A professora perguntou-me se eu tinha cara de virgem... e eu respondi que não sabia... mas que te ia perguntar...
- A professora ? Mas qual professora? Oh, mas isto está tudo doido?
- A professora de Língua Portuguesa. Ela perguntou hoje na aula.
- O quê? – berrou – mas a mulher está louca, ou quê ?
- Eu gosto dela, pai... é simpática.
- Tu és uma criança, Beatriz, és uma criança... ainda não percebes ... isto são coisas de adultos... oh meu Deus, outra vez, não...
- Não fiques preocupado, pai... ela disse que não há problema, não vou ser obrigada a nada...
O pai abriu e fechou a boca várias vezes, como peixe fora de água. Ainda quis responder, mas dos lábios soltou-se um som fininho, vagamente parecido a uma súplica afónica.
Não... aquilo não podia estar a contecer.
- A Joana não se importou, pai... e a Berta também não...
- A Joana, a filha aqui do nosso vizinho da frente?
- Sim... a vaca.
- BEATRIZ! Mas que linguagem é essa ? Isso são nomes para se chamar à Joana ?
- Mas...
- Nem mas nem meio mas... já para o teu quarto, fazer os trabalhos de casa. E eu vou imediatamente à tua escola, ver se ponho tudo em pratos limpos... com essa professorinha de língua portuguesa... eu já lhe digo...
- Mas pai, a mãe...
- Não metas a tua mãe nisto. Eu vou resolver tudo... a tua prima Paula... ela também estava nessa aula, contigo?
- Estava sim, pai...
- E está tudo bem com ela? Não se passou nada ? Nada de anormal?
- Não pai... a professora disse para ninguém se preocupar, que ela tratava de tudo... ela até a vai ensinar a tratar do bébé e tudo...
O pai parou a meio da sala, o braço ainda esticado em direcção ao puxador da porta.
- O bé...bé... o bébé? Um bébé? A Paula?
A filha Beatriz acenou com a cabeça, sorrindo.
- A professora diz que amanhã vai levar um biberon para a escola, para nos mostrar como se faz...
O pai foi empalidecendo progressivamente...
Sentou-se. Precisava de recuperar forças. Mas o ar teimava em não conseguir entrar.
 
- O que tens, Frederico? Estás mais pálido que a cal da parede...
A mulher assomava à porta da sala.
- A professora... a vaca... a Paula... virgem... – gaguejou, mordendo convulsivamente as palavras.
- Sim, eu sei... a menina disse-me. Vai ser um espectáculo e tanto...
- Vai?
- Quer dizer... eu preferia que a nossa filha fosse a virgem, mas pronto... não pode ser, não pode ser, e não se fala mais nisso...
O pobre pai começou a tombar para a frente, completamente aturdido.
- E amanhã – lembrou-se então a pequena Beatriz – vamos todos para o palheiro treinar... e a professora vai ajudar. Também queres vir assistir?
A mãe olhou para o rosto do marido e viu-o demasiado pálido, imóvel, os olhos esgaseados.
 
- Frederico... é só uma peça de Natal, está bem ? Não é nenhum casting para Hollywwod... qual é a importância da tua filha ser a virgem Maria, a ovelhinha ou a pastora? O que é preciso é que eles se divirtam, não é? Não precisas de fazer essa cara...
 
 
 

 

publicado por entremares às 16:22
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Domingo, 28 de Junho de 2009

Homens, claro...

 

 

- Não era melhor parares... e perguntar a alguém?
- Claro que não. Recordo-me perfeitamente de passar por aqui...
- Mas eu não.
- Minha querida... mas eu tenho boa memória... e tu não, é só isso...
- Até parece... estás é cada vez mais modesto, não há dúvida...
 
- E então? Ainda tens a certeza de que estamos no caminho certo?
- Claro que tenho.
- Então poque não aparece aquela aldeia que acabámos de passar, aqui no mapa?
- Ora, sei lá porquê... provavelmente porque a aldeia é demasiado pequena para aparecer no mapa, ou porque o mapa está desactualizado... vais ver que não tarda nada, aparece a indicação da auto-estrada...
- Não estou lá muito confiante... e porque és tão teimoso? Não podias parar e perguntar a alguém?
- Nah... confia no meu sentido de orientação, está bem? E pára de te preocupares...
- Pois...
 
- João...
- Sim, querida?
- Estamos perdidos, não estamos?
- Perdidos? Claro que não. Podemos não ter visto alguma indicação, mas também não é importante. Mais uns quilómetros, entramos na auto-estrada e depois... é sempre em frente...
- Mas isso disseste tu há meia-hora atrás... e entretanto, está a anoitecer.
- Só mais um pouco de paciência, meu amor... tenho a certeza que, no máximo, mais uns 5 ou 6 quilómetros...
- Pois...
 
- Querida...
- Sim, João... finalmente vamos parar e perguntar a alguém o caminho ?
- Bem... talvez estejamos com um pequenino problema.... nada de grave...
- Estamos com um problema? Às dez da noite? Aqui no meio deste deserto, sem vivalma?
- Pois... talvez eu não tenha reparado na agulha...
- Na agulha? Qual agulha?
- A agulha do ponteiro da gasolina... acabou-se...
- Ficámos sem gasolina?
- ...
- João? Tu estás a dizer-me que estamos parados aqui no fim do mundo... sem gasolina?
- Pois... é isso...
 
- Maria... porque estás a descalçar-te?
- ...
- Maria... é de noite... onde pensas tu que vais? Maria !
- João Maria Assunção Fernandes... estás despedido. E para tua informação, eu vou-me embora.
- Vais-te embora? Mas vais-te embora para onde ? Estamos no campo !
- Não me interessa. Nem que eu vá a pé até casa... ou até pode ser que um extraterreste me rapte, quero lá saber... homens... é sempre a mesma coisa...
- Maria, vá lá... não sejas assim...
- Não me dirijas a palavra... já pareces o meu primeiro marido... a mesma teimosia, outra vez perdida no meio da estrada...
- O teu primeiro marido ? Não estou a perceber a comparação...
- Pois não. Porque és idiota. Porque és teimoso. Porque vocês, os homens, detestam pedir ajuda e acham sempre que descobrem tudo sózinhos... idiotas, idiotas, idiotas...
- Maria...
- E não me dirijas a palavra... oh, meu Deus, que mal fiz eu? Que triste sina é esta? Vou ter que passar uma noite inteira a caminhar, à procura de gasolina, como da outra vez? Serão todos os homens assim?
- Não compreendo, Maria...
- Idiota... apetece-me atirar-te com um sapato acima...
- Se isso te faz sentir melhor... atira... eu mereço.
- Nem penses... custaram-me os olhos da cara...
- Esses? Tu disseste que foram uma pechincha, que os compraste na feira...
- ...
- Maria...
- Cala-te... e vê se vais descobrir gasolina. Senão, perco o amor ao sapato e atiro-o mesmo...

 

publicado por entremares às 10:02
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Sexta-feira, 26 de Junho de 2009

Querida Deolinda

 

Estes são, sem dúvida alguma, os momentos mais felizes do meu dia; aqueles em que, isolado do mundo, me sento à sombra das acácias para te escrever estas simples palavras de amor.
Enquanto escrevo, imagino-te aqui ao meu lado, sorrindo – com aquele sorriso que só tu consegues fazer – iluminado o meu olhar com a tua alegria, a tua ternura, a tua...
 
Passou de novo o lenço de linho branco pelos olhos. Uma lágrima teimosa insistia em cair-lhe sobre o rosto, os olhos brilhantes de emoção, as mãos a segurar ávidas a pequena folha de papel, com aquela caligrafia de escola primária, geométrica, muito direita, as vírgulas bem carregadas e os acentos todos perfilados com a mesma inclinação.
Não precisava de ver a folha de papel, há muito que decorara todo o perfume, os versos imperfeitos da segunda página, o modo mais carregado da palavra Amor – já a relera tantas e tantas vezes que a poderia recitar de memória, sem se enganar.
Deolinda de Jesus era uma mulher apaixonada, tremendamente apaixonada. Por muitos motivos, o destino levara-lhe o amor da sua vida para terras distantes, emigrante num país longínquo de Africa.
Um ano – é só um ano, dissera ele – demoraria a separação, era o prometido.
Haviam passado dois, o terceiro ia a meio... mas ele voltaria, voltaria para casa no Natal, ela tinha a certeza, ele prometia-lhe isso em todas as cartas que escrevia.
E ele escrevia-lhe muitas e longas cartas, a que ela respondia do mesmo modo.
 
- “...ontem, minha querida Deolinda... fui ao cinema com os meus colegas, ver um filme novo que ...”
Desviou o olhar. A pequena Susana acabara de entrar na sala e ela, numa desnecessária timidez, prontamente dobrou a folha de papel, voltando a colocá-la no sobrescrito.
- Então, avó.... vamos tomar os comprimidos ? Já são cinco da tarde...
Cinco da tarde ?
Como o tempo passava depressa. Até a própria Susana lhe parecia mais velha, assim com um corpo já de mulherzinha... para os seus – a memória não estava a ajudar – doze? treze anos?
- Olá, minha Susaninha... que bom ver-te... estás linda, como sempre... mas diz-me, estava aqui a tentar lembrar-me... e já sabes que a memória gosta de me pregar partidas... quantos anos tens? Não te ofendas de te perguntar isto... mas é que sinceramente... não me consigo lembrar da data do teu aniversário...
- Oh, avó... não faz mal, não tem importância... tenho 21, quase 22... vou fazer anos para o mês que vem, no dia 17... lembra-se? No mesmo dia do tio Joaquim, que Deus o tenha em descanso...
- 22 ? Oh, minha querida... esta minha cabeça... pois é claro... dia 17... o tio Joaquim...
- Aqui tem um copo com água. Quer que lhe endireite um pouco mais a cama?
E, sem esperar pela resposta, rodou um pouco a manivela e logo a a cabeceira da cama subiu um pouco mais.
- Está melhor assim, avó?
Ela sorriu-lhe, ternurenta. Levou obedientemente os comprimidos à boca e lá os foi acompanhando de pequenos goles de água, enquanto a neta aproveitava para prender melhor os lençóis nas extremidades da cama.
- Vá... agora já chega de leituras, está bem ? Precisa de descansar... Tente dormir um pouquinho, está bem?
A avó assentiu com um movimento da cabeça, sem largar o precioso sobrescrito.
- Até já, avó... já sabe... se precisar de alguma coisa... toque a campainha, está bem? Estou lá em baixo, a arrumar a cozinha...
 
- Então, como está ela hoje?
- Como está? Está na mesma, creio...
- Reconheceu-te? Falou contigo?
- Reconheceu... não se lembrava da minha idade, mas fora isso, até falou normalmente.... e claro que estava a ler de novo a carta...
- Outra vez? Aquela carta... a que tu escreveste no Natal ?
- Shiu.... fala baixo.... a avó tem Alzheimer... mas não é surda. Sim.... essa mesma carta. Ela continua a acreditar que ainda tem 30 anos... que o avô ainda é vivo e que ainda está emigrado lá para Africa...
- Mas isso já foi há mais de querenta anos, Susana...
- E depois ? Deixa estar, Rodrigo, que eu trato disso... prefiro que ela continue assim... feliz... a reviver aquele passado... do que a pensar no presente... é melhor assim...
- Não sei se concordo contigo...
- Eu sei, já falámos disso... mas ela é minha avó, não é tua... e acredita, eu tenho mesmo que fazer isto...
- ... muito bem, tu é que sabes... e olha, a propósito, lembrei-me que talvez pudéssemos ir hoje ao cinema... o Jorge disse-me que ia passar...
- Não posso, Rodrigo... a sério, gostava muito... mas tenho que ir escrever a carta desta semana...
- A carta?
- Sim... a carta que a avó tem que receber do avô... amanhã é sexta feira... e sexta feira é o dia em que ela está sempre à espera de uma carta do avô...
 
- Susana...
- Sim, Rodrigo ?
- Sabes que eu te adoro, não sabes?
- Claro que sei... por alguma razão casei contigo, não foi ?

 

publicado por entremares às 17:12
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Quinta-feira, 25 de Junho de 2009

Amor e uma cabana?

 

Ele - Amas-me ?
Ela - Claro que te amo. Acaso duvidas?
Ele - Não, não… claro que não… sabes como é, são aqueles pensamentos parvos que às vezes nos assaltam o cérebro…
Ela - Isso nem parece teu… e se não te conhecesse, diria que isso era conversa do teu amigo Luís… ele é que anda sempre com teorias estranhas…
Ele - …
Ela - Ah… então sempre tinha razão… isto é conversa do teu amigo Luís…
Ele - Ora, não foi nada de especial… estávamos só a falar de mulheres…
Ela - De mulheres? Plural? E eu, quem sou eu? Querem ver que agora estou a partilhar o meu marido com outra, é isso ?
Ele - Claro que não, meu amor… foi só uma conversa inocente, já sabes como é o Luís…
Ela – Pois… engana-me, que eu gosto… e qual era o tema da conversa inocente, pode saber-se?
Ele – Patetices, não ligues…
Ela – Claro que ligo. Agora que me espicaçaste a curiosidade, quero saber…
Ele – Coisas do Luís, sabes como ele é, para ele tudo tem a ver com dinheiro, é só isso…
Ela – Não percebo.
Ele – É simples… o Luís acha que as mulheres só gostam dos homens com dinheiro, que isso do amor e uma cabana é só um conto de fadas…
Ela – Ai é? Não me digas…
Ele – Eu disse-te, patetices do Luís…
Ela – Claro, claro… mas diz-me… e tu?
Ele – Eu o quê, meu amor?
Ela – Tu, sim… o que lhe respondeste, a semelhante parvoíce?
Ele – Eu ? Pois … claro que lhe disse isso mesmo, que era uma parvoíce…
Ela – A sério ?
Ele – Claro que é a sério… tu sabes que para mim o dinheiro não significa nada, mas rigorosamente nada… por isso é que nunca fui rico…
Ela – Está bem, está bem, mas olha lá… também não é preciso exagerares… lá que não sejamos ricos, é uma coisa… mas também não me estou a ver a ir morar para debaixo da ponte… nem oito, nem oitenta…
Ele – A sério, meu amor… nós não precisamos de dinheiro… temo-nos um ao outro… não é maravilhoso?
Ela - …
Ele – Eu amo-te, sabias?
Ela – Sim, sim… mas há pouco sentia-me um pouco mais descansada do que agora…
Ele – Não te preocupes… o amor vence tudo… e olha, agora se não te importas, tenho que ir comprar o jornal, antes que feche o quiosque…
Ela – Vai sim, vai…
 
Ela – João…
Ele – Sim, meu amor?
Ela – Já agora… não te esqueças de meter o euromilhões, está bem ?
 

PS. Dizia o Jô Soares nos seus programas que " O dinheiro não compra a felicidade... mas lá que acalma os nervos, acalma... "

 

publicado por entremares às 21:23
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Terça-feira, 23 de Junho de 2009

A Prova

 

Certo dia, o rei Frederico convocou os seus três filhos à sala do trono.
O reinado fora longo e próspero, o reino gozara de uma paz duradoura e as feridas de guerras passadas cicatrizavam agora à sombra de colheitas generosas e tempos de abundância.
Mas o rei Frederico estava velho, e o fulgor dos tempos de juventude dera lugar ao cansaço e à doença. Tudo tinha o seu tempo e o rei sentiu naquele dia que o seu tempo era chegado; era altura de passar o testemunho, e considerava-se um homem feliz por ter três filhos, qualquer deles capaz de segurar as rédeas do reino, com firmeza e sabedoria.
- Meus filhos… chamei-vos hoje aqui para vos pôr a par da minha decisão…
Silandro, Orlando e Fernando trocaram olhares; Não podiam ser mais diferentes entre si.
Fernando, o mais velho, sempre demonstrara um à vontade notável nas artes da guerra, cavaleiro exímio, imbatível com a espada, vencedor crónico de todas as justas e torneios. Orlando, o filho do meio, desde cedo ganhara o cognome de “ O Formoso “, irradiando aquela aura cativante de boa disposição, sempre com um dizer afável na ponta dos lábios, um elogio cortês às damas da corte e, muito naturalmente, o solteirão mais cobiçado de todo o reino… e arredores.
Silandro, o mais novo dos três irmãos, sempre se entregara ao estudo e às artes. Uma queda de cavalo deixara-lhe como lembrança um leve coxear, e a vontade de nunca mais tentar competir com o irmão mais velho em torneios, fosse a pé… ou montado a cavalo. Sempre tivera a seu cargo a guarda da Torre Sul, onde se avolumavam os registos do reino, os alvarás, os éditos reais, os registos das propriedades… toda a história escrita do reino.
- Estou velho – continuou o rei – e em boa hora Deus me deu três ilustres filhos, qualquer deles merecedor de continuar o meu trabalho, è frente dos destinos do reino…
Fez uma longa pausa para respirar.
- Vou nomear um de vós Chanceler do reino… assumindo grande parte das minhas funções… até à minha morte, altura em que será coroado rei…
- Meu pai… afaste esses pensamentos tenebrosos – interpôs logo o filho mais velho - … ainda vai estar connosco por muitos e bons anos…
O ancião sorriu, benévolo.
- Talvez, Fernando, talvez… mas fraco rei seria eu senão acautelasse o futuro do reino… e o futuro passa por vós, os três…
- E qual de nós escolheu, meu pai, para essa tarefa ? – quis saber Orlando.
- Ainda não escohi, meu filho… aliás, vós mesmos ireis escolher… porque decidi propor-vos uma prova, um desafio… e o vencedor de tal prova será certamente merecedor de tomar nas mãos os destinos do reino…
Uma prova?
Os três filhos trocaram de novo olhares curiosos entre si.
- A prova é simples, meus filhos… amanhã, ao nascer do sol, vou entregar a cada um de vós um arcabuz e três balas de mosquete… somente três balas. Devereis dirigir-vos à floresta, sozinhos… e tentar caçar o maior veado que encontrardes. Esperarei por vós ao final do dia, aqui nesta mesma sala… e aí conhecereis a minha decisão.
O filho mais velho rejubilou. Uma prova de caça? De destreza com as armas? Pois aquilo seria o mesmo que entregar-lhe, já ali, as chaves do reino, pois todos sabiam que não existia caçador mais audaz, pontaria mais certeira que a dele, príncipe Fernando.
Silandro e Orlando permaneceram em silêncio, apreensivos.
 
E como o rei ditou, assim se fez.
Na manhã seguinte os três príncipes partiram para a floresta, sozinhos e em direcções opostas, à procura do maior troféu para apresentar ao pai, ao final do dia.
O futuro decidia-se ali… e todos sabiam disso.
 
- Entrem, meus filhos, entrem…
O rei Frederico já se encontrava sentado no trono, ladeado pelos seus mais fiéis e antigos conselheiros.
O príncipe Fernando entrou triunfante na sala, arrastando um enorme veado. A custo, foi deixá-lo aos pés do trono.
- Aqui tendes, meu pai… o resultado da minha prova. Estou certo que será merecedora da vossa atenção…
Soltaram-se murmúrios de espanto; não era todos os dias que se conseguia vislumbrar um animal de tal porte, com um ar tão imponente… um belíssimo exemplar, sem dúvida alguma.
- Estou sem palavras, meu filho… é na verdade um exemplar magnífico, e tenho a certeza que todos os presentes partilham da minha admiração…
O príncipe Orlando entrou então na sala, acompanhado do seu aio. Juntos, arrastaram até junto do rei uma presa ainda maior, um veado de pelo castanho, um macho imperial, que todos já julgavam extinto na floresta.
Os conselheiros do rei levantaram-se em desassossego.
- Como é possível? - murmurava-se pelos cantos – sempre pensámos que já não existiam mais…
- Meu pai – e o príncipe Orlando colocou um pé sobre a presa abatida – estou certo que reconhecereis que a minha prova alcançou os melhores propósitos … e resultados. Espero que esta presa imponenteseja do vosso agrado, e eu merecedor da vossa escolha…
O rei fitava o enorme animal, tombado a seus pés.
- É na verdade, impressionante, meu filho. Creio que nem eu próprio algum dia vi tamanha beleza ou porte num destes animais… Estou sem palavras…
Finalmente, o filho mais novo entrou na sala do trono.
Mas, ao contrário dos irmãos, vinha cabisbaixo e de mãos vazias.
Aproximou-se lentamente do trono e aí se quedou, joelho em terra, vergado pelos olhares desdenhosos de todos os presentes.
- Meu pai… não tenho nada para vos entregar… e apesar de todos os meus esforços… não consegui capturar nenhuma presa…
Risos, murmúrios.
O rei ergueu a mão, impondo silêncio.
- Mas, Silandro… o que aconteceu? Os teus irmãos apresentaram-me peças dignas de um rei e tu… dizes-me que não conseguiste capturar nada ?
- É verdade, meu pai… e lamento profundamente a vergonha que a minha falta de destreza vos cause… pensava ter acertado em duas presas magníficas… mas elas conseguiram fugir-me, como se ajudadas por uma força sobrenatural…
Fez-se um silêncio pesado na sala.
Durante longos momentos, o rei passou a mão pelo queixo, pensativo. Finalmente, ergueu-se, desceu os degraus que o separavam do filho mais novo e, segurando-o pelos ombros, exclamou bem alto:
- Ergue-te, ó chanceler do reino!
 
A sala de pronto se encheu de comentários e protestos. Como era possível? Escolher o benjamim, precisamente aquele que fracassara na mais elementar prova de destreza e coragem, para chanceler do reino? Como era possível?
- Meu pai… - e o filho do meio avançou dois passos, furioso – só podereis estar a brincar…
O rei levantou de novo a mão e o olhar, antes cansado e dormente, recuperou por instantes o fulgor de outros tempos.
- Silêncio.
Assim se fez.
 
- Meus filhos… hoje, todos vós – e ia apontando um a um todos os nobres presentes na sala – devereis aprender uma lição… porque governar bem não é só ser corajoso, audaz, temerário até… bem pelo contrário… governar bem obriga a ser humilde… a saber reconhecer as suas próprias limitações, saber assumir os erros… ser verdadeiro.
Ninguém compreendeu as palavras do rei. Mas só o seu mais velho conselheiro se atreveu a colocar tais pensamentos em palavras.
- Meu rei… conhecemo-vos há muito tempo… e sabeis decerto que respeitaremos a vossa vontade, seja ela qual for… mas não compreendemos o que neste momento aparentemente nos estais a querer dizer…
O rei, virando-se para o seu conselheiro, sorriu.
Havia muito, muito tempo, que ninguém via o rei Frederico sorrir assim…
- Compreendo a vossa estranheza… - continuou o rei – mas a explicação é simples. Eu próprio coloquei a pólvora seca na munição que os três príncipes levaram hoje para a floresta… e como todos vós deveis saber, a pólvora seca não abate nem um insignificante pato, quanto mais estes belos exemplares que tenho a meus pés…
E, virando-se para os dois filhos mais velhos:
- A pólvora seca só abate a ganância… e a vaidade…
 
Debruçou-se sobre o filho mais novo, boquiaberto e ainda de joelho em terra, e voltou a repetir, bem alto:
 
- Ergue-te, Chanceler do reino!

 

publicado por entremares às 20:31
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Segunda-feira, 22 de Junho de 2009

Reunião de notas

 

 

E então, quando chegou a sua vez, ela exclamou, alto e bom som:
- 21!
Escândalo. O que era aquilo? A colega estava a dormir ou a sonhar acordada?
- Como assim, colega ? Não percebi…
- 21. - repetiu ela, com energia redobrada
- Mas colega… está a brincar… - e o director de turma revirava a esferográfica nos dedos - e estamos todos cheios de pressa… qual é nota que tem para a Liliana ?
- Para a Liliana ? Ah… a Liliana… 7, dou-lhe sete.
- 7… muito bem… continuemos…
 
- Patrícia de Jesus, Matemática…
- 21 !
- Sinceramente, colega… veja se acorda… estamos aqui a tentar despachar isto e a colega não está a ajudar nada…
- Sim… ah, claro, claro… e estamos a falar da … Patrícia, não é?
- Da Patrícia, sim…
- A Patrícia…. pois claro … a Patrícia… 7, dou-lhe sete.
 
- Nuno Ribeiro dos Santos… Matemática…
-21!
- Colega… ESTOU FARTO ! FARTO, FARTÍSSIMO. – o director de turma assemelhava-se nesse momento ao vulcão Krakatoa, dois segundos antes de explodir - Pare de gozar connosco. Só porque lhe chamámos a atenção para não falar muito nas reuniões … não quer dizer que agora esteja aqui só a querer gozar connosco…
- Mas… - e a professora de Matemática colocou o seu ar mais inocente - … está equivocado, senhor presidente… é claro que eu nunca iria fazer pouco de si… e muito menos dos colegas…
- Equivocado ? Eu, equivocado? Então porque está sempre para aí a berrar 21, de cada vez que chega a sua vez de dar uma nota ?
- Essa agora… então não sabe, senhor presidente ? Então estes alunos não são daquela turma do curso profissional ?
- São, sim… e o que tem isso a ver? Eu só lhe pedi a sua nota…
- Mas é claro, senhor presidente… mas é claro… e foi isso que eu lhe tenho estado a dar… Em matemática, a minha disciplina… todos eles fizeram o módulo 21… se quiser pode confirmar…

 

publicado por entremares às 17:51
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Sábado, 20 de Junho de 2009

O pescador de pérolas

 

Inspirou profundamente, baixou a viseira e deixou-se escorregar.
Abriu os olhos.
Os raios de sol, filtrados pelas águas cristalinas do recife, contracenavam em danças multicores, projectando sombras sobre os tufos de coral. Uma multidão de pequenos peixes tropicais, de cores garridas e formas bizarras, fugiu de pronto a esconder-se, perante a agitação das águas.
Com um par de braçadas enérgicas, afundou-se em direcção a um pequeno maciço rochoso, batendo compassadamente as barbatanas; o passo seguinte consistiu em fixar o grampo à rocha, prendendo-o ao cinto, libertando-lhe as duas mãos para poder trabalhar.
Com gestos rápidos e precisos, depressa largou todo o equipamento – a prática de muitos anos ensinara-lhe que, debaixo de água, todos os segundos eram preciosos.
Muyama Alan tinha uma profissão pouco comum; era pescador de pérolas.
 
Qual era o segredo? Conseguir reter a respiração por longos minutos? Adivinhar a localização dos melhores locais do recife, onde as ostras se multiplicavam, agarradas às bases dos corais?
Fosse como fosse, Muyama, quase nos quarenta, apanhava pérolas desde muito novo, herdando a profissão do pai, do tio, do avô; e tal como todos os outros da mesma profissão, começava a padecer dos mesmos males, com o organismo a ressentir-se de longos períodos sem oxigénio – tonturas, dores de cabeça, arritmias.
- Tens que largar isso, Muyama… já. – o médico fora peremptório - … a menos que queiras terminar como o teu pai…
Ele não queria.
Guardava a recordação do pai afectuoso, mas que partira cedo demais, vitimado por um derrame … cedo demais para que pudesse ter tido tempo para desfrutar da sua companhia.
E, em casa… - afastou os pensamentos cinzentos – Não, mais viúvas, não…
Aquela seria a sua última descida ao fundo do mar. Prometera-o à mulher, grávida de gémeos, ao irmão, ao médico; prometera a toda a gente viver uma longa e próspera vida, aprendendo outro ofício. Seria sapateiro, entregador de pizzas, qualquer coisa – mas viveria o suficiente para ver os filhos crescer.
Era uma promessa.
 
A vida de um pescador de pérolas era feita de ilusões; no fundo das águas, procurando reunir para dentro da rede o maior número possível de ostras, as maiores, de carapaça mais escura, as mais escondidas. Depois, à superfície, abrindo-as meticulosamente, com o máximo cuidado para não atingir os pequenos tesouros escondidos no interior; as pérolas.
Claro que, ali bem ao lado, os grandes viveiros teriam sempre as maiores, as mais belas, as de coloração mais delicada. Mas persistia sempre a esperança de, mergulhando solitariamente no recife, encontrar… a tal pérola…
Continuou a encher os dois sacos de rede que prendera ao cinto – haviam passado quase três minutos, não teria muito mais tempo.
Avançou mais um pouco, apanhando ao acaso algumas ostras, enleadas em longas algas verdes.
Era tempo de voltar à superfície. Definitivamente.
Enquanto batia os pés na ascensão rumo à superfície iluminada das águas, ia largando aos poucos algum do ar retido nos pulmões, descomprimindo um pouco os tímpanos. Para trás, as pontas retorcidas dos corais foram mergulhando progressivamente na penumbra, confundindo-se com o fundo rochoso do oceano. Acima de si, só a luz, irrompendo na escuridão.
 
Novamente vazia. Outra vez.
Fraca pescaria aquela. Para última descida, os resultados não poderiam ser mais desanimadores – mais de metade das ostras já abertas e meia dúzia de pérolas brancas, pequenas, pouco vistosas.
- Nem uma pérola rosa, ao menos… - murmurou, lamentando-se da sua sorte
Atacou o segundo saco. Tinha um pressentimento que a sua sorte iria mudar.
 
Logo à segunda tentativa, algo mudou, com efeito.
Aquela ostra era em tudo igual às restantes – talvez um pouco mais escura, mas nada de anormal. Mal a abriu, com a ponta da faca de pesca, os seus olhos iluminaram-se num sorriso.
- Finalmente…
Ficou a olhar para ela, segurando-a com as mãos em concha.
Era pequena, muito redonda… sem falhas ou arranhões; e mais importante… era escura, muito escura… quase negra.
- Uma pérola negra…
A sua primeira.
Vinte anos de descidas ao fundo dos mares e só agora, precisamente na sua despedida das águas, o mar lhe cedia a sua mais preciosa lembrança, o objecto mais desejado por todos os pescadores de pérolas.
Ergueu-se no barco, excitado. Virou-a, revirou-a, ao sol, em contra-luz… era perfeita, absolutamente perfeita.
Mas foi então que…
 
Aquela tontura. Novamente. O desequilíbrio.
Tentou sentar-se, agarrar-se à amurada. A pequena pérola, alheia ao drama, escorregou-lhe silenciosamente por entre os dedos e mergulhou novamente nas águas.
Sem pensar duas vezes, mergulhou também, os braços estendidos. Conseguia vê-la, afundando-se lentamente, em direcção ao fundo. Precisava de a apanhar antes de tocar o fundo… ou então, não a encontraria nunca, no emaranhado de rochas e fendas do recife.
Bateu os pés, esbracejou furiosamente. Um metro, pouco mais de um metro…
 
- Muyama… deixa ir…
A voz da mulher soou-lhe de repente… nítida e cristalina, como se ela própria ali estivesse, bem ao seu lado.
- Deixa ir…
 
As águas mudaram de forma e uma miríade de rostos familiares cercaram-no, na sua imaginação – a mulher, à espera… os amigos… o pai… - mas a pequena pérola negra, a sua pérola, ali tão perto… seria só mais um esforço, o último esforço, e tudo teria uma recompensa, uma vida próspera… - deu mais uma braçada enérgica, esquecendo aquele característico zumbido nos ouvidos. A cabeça latejava, o cérebro já suplicando por um pouco mais de oxigénio.
 
- Muyama… por favor, volta…
Desta vez, a voz pareceu-lhe mais distante, mais abafada, como se a mulher tivesse partido e ainda chamasse por ele.
Parou, a meio caminho entre a superfície e o fundo rochoso.
Por muito que lhe custasse… a vida era feita de opções… e ele teria que decidir, agora, naquele preciso momento, o seu futuro.
Sem lamentos. Sem remorsos. O futuro.
 
Tranquilamente, a pequena pérola continuou a afundar-se no oceano. Já não a conseguia ver, os olhos ardiam-lhe, os pulmões estouravam de dor, os músculos hirtos clamavam por um descanso imediato.
Abriu os braços.
Lentamente, soltou um pouco de ar e rumou à superfície.
A decisão estava tomada.
Fora uma promessa.

 

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Quarta-feira, 17 de Junho de 2009

HAMAMI

 

Duas horas... duas horas e meia... quase três horas...
A viagem, felizmente, estava quase no fim. A auto-estrada projectava-se no horizonte, como uma serpente sinuosa de alcatrão negro, contornando montes, rasgando os bosques, transpondo rios revoltos com o degelo da primavera. Março aproximava-se do fim e a primavera conquistava o seu espaço, invadindo de verde vivo os mais ínfimos recantos, brotando de entre as rochas, salpicando de flores silvestres as beiras das estradas. Nos céus, as aves regressavam aos lares, embaladas pelas brisas mornas do sul.
Aos poucos e poucos, a neve fora desaparecendo e a vida adormecida voltava agora a brotar, com todo o seu esplendor, aos primeiros raios de sol.
Bragança, Macedo de Cavaleiros, Algoso… Castelo de Algoso. Um pequeno ponto no mapa, meia dúzia de casas em ruínas nas encostas de um castelo que já fora outrora imponente, mas que agora se entregara ao silêncio do abandono.
Chegara ao seu destino.
A estrada esboroada e cheia de curvas desencorajava os turistas. Os próprios habitantes evitavam percorre-la, apesar de ser a sua única forma de comunicar com o mundo exterior. Talvez por isso mesmo tivessem partido, um após outro, rumo à vila de Algoso, levando os filhos, os animais, o recheio das casa… transformando a aldeia num castelo assombrado de almas penadas, entregue aos cães vadios que percorriam as ruas vazias à procura de alimento.
Todos os habitantes haviam partido… todos, menos um.
 
O automóvel deteve-se diante da única casa ainda impecavelmente caiada de branco, com um rodapé azul forte a contrastar com o cinzento das pedras da calçada. Uma buganvília, já de tronco retorcido, estendera-se livremente sobre o muro, deixando pender uma mancha arroxeada viva sobre a rua, um tufo de cor no meio da desolação.
O último resistente de Castelo de Algoso insistia em cuidar do jardim, podar a sebe, pintar as portas e janelas e ainda manter saudáveis e bem tratados os coelhos, galinhas e as duas gaiolas de periquitos com que preenchia grande parte do seu tempo livre.
 
- Avô…
- Ricardito… pensei que te ias esquecer…
Abraçaram-se efusivamente.
O avô Gilberto era uma daquelas personagens de um mundo antigo, rural e em vias de extinção. Os dois filhos, noras, netos… todos residiam no Porto ou em Braga, entregues aos seus afazeres, disfrutando o conforto da civilização.
Mas ele ficara.
Vizinho após vizinho, acabara sozinho na pequena aldeia.
 
O Ricardito - como ele nunca deixaria de lhe chamar - era o mais novo de todos os netos; mas também aquele com que sempre mantivera a mais especial relação de afecto, de cumplicidade até. O Ricardito era a sua visita mais assídua, o único que - ainda criança - ali passara com ele algumas férias de verão, a brincar com os animais, a ajudá-lo na horta, empoleirado sobre o tractor.
E mesmo agora, vinte anos já feitos, continuava a cumprir aquele ritual mágico do último fim de semana de Março - O Hamami.
 
O que era o Hamami ?
O avô Gilberto explicara-lhe - andava ele ainda de calções - a essência da contemplação das amendoeiras em flor, uma tradição ancestral no Japão, onde todos os anos uma multidão de famílias rumava aos parques e campos, para se deleitar com o momento mágico do desabrochar da flor da amendoeira.
 
Sentaram-se no quintal traseiro da casa, uma toalha branca sobre a mesa, uma garrafa já aberta, pão, algumas guloseimas que o neto trouxera da cidade, à sombra da grande árvore.
Durante aquele fim de semana, ficariam por ali, tranquilamente à espera do momento mágico.
 
- Ainda te lembras? - e o avô observava-o com carinho.
Claro que se lembrava. Fora ele mesmo, com a ajuda do avô, que plantara aquela mesma árvore, num dia longínquo de uma daquelas férias de verão que ali passara. De alguma forma… sentia aquela árvore como um passar de testemunho, uma forma de perpetuar sentimentos, de partilhar afectos…
- Claro que me lembro, avô… então ia lá esquecer-me disso ?
 
Reclinou-se um pouco mais e olhou para um dos pequenos ramos, que pendia próximo da mesa.
- Queres fazer uma aposta comigo, avô ? Vai ser ser aquela ali… a primeira a abrir…
O avô seguiu-lhe o olhar e sorriu.
- Nem penses Ricardito… julgas que acertas todos os anos, é isso ? Nem penses… ora deixa-me lá ver qual vou eu escolher…
 

 

publicado por entremares às 10:51
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Segunda-feira, 15 de Junho de 2009

Regresso a casa...

 

( Participação na Tertulia Virtual - 15 de Junho de 2009 )

 

 

 

 

 

Finalmente, apertou o botão.
O som estridente da campainha metálica fez-se ouvir, sobrepondo-se ao cair das gotas de chuva no asfalto molhado. Dezembro era habitualmente mês de Inverno mas, que se recordasse, há muito que não chovia tanto…
Aspirou uma última baforada de fumo e atirou o cigarro, ainda meio, para uma poça de água do alcatrão – um dia, teria mesmo que largar o vício.
Mas não naquele dia.
Ajeitou a gola do casaco. Não era só a chuva, o frio também não ajudava nada – aquele frio cortante, que atravessava a roupa e ia direitinho aos ossos.
- Vá lá… abram lá a porta… - resmungou para os seus botões - … de que é que estão à espera ?
Os segundos continuaram a passar… e nada.
O grande portão de metal continuava na mesma – sempre bem pintado, a meia dúzia de pequenas aberturas na parte superior, a janela de vidro, o gradeamento. Os muros, as torres, o jardim bem cuidado … estava tudo rigorosamente na mesma, tal como ele se recordava … e já passara quase um ano.
Finalmente, o portão abriu-se e um homenzinho atarracado, de uniforme cinzento, espreitou.
- Olha quem ele é… o nosso Pepe…
- Sr Dinis… como vai ?
Abraçaram-se.
- Então sempre é verdade ? Vens cá passar a noite connosco ? Quando me disseram, eu nem acreditei…
- É verdade… telefonei ontem… o director disse-me que não havia problema…
- Claro que não tem problema… tu fazes parte da família… vá, entra, entra…
O estrondo do portão metálico a fechar-se nas suas costas fê-lo estremecer. O guarda Dinis apercebeu-se e passou-lhe a mão pelo ombro.
- Vá Pepe… não te preocupes, não penses nisso… tu agora vives do lado de fora… estás só de visita…
Só de visita.
Aquelas simples palavras ataram-lhe a garganta num nó. O guarda Dinis sempre fora um homem decente, como aliás a grande maioria dos guardas da prisão. Até o director, o Dr. Tello sempre fora correcto com ele – autoritário, teimoso… mas nunca passando dos limites.
Ultrapassaram o hall de entrada e embrenharam-se no corredor do bloco um, onde se localizava o ginásio, a capela e todos os serviços administrativos.
- Pepe… como vai isso ? – cumprimentou um dos guardas da secretaria, acenando com a mão.
Ele respondeu ao cumprimento.
- Vai tudo bem, sr. Afonso… vai tudo bem… 
Ultrapassaram a porta gradeada. À esquerda, o corredor que levava ao gabinete do director, à direita, os vestiários e a sala dos guardas.
A porta estava aberta.
Os guardas Filipe, Gonçalves, até o sargento Matias… todos sentados à volta de uma mesa enfeitada a preceito, com velas e jarro de flores ao centro. Frango assado, leitão, um prato com camarões, jarros com sangria e gasosa… e um bolo rei enorme, de um aspecto guloso e colorido. No canto da sala, entre a televisão e o chaveiro metálico, uma árvore de natal bem decorada relembrava a quadra festiva, entre estrelas douradas e o piscar característico das luzinhas coloridas.
Era Natal.
- Olha o nosso Pepe… - e o sargento Matias levantou-se prontamente para o cumprimentar – então como vai isso, homem ? Que tem feito ?
- Cá vamos andando, cá vamos andando… os ossos não gostam lá muito desta chuva toda, sabe…
- Então não sei ? Eu que sou mais novo estou todo enferrujado… mas venha cá, venha cá, sente-se aqui.
Pepe sentou-se, no meio dos companheiros de ceia. Pouco depois o guarda Afonso veio fazer-lhes companhia.
Contaram-se anedotas, falou-se de futebol, de mulheres, de comida, da crise, do desemprego, da D. Madalena ( a nova funcionária da secretaria ), da sorte do jardineiro Tobias, que lá fizera cinco número no euromilhões.
A pouco e pouco, conseguiram que Pepe provasse o leitão – magnífico, receita caseira da mulher do guarda Gonçalves. Os camarões também marcharam num ápice, entre goles de sangria.
Pepe conseguiu até rir, quando o guarda Afonso despachou duas anedotas seguidas de alentejanos.
 
Trinta e três anos… era muito tempo.
O passado ficara lá longe, e Pepe seguira em frente. Um passo de cada vez, um ano de cada vez, até cumprir integralmente a pena. Trinta e três anos e duas semanas, nem mais um dia. Expiara a sua dívida para com a sociedade, arrependera-se, esforçara-se por transformar todo aquele tempo inútil em algo de proveitoso. Cultivara-se, fizera amigos, vira partir amigos, vira até voltar alguns deles. Ganhara o respeito dos guardas, chegando inclusivamente a ser convidado por um deles para o respectivo casamento.
A partir de certa altura, Pepe deixou de ser um preso, passou a ser parte da família, uma família talvez um pouco diferente, uma família que vivia numa fortaleza de muros altos, cercada de arame farpado, com muitas escaramuças pelo meio e uma solidão gotejante que embaçava os vidros foscos das celas, dos corredores…
Agora perto dos setenta, Pepe deixara à força aquela família, a sua única e verdadeira família – não tinha outra – deixara à força a sua casa…
A sua casa…
A sua casa tivera ali um endereço, como as casas normais, do mundo de lá de fora. Pepe residira na cela B24, do bloco B, segundo piso, célula número quatro.
 
Tudo isso fazia agora parte do passado. Pepe voltara à liberdade, aranjara um quarto numa pensão barata, dividia o tempo entre a carpintaria do ex-colega António e a barbearia do sr. Gilberto, um guarda aposentado. Ao domingo, ajudava o padre Alberto a celebrar a missa na prisão e depois ficava por lá, a jogar às cartas ou a ver televisão… para não ficar sozinho.
Quando num impulso pediu autorização para o deixarem aparecer na noite de Natal… nunca pensou que lhe dissessem sim.
Mas o Dr. Tello surpreendeu-o.
- Claro que pode vir, Pepe… você faz parte aqui da família…
 
- Então, Pepe, como é? Não abre o seu presente?
Engoliu em seco.
- Não comprei nenhuma lembrança para vocês… - ainda conseguiu gaguejar.
- Nem era preciso, homem… isto é só uma pequena coisinha aqui da gente… vá lá, abra…
Com as mãos a tremer, lá conseguiu rasgar o papel.
- Eu… eu… não tenho palavras…
 
Com as duas mãos, agarrava com força a moldura de madeira. Ao centro uma fotografia mais pequena, com meia dúzia de rostos conhecidos, alguns deles sentados ali à mesa. No centro, a figura de Pepe, uns anos mais novo, mascarado de palhaço, à entrada da cela, fotografado em flagrante a enfiar um chapéu de cowboy pela cabeça abaixo ao sargento Matias – na altura, ainda era cabo. O guarda Dinis, à frente, despejava uma daquelas latas de spray de neve… e o resultado fora… inesquecível.
 
- Então Pepe … que tal se sente ?
Os olhos brilharam-lhe um pouco mais.
- Como me sinto? ... eu nem sei... sinto-me em casa, é só isso, sinto-me em casa...
publicado por entremares às 20:49
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Domingo, 14 de Junho de 2009

Vale a pena tentar...

 

Porque estava a água tão azul ?
 
Abriu os braços e deixou-se ir. O fundo do oceano chamava-a, num murmúrio silencioso que mais ninguém, para além dela própria, ouvia. Talvez fosse só o rebentar das ondas nos recifes de coral, à superfície; ou o rolar das conchas no fundo de areia, empurradas pela corrente. Ou talvez não fosse nada.
Um silêncio imenso, azul, tomou-lhe o corpo, enquanto se afundava devagar, contemplando a superfície luminosa das águas a afastar-se, cada vez mais distante, mais distante...
Era uma forma de partir, tal como outra qualquer.
Era uma forma de desistir, de renunciar ao sofrimento, de dizer basta à doença, de aceitar... que nem sempre se pode vencer.
Soltou as últimas bolhas de ar que ainda conservava consigo e ficou a vê-las subir, rumo à superfície... enquanto ela se afundava mais e mais, para uma água cada vez mais azul, rumo à escuridão.
O médico dissera-lhe: mais seis meses... talvez um ano, se tiver sorte...
Não era justo.
Tanta coisa ainda por fazer... tantos projectos inacabados... tantos sonhos por cumprir... e uma doença, seis meses de vida, talvez um ano? Se tivesse sorte?
Não era justo.
Mas a vida não tinha que ser forçosamente justa, pensou. Sentira as primeiras dores no mês anterior, e depressa compreendeu o que a esperava, nos tempos seguintes.
As dores repetiram-se, aumentaram de intensidade. O médico também a avisara disso. O próximo passo seria a cirurgia, a amputação, e depois... nem ela sabia o que seria o depois.
A falta de ar apertou-lhe o peito.
À sua volta, um bando de peixes coloridos parecia intrigado, pela presença daquele corpo inerte, afundando-se vagarosamente no oceano.
A vista turvou-se, misturando formas e cores numa aguarela confusa.
Deixou-se ir.
 

 

Algo a tocou. Abriu os olhos.
O que era aquilo?
Uma tartaruga? Nunca estivera assim tão perto de uma...
Passou-lhe a mão pela carapaça, lisa e escorregadia. Ela devolveu-lhe o gesto, debicando-lhe o braço frio. Só então reparou, quando a viu afastar-se.
O pobre animal já sofrera no corpo a investida de algum caçador, faltava-lhe um dos membros inferiores. Nadava desajeitada, em sucessivas curvas, mais devagar do que seria normal... mas mesmo assim, sobrevivera, e ainda continuava viva, nadando...
Ficou a vê-la afastar-se, rodeada por um séquito de pequenos peixes, como se de uma autêntica corte se tratasse.
 
Contemplou novamente a superfície esbranquiçada das águas, cada vez mais longínqua.
Valeria a pena?
 
Não sabia.
Sabia simplesmente que... tinha que tentar.
Abriu os braços e apontou à superfície. Podia já não ter ar suficiente... mas valia a pena tentar...
 

 

publicado por entremares às 10:54
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Sexta-feira, 12 de Junho de 2009

Rosemary

 

Indonésia... Tailândia... Filipinas... Laos... Sri lanka.. Birmânia...
Todos os rostos eram idênticos... e todos os rostos eram diferentes.
Crianças.
Estava a folher catálogos de crianças... como se estivesse a comprar roupa por encomenda, verificando a origem, um resumo da história, doenças, sinais particulares...
Fez um esforço para se concentrar. O pequeno escritório, quente e húmido, abarrotava de vozes e pessoas aos encontrões, rodopiando por entre as secretárias metálicas, transportando dossiers, maços de papéis, papéis e mais papéis.
E ela ali estava, sentada a um canto, com uma pilha de dossiers em cima da mesa, três formulários para assinar e uma decisão para tomar; uma decisão muito importante, que mudaria o destino de alguém em particular.
Quantos anos se haviam passado desde aquela fatídica manhã?
Fora em 2004, lembrava-se bem.
As férias, a manhã na praia, a excursão prevista para as ilhas Phi Phi... tudo fora levado pelo mar, naquela manhã horrível em que o mar galgara tudo e onde aquela onda gigantesca os empurrara terra adentro, derrubando tudo à sua passagem.
Em Puket, o hotel onde estavam alojados resistira ao avanço das águas, mas fora impotente para salvar todos os que se afogaram nos jardins, na piscina, nos quartos inundados.
Rosemary, brasileira de Recife, avós açoreanos, não perdera nenhum familiar naquela manhã. Viajara sózinha com três amigas, para duas semanas de férias na Tailândia, os dois filhos já crescidos tranquilamente entregues a si próprios.
Salvara-se por sorte, por milagre ou por mero acaso, nem ela o sabia.
Os corpos das três amigas nunca foram encontrados – tão pouco outro casal de brasileiros que conhecera no avião, ele professor, ela enfermeira pediatra.
Cinco anos depois... decidira voltar.
Desta vez, não para se estender no areal branco ou mergulhar nas águas cálidas de Puket.
A decisão estava tomada, havia muito. Só nunca conseguira reunir coragem suficiente para a assumir e levar por diante.
Finalmente, o olhar deteve-se numa das páginas do dossier número três.
Yu In Min, orfã, natural de Sumatra, Indonésia.
Não soube explicar o porquê, mas o coração bateu-lhe mais depressa, mal a viu. Tinha os dedos na boca, uma blusa vermelha a cobri-la e... aquele olhar, aqueles olhos negros expressivos que, num segundo apenas... se apoderaram dela.
Apontou a referência da fotografia no formulário. Preencheu os dados necessários; nada de complicado, o processo todo era extremamente simples, como forma de facilitar todos os processos de adopção em curso e tentar assim, desse modo, apaziguar o sofrimento dos milhares de crianças orfãs, ainda em lista de espera, depois do tsunami.
Rosemary soube, nesse preciso momento, que estava a cumprir uma espécie de destino, a retribuir anónimamente a benesse de continuar viva, de ter sobrevivido, sem uma beliscadura, ao tsunami de desolação que varrera todo o sudeste da ásia.
Colocou-se na fila de espera, rumo ao guichet. À sua frente, um casal de portugueses, de aspecto enlutado, trocavam olhares de cumplicidade silenciosa.
Olhou novamente para os formulários que tinha na mão.
A fila avançou mais uns passos.
 
- Seguinte... o seu nome, por favor?
Ela pousou os formulários sobre a mesa.
- Rosemary... Rosemary da Conceição.

 

publicado por entremares às 08:59
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Quinta-feira, 11 de Junho de 2009

Com imaginação...

 

Talvez um pouco mais de... azul.
Sim, definitivamente. E carregar um pouco mais no verde, também.
 
Afastou-se um pouco, para ver melhor.
Um jorro de água cristalina ocupava todo o centro do quadro, precipitando-se da pequena cascata e desdobrando-se em múltiplos fios de espuma branca. O verde, aquele imenso verde dos trópicos, enchia todo o espaço circundante, rodeando a água, emoldurando a cascata. Aqui e ali, algumas copas de palmeiras emprestavam um pouco de amarelo à vegetação, numa composição garrida, plena de cor e movimento.
Reflectindo o céu, a água misturava o branco e os vários tons de azul, adivinhando uma atmosfera quente, húmida, pejada dos cantos dos pássaros e zumbidos dos insectos. Seria África, talvez. Ou na Amazónia.
Sorriu, feliz com a sua obra.
A escolha do título ficaria para depois.
Naquele momento, queria simplesmente saborear a tristeza.
 
Terminar um quadro era - sempre sentira isso, vá lá saber-se porquê – perder um pouco de si próprio. Estavam ali, impregnados na tela, muitos dias da sua vida, durante os quais respirara toda a sua imaginação, combinara cores, vislumbrara um cenário inexistente e... do nada, de uma tela branca e informe.... dera-lhe vida, fazendo nascer um mundo de cor. Terminar um quadro era assumir que a sua criação, como um filho, ganhara vida própria, independência. A ele, nada mais restava que limpar os pincéis e afastar-se, deixando a sua obra respirar por si própria, livre dos afectos do seu criador.
 
- Está muito bonito...
Ele não a sentira aproximar-se.
- Ainda bem que gostaste... sinto que já estive naquele local, junto daquela cascata...
Ela encostou-se a ele e assim ficaram em silêncio, a ver a água jorrar da cascata, emoldurada pelo verde-amarelo das palmeiras.
- Onde viste esta paisagem ? – quis ela saber.
- Não sei... creio que nunca a vi, realmente... mas sonhei muitas vezes com ela...
 
Ela abriu um pouco as madeiras e um jorro de luz quente inundou o pequeno estúdio.
- Está muito calor, lá fora? – perguntou ele.
- Está sim... a tempestade de areia teima em não terminar... já lá vão dois dias e ainda nem sinais de acalmar...  
 
Lá fora, a areia do deserto fustigava impiedosamente as paredes exteriores da casa. Naquela altura do ano, era normal; os ventos do norte galgavam as escarpas e empurravam as areias do deserto, tapando tudo à sua passagem com um manto branco. Na pequena aldeia de Fashira, bem junto da fronteira da Líbia, os habitantes já estavam habituados a conviver com o pesadelo das tempestades de areia. No ano anterior, algures em Junho, uma tempestade forçara-os a permanecer dentro das suas casas por três semanas, isolados do mundo exterior.
A vida no deserto era assim, dura, implacável, com regras próprias.
 
Pegou na tela branca e colocou-a sobre o cavalete.
Fechou os olhos. Onde gostaria agora de estar ?
 
Com mão firme, atacou a superfície branca.
Uma montanha longínqua, com os cumes cobertos de neve, ia começar a nascer, na ponta dos seus dedos...

 

publicado por entremares às 12:42
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Quarta-feira, 10 de Junho de 2009

Nozes e avelâs

 

- Vinte e sete... vinte e oito... vinte e nove...
- Não achas que já é suficiente? Estamos a ficar sem espaço...~
- Trinta e dois... trinta e três... trinta e quatro...
- Lilo, já chega. Já temos a casa cheia...
- Só mais uma... trinta e oito... trinta e nove... ahhh... quarenta.
- Já acabaste?
- Já... quarenta, consegui juntar quarenta. Acabei.
- Brilhante... e agora, o que vais fazer?
- Agora? Não sei, ainda não pensei nisso...estive só a juntar as nossas provisões para o inverno...
- As nossas provisões ? As tuas provisões, queres dizer...
- Ahn? Mas são avelâs, meu amor...
- E então ? Não sabes que as avelâs me fazem mal ?
- Não me lembrei, desculpa...
- E agora ? O que vais fazer ? Preciso de espaço para arrumar as minhas nozes.
- As tuas nozes ? Hum, deixa-me pensar... já sei.
- Já sabes ? Assim tão de repente?
- Pois é claro. Eu sou de ideias rápidas. E tenho sempre ideias brilhantes...
- Sim... e qual é a ideia agora ?
- É simples, pois então... é só eu convidar os meus amigos, sabes... aqueles da árvore do jardim, para virem aqui a casa, no fim de semana, ver o jogo na televisão... entre todos, havemos de dar algum despacho às avelâ... e tu já ficas com espaço para as nozes... é uma boa ideia, não é ?
- ... estou com um mau pressentimento acerca dessa tua ideia...
 
_ Lilo, como vais? Estou atrasado?
- Olá Miko... não, está tudo bem, ainda está a dar a publicidade...
- Os outros, já chegaram todos ?
- Já... só faltavas tu.
- Tu és um compincha, Lilo, a sério. Como a conseguiste convencer a receber-nos todos cá em casa, para assistirmos ao jogo?
- Shiuuu... fala baixo, Miko, fala baixo... já devias saber que eu sou cheio de recursos... foi só falar-lhe ao coração, só isso...
- A minha dar-me-ia logo com o rolo da massa em cima... tu és um espectáculo, Lilo... o Jocas, também veio ?
- Veio, veio... e trouxe o primo também... estamos todos...os vinte.
- Os vinte? E a tua mulher... não disse nada?
- Ahn... não... por acaso, até eu próprio estou espantado...
 
- Lilo?
- Sim, querida?
- Pedes aí o casaco ao Miko? Estou a arrumá-los todos no quarto, para poupar espaço...  
- Claro, claro... toma.
- Obrigado... e agora, antes de eu sair e deixar-vos em paz, a ver o jogo, só mais uma coisinha...
- Sim, querida...
- Pedes a eles que se calem, por favor? Senão, ninguém me ouve.
- Claro, claro... pessoal, vamos lá a fazer silêncio... aqui a minha Lila quer dizer-vos qualquer coisa...
 
- Meus queridos... fico muito contente que tenham vindo ajudar o Lilo a acabar com todo o stock de avelâs que ele arranjou... mas como sabem, eu detesto avelâs, fazem-me muito mal. Aliás, ele sabe muito bem que eu gosto é de nozes, daquelas grandes, não demasiado secas, suculentas... Deixei-vos as bebidas prontas na cozinha, podem servir-se à vontade... e a propósito, como sei que todos vocês se combinaram para organizar isto, fiquem desde já a saber que só vos devolvo os casacos, com as vossas carteiras, chaves e tudo o resto... quando cada um de vocês me vier trazer aqui a casa duas nozes, daquelas que eu gosto... é um pagamento justo, não acham?
 
E ergueu uma das patas, exibindo triunfalmente a chave do baú onde guardara todos os pertences dos convidados. Depois deu um salto e pulou para o jardim.
 
- E não sujem muito a cozinha... ainda gritou.

 

publicado por entremares às 18:20
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Terça-feira, 9 de Junho de 2009

Mãe coragem

 

Cais da Rocha, Lisboa, 1968.
Uma tarde quente de Agosto, suavizada pela brisa marítima do Tejo. A sirene do paquete Infante D. Henrique ecoou, naquele tom grave que fazia estremecer os vidros das janelas, acompanhada de uma imponente baforada de fumo negra das suas chaminés.
O cais fervilhava de movimento – estivadores, tripulantes, passageiros, autoridades da alfândega, carregadores. Na margem esquerda, o Pátria, o Príncipe Perfeito e o Uige permaneciam ancorados aos pontões, à espera da sua vez. Vistos ao longe, deslumbravam pelo alvo branco das pinturas, os azuis vivos, as bandeiras desfraldadas. Ao perto, ofuscavam pelo tamanho descomunal, que fazia invariavelmente com que os passageiros se sentissem pequenos, muito pequenos, ao acercar-se da comprida escada que unia o cais ao convés.
Um funcionário do porto, fardado a preceito e de maço de papéis na mão, verificava a identidade dos passageiros, um por um, à medida que se aproximavam da escada de acesso ao navio.
 
- Não me largues a mão… está aqui muita gente, não te posso perder de vista…
E dito isto, ajeitou melhor a criança que segurava no braço esquerdo.
Não era tarefa fácil, convenhamos. Tentar embarcar sem ajuda, transportando consigo três crianças, duas das quais de colo, a terceira com cinco anos, agarrada às saias, e ainda sem poder perder de vista as bagagens de mão, onde conseguira arrumar, por magia, todos os utensílios indispensáveis para tratar de crianças de colo, as roupas essenciais e tudo o resto que habitualmente fica esquecido em casa.
Avançou mais um metro, na longa fila dos passageiros, rumo à escada de entrada.
Maria do Carmo, trinta e oito anos e um desafio pela frente. África.
 
Chegara a altura. O marido partira antes, como naqueles tempos era hábito; para arranjar casa, preparar tudo o necessário, experimentar as condições de vida que a propaganda apregoava serem as melhores, incomparavelmente melhores que a vida da metrópole, como então se chamava esta ponta da Europa.
- A senhora precisa de ajuda aí com as criancinhas ? Eu nem sei como consegue carregar as duas ao colo…
A velhota simpática esticava os braços, desejosa de ajudar.
- Obrigado… não é preciso… já estamos quase a subir … já vamos poder descansar todos…
Os braços ? Era melhor nem pensar nisso. De qualquer dos modos, também já nem os sentia…
Sabia sim que, mal se sentasse, muito dificilmente se voltaria a levantar. O corpo pesava como chumbo, mas apesar disso ainda ia conseguindo embalar o seu bebé – dois meses de idade – com um braço e segurar o outro. Por muito que lhe custasse, ninguém mais olharia por eles, como ela olhava. Não, fosse como fosse, as forças chegariam para levar até ao fim aquela aventura, subiria sem ajuda aquelas escadas imensas, descobriria o seu camarote, deitá-los-ia a repousar e finalmente… tentaria fechar os olhos, sonhando com uma viagem breve e sem sobressaltos.
 
- Nome e número de acompanhantes ?
O funcionário aprumado mirou-a de alto a baixo, por cima dos óculos grossos. Uma mulher e três crianças.
- Maria do Carmo Palma – respondeu ela, ao mesmo tempo que empurrava um dos sacos com o pé, para junto de si. – e estes são os meus três filhos… Rolando, Maria e Jacinto… deve ter aí os nomes deles…
O funcionário lá encontrou os nomes, anotou a presença e fez-lhe sinal para prosseguir.
- Nome e número de acompanhantes ? – voltou ele ao ataque, já olhando para o casal com dois filhos que vinha logo atrás.
Maria do Carmo subiu a escada. Um dos tripulantes veio em sua ajuda, carregando solícito os sacos.
- Que grande carregamento, minha senhora… até parece que traz a casa consigo..
E sorria, com aquela boa disposição que a juventude empresta ao rosto.
- É verdade… trago a casa atrás…
 
Parou um segundo, só para olhar para trás.
Algures nas amuradas do porto, junto das cancelas, uma multidão de familiares acenava lenços a todos os que, já encostados às protecções do convés, se despediam da família; maridos, mulheres, filhos e primos, amantes e amigos, conhecidos apenas.
Não estava arrependida de nada.
Mas, por um breve instante, desejou com todas as forças desvendar o futuro e saber o que lhe reservaria África.
 
A sirene soou de novo, a anunciar a partida eminente.
- Preciso de ajuda… - murmurou para si própria – preciso mesmo de ajuda…
Ergueu os olhos para o céu azul e sem nuvens.
E voltou a repetir.
- A sério… preciso mesmo muito da Tua ajuda…
 
Obs: Hoje abro uma excepção - a história é verídica e esta é a minha mãe. 
Hoje é o dia do seu 79ª aniversário.
Parabéns, mãe.

 

publicado por entremares às 11:24
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Domingo, 7 de Junho de 2009

Meninos de Darfur

 

 

Todos os dias, o mesmo flagelo, a mesma rotina, o mesmo desespero.
O que comer?
A terra continuava seca. Seca e estéril como as pedras, sem erva, sem alimento, sem água.
A grande planície de El Fasher, no extremo ocidental do país, sempre fora o lar ancestral dos Fur, uma das quatro etnias de um dos países mais áridos de Africa, o Sudão. Os Shatt, os Tama e os Zaghawa, mais numerosos, há muito que se haviam espalhado pelos territórios vizinhos, instalando-se até em países vizinhos, como o Chade, a Líbia e até o Egipto.
Os Fur, mais ciosos dos seus costumes e tradições, mantinham-se na grande planicie, sobrevivendo às atrocidades de Darfur, tentando sobreviver nas pequenas aldeias, de paredes de barro e tectos de ramos secos.
Sobreviver.
Há quanto tempo não caía dos céus uma gota de água? Um ano? Talvez mais.
 
Mordebe conhecia bem as suas tarefas diárias. Aos sete anos, podia dar-se por muito feliz por estar vivo, não padecer de nenhuma doença grave e, principalmente, não ser orfão. Eram estas as prioridades para qualquer criança Fur, sabendo já de antemão que adoecer era o prenúncio da morte, sem médicos, nem hospitais nem farmácias num raio de muitas centenas de quilómetros.
O dia de Mordebe começava bem cedo, por volta das cinco da manhã, quando os primeiros raios de sol desciam sobre a aldeia. A mãe, Nyala, agitava as brasas e despejava sobre as malgas de barro uma mistura pastosa de sabor azedo, misturando sementes moídas e folhas verdes; a água era pouca e não podia ser desperdiçada.
A temperatura subia rapidamente para os 40, 41 ou 42º - mesmo assim, sempre um pouco menos que em Albara, mais ao norte, onde atingia frequentemente os 46 e 47º - um autêntico inferno, à sombra.
Depois da parca refeição, era tempo da recolha.
Mordebe, o irmão mais velho e o filho dos vizinhos, Fashin, dirigiam-se ao extremo sul da aldeia e, a partir daí, percorriam agachados os campos secos, de malga de barro na mão, à procura de sementes – sementes deixadas cair pelos pássaros, arrastadas pelo vento, desenterradas por acaso. Tudo servia, desde que fosse comestível.
De quando em quando, pequenos arbustos eriçados de espinhos brotavam de entre as rochas. As poucas árvores que ainda sobreviviam, erguiam-se como fantasmas nus de folhas, agitando os ramos vazios ao vento, à procura de uma brisa mais fresca.
Assim passariam toda a manhã, até o sol atingir o ponto mais alto. Depois, voltariam a casa, Nyala tentaria cozinhar algo com que pudessem enganar a fome por mais umas horas e logo voltariam ao campo, para procurar novamente mais alguns grãos.
No semana anterior, Fashin perdera o irmão mais novo, de doença.
Caminhavam em silêncio, atentos às pedras e raízes, em busca das sementes que poderiam significar a diferença entre a vida e a morte, abandonados aos seus próprios pensamentos, quebrados pelo inevitável fardo de lutar... para sobreviver.
O céu, habitualmente azul escuro e sem nuvens, ostentava um cinzento pesado de chumbo.
Mordebe sentou-se um pouco, interrompendo a busca incessante de sementes. Os joelhos doíam-lhe horrivelmente e as costas, vergadas à posição habitual, teimavam em não conseguir uma postura correcta.
Olhou para cima e na sua imaginação, as nuvens brancas formaram figuras fantasmagóricas, destacando-se sobre o fundo escuro do céu. Uma delas, em particular, assemelhava-se bastante a um rosto humano, sorridente e afectuoso.
Mordebe sorriu-lhe, e a nuvem pareceu devolver-lhe o sorriso.
Ao longe, um clarão de fogo sulcou os céus.
 
Mordebe fechou os olhos. Algo lhe caíra sobre a testa.
Abriu a boca.
Primeiro uma gota, depois outra... e ainda mais outra, gotas grossas de água refrescante, e em breve o céu se despejou sobre a terra árida, vertendo com violência toda a água armazenada durante a seca de tantos e tantos meses.
Mordebe permaneceu sentado, de boca aberta, sorvendo com sofreguidão os pingos grossos que lhe escorriam pela cara. Colocou as mãos em concha sobre a boca e ali ficou, a beber água, como se de repente o paraíso tivesse descido à terra sob a forma de pequenas gotas cristalinas.
 
O rosto humano, sorridente e afectuoso, que Mordebe vira nas nuvens, já se dissolvera noutras formas. Mas a chuva continuava a cair, sob a forma de um quase milagre, sobre a planície ressequida de El Fasher.
 
Mordebe permaneceu sentado, de boca aberta às gotas da chuva, durante muito tempo.
O futuro era incerto.
Não sabia quando voltaria a chover.

 

 

publicado por entremares às 18:52
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Sábado, 6 de Junho de 2009

Só mais um mergulho...

 

Cheia de preguiça, esticou os braços.
De olhos fechados, mal sentia o corpo, ainda trôpega de sono.
Apetecia-lhe voltar a mergulhar nas águas transparentes do recife, abandonar-se ao sol sobre as areias brancas, voltar a adormecer à sombra dos coqueiros.
Um torpôr agradável assaltou-lhe o corpo e ela permaneceu imóvel, de olhos fechados, em êxtase.
Podia ouvir o mar.
Ondas mansas desfaziam-se em espuma na areia. A praia, vazia, era só uma imensa extensão branca e verde, pejada aqui e ali de rochas solitárias, ainda a escorrer água da maré alta.
Mesmo de olhos fechados, era fácil imaginar o azul forte do céu, as velas brancas dos veleiros sulcando as águas, as cabanas de madeira pendendo sobre a lagoa cor de esmeralda.
E o silêncio... ah, o silêncio...
Aquela ausência aboluta de tempo, de horários, de ruídos de fundo, de jornais, de televisão...até a ausência de sapatos... só a música de fundo do bater das ondas na praia, o abanar da copa dos coqueiros e das palmeiras.
Deixou-se ficar imóvel, quase ausente do corpo, imersa em sensações de paz, de uma profunda paz que lhe tomava de assalto o espírito, como se até os próprios pensamentos surgissem agora em câmara lenta, a um ritmo quase tão lento como o próprio respirar...
Pelo menos uma vez na vida, todos deveriam poder experimentar aquela sensação de paz quase absoluta, retemperadora de forças.
O paraíso, a existir, deveria ser algo de muito semelhante...
 
Sentiu que a abanavam, com extremo cuidado.
Abriu os olhos.
 
- Mãe... – tenho fome... vem fazer-me os cereais...
- Hum... o quê?
- Tenho fome... vem dar-me de lanchar...
Esfregou os olhos, ainda estremunhada. Pela janela, conseguia distinguir perfeitamente o céu cinzento e aquelas gotas irritantes, cinzentas, de uma chuva que, apesar de maio, teimava em persistir, estragando o que prometia ter sido um óptimo fim-de-semana.
- Onde está o pai ?
- Está agarrado ao computador... tenho fome...
 
Virou-se para o lado no sofá.
- Vai dizer ao pai para te dar de lanchar... eu ainda vou à praia dar mais um mergulho...
- Um mergulho ? Mãe ?
 
Ela já deixara de o ouvir.
De olhos fechados, ouvia novamente o mar a chamá-la.
O mar, o sol, e uma praia de areia branca...

 

 

publicado por entremares às 18:38
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Sexta-feira, 5 de Junho de 2009

Vote em mim

 

- Já te decidiste, então ?
 
- Já… vou votar no Partido X.
 
- No Partido X ? Não estás a falar a sério, pois não ?
 
- Estou, sim… e tu, como vai ser ?
 
- Ora, como havia de ser ? Vou manter-me no mesmo…
 
- Vais votar nos vigaristas do Partido Y ? Não posso crer… Depois de tudo o que têm feito…
 
- Ora… também não é preciso exagerar…não foi tudo ruim…
 
- Claro que foi. Eu nem posso acreditar que tu, uma pessoa esclarecida e sempre tão bem informada… vá fazer uma coisa dessas…
 
- Hum… sabes como é… sou empresário… tenho uma empresa para tratar, salários para pagar ao final do mês… tenho que pensar no futuro…
 
- Eu também tenho que pensar no futuro… e olha que até falei com alguns dirigentes do Partido X… e eles têm umas propostas bem interessantes, coisas sérias, sabes?
 
- Coisas sérias? Como por exemplo ?
 
- Por exemplo… sei lá, agora de momento não me vem assim nenhuma à memória… mas sei que vão fazer coisas boas, têm lá gente capaz…
 
- Tu só dizes isso porque tens um bom emprego, um emprego estável… se fosses empresário como eu…. Terias que andar sempre com eles nas palminhas das mãos, sabes ? Um concurso público aqui, uns projectos ali…
 
- Pois… por isso é que votas neles… tens já os teus amiguinhos importantes, hem ? Quem diria, quem diria…
 
- Não sei porque estás a estranhar… tu não vais fazer o mesmo ?
 
- Eu ? Claro que não. Eu não sou empresário.
 
- Pois não… mas és banqueiro, o que é muito melhor. Vá… conta lá… onde é que foste passar as férias, pagas pelo banco ? Às Caraíbas, certamente…
 
- Shiu… vê lá se falas mais baixo… e nem fiques a pensar que todos os bancos são assim… o nosso é especial, somos todos gente honesta e trabalhadora… e a propósito, para que saibas, não fui às Caraíbas, está bem ? Fui às Maldivas, às Maldivas…
 
 
 

 

publicado por entremares às 15:49
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Quinta-feira, 4 de Junho de 2009

Mestre Bonifácio

 

“ O meu nome é Bonifácio
E sou mestre de muito oficio.
Escrevo na pedra o prefácio
E enterro na cova o vicio.”
 
Assim assobiava mestre Bonifácio, o ilustre coveiro da pequena aldeia de Casais do Pinhal, concelho de Pampilhosa da Serra.
O mestre Bonifácio era uma daquelas raras figuras que só não nascera Camões por acaso; a tudo respondia com uma quadra, um soneto ou, na pior das hipóteses, com uma simples rima.
 
“ Não conheço nenhum cliente
Que com vontade me queira ver.
Mas todo o mundo e toda a gente,
Mesmo o mais impaciente,
Perde a pressa quando sabe
Que aquilo que está eminente,
É tão inevitável como morrer.”
 
Claro que, numa aldeia tão diminuta como Casais do Pinhal, o espírito desembaraçado de mestre Bonifácio obrigava a alguns biscates extras, a que o nosso homem nunca virava a cara; ajudante de pedreiro, pintor, limpa-chaminés e – o seu preferido – sacristão.
José Bonifácio Alarcão era um homem feliz. De natureza simples, já ultrapassara a fase de todas as ambições, emigrara e regressara. Sentia-se bem ali, convivendo com as poucas dezenas de habitantes que ainda resistiam heroicamente à desertificação dos campos. Claro que o facto de ali viver a dona Celestina, a viúva do velho Silva, também tinha a sua importância.
Mas mestre Bonifácio era um homem prático.
 
“ A todos no meu quintal
Conheço o nome e condição.
Gente fina e jagunção,
Separados na fortuna e posição
Aqui se deitam lado a lado,
Sem medo nem vergonha
De cair do pedestral”
 
E aquele dia – o dia 30 de Maio de 2009, um sábado radioso, iria ser um dia especial para mestre Bonifácio. Dona Celestina dissera finalmente… Sim.
À hora aprazada, lá entraram eles na igreja, de braço dado, elegantes e bem compostos – ele de fato azul escuro, ela de longa saia beje, casaquinho a condizer. Também lá estavam os amigos, os vizinhos, os amigos dos vizinhos e os amigos dos amigos – ou seja, toda a aldeia, à excepção do merceeiro Matias, que nunca simpatizara com ninguém.
O padre Frederico, pronto a testar as habilidades poéticas de mestre Bonifácio, interrompeu a cerimónia segundos antes do momento crucial e, voltando-se para os presentes, exclamou:
 
“Boa gente do Pinhal
Vindes hoje assistir
A um acontecimento excepcional.
Algum de vós vai impedir
Que Bonifácio e Celestina
Não se possam hoje casar?”
 
Decididamente, a poesia não era o forte do padre Frederico.
E eis que sobressaindo da pequena multidão, avança uma voz:
 
“Não os posso impedir de casar
Mas não é justo que tal aconteça
Não é que Celestina não mereça,
Mas o noivo não é de fiar.”
 
Um burburinho percorreu toda a igreja. O padeiro João ? O que significava aquilo ?
Mas já mestre Bonifácio contra-atacava, no seu vozeirão:
 
“ Sou coveiro e cavador
E trato todos por igual.
Fizessem o bem ou o mal,
Fosse ladrão ou regedor,
A todos enterro no chão,
Eu Bonifácio Alarcão,
Coveiro de Casais do Pinhal.
 
E ai de ti, João padeiro
Que te ponhas no meu caminho.
Vou-me a ti e não vou manso,
Nem te vou deixar inteiro
Quando apanhares no focinho.”
 
Pronto. Agora é que iam ser elas.
O padre Frederico, com um óptimo sentido de oportunidade, retirou-se prudentemente para a sacristia. Já mestre Bonifácio despia o casaco, ensaiando umas poses de boxeur que vira na televisão.
O padeiro João não esperou mais. E aí vai ele, atirando-se com toda a fúria a mestre Bonifácio. Os convidados, esquecendo o local onde se encontravam, abriram alas para os antagonistas.
Dona Celestina, os braços cruzados, assistia impávida e serena a todo o espectáculo. Afinal de contas, era previsível.
- Homens… homens e ciúmes… - murmurou baixinho
 
Afinal de contas, que culpa tinha ela ? Mestre Bonifácio não se declarara primeiro ? Se o João padeiro não se tivesse só limitado a entregar bolinhos de chocolate… mas enfim… o homem era assim, nunca se decidia a nada…
Nesse mesmo momento, um sopapo mais forte acertou em cheio mestre Bonifácio, que caiu desamparado no chão.
Dona Celestina olhou de novo para o padeiro João, com uma ponta de curiosidade no olhar.
- Olha, olha… belos músculos, sim senhor… belos músculos…

 

publicado por entremares às 19:27
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Terça-feira, 2 de Junho de 2009

Homem de barro

 

- Mimi… não te vais esconder outra vez no quarto, pois não ?
É claro que ia.
Estranhamente, a pequena Mimi – que nunca fora aquele tipo de criança introvertida e solitária – estava diferente. Apesar dos seus oito anos, dúzias de amigos, festas de aniversário e três irmãs mais velhas que a mimavam até ao limite… decidira, sem motivo aparente, refugiar-se no seu quarto, onde cada vez passava mais tempo.
A principio, ninguém ligou.
Quando, num belo sábado de manhã, Mimi apareceu na cozinha com os braços todos sujos de barro, o nariz esborratado e os calções brancos com 3 grandes manchas castanhas… a mãe percebeu finalmente que algo de diferente estava a acontecer.
- Mimi… estás horrível. O que tens andado a fazer… para ficar nesse estado?
A pequena limitou-se a lavar os braços e dedicou-lhe um sorriso condescente.
- Ainda não te posso contar, mãe… é segredo…
- Segredo ? O que andas tu a magicar ? Não estás a pensar ir outra vez investigar o meu armário dos sapatos, pois não ? Já conversámos sobre isso…
- Não, mãe… a sério, é só um segredo pequenino, não tem mal nenhum…
E fugiu a correr, de volta ao quarto.
A mãe não ficou lá muito convencida. Mas o apitar da panela de pressão depressa a fez esquecer o sucedido; era melhor juntar as carnes… ou então o cozido à portuguesa só ficaria despachado à hora do lanche…
 
Mais uma semana passou.
Por duas ocasiões, a pequena Mimi apareceu em casa com novos carregamentos de barro – a mãe questionava-se seriamente em imaginar o quarto transformado em estaleiro de obras, para já não falar do estado em que se deveria encontrar o soalho… - não, era melhor nem pensar nisso.
- Mimi… anda almoçar… o almoço está na mesa…
Ela desceu prontamente.
Aquelas sobrancelhas enrugadas dispensavam maiores explicações.
- Então, Mimi… vais fazer-nos alguma surpresa, é isso ?
A filha olhou para o prato, depois para a mãe.
- Não estou a conseguir… - desabafou, amargurada.
A mãe passou-lhe a mão pelos cabelos.
- Oh, Mimi… eu sei que nos disseste que era segredo… mas se precisares de ajuda… eu ajudo-te. Estás a fazer algum trabalho para a escola, é isso ? Com o barro ?
- Não posso contar… a Sónia não ia gostar…
- A Sónia ? Quem é a Sónia, querida ?
- A Sónia da catequese…
- Ah, essa Sónia… então o trabalho é para ela ? Não te preocupes, eu sei que tu vais conseguir…
 
Pouco devia faltar para as quatro da tarde.
A sala de estar permanecia na penumbra, as madeiras das janelas fechadas a evitar o sol de Maio. Filipa, a mãe da pequena Mimi dormitava sobre o sofá, depois de arrumar a cozinha e colocar toda a loiça na máquina – uma mesa para uma família de seis… era muita loiça.
Sentia-se exausta.
Na televisão sem som, as imagens da novela sucediam-se, mas Filipa nem lhes prestava atenção – ser mãe, trabalhadora doméstica e enfermeira por turnos era, como dizer ? Arrasador.
Um estrondo no andar de cima trouxe-a subitamente de volta à realidade.
- Mimi ? – gritou, em sobressalto – Mimi, estás bem ?
A Mimi não respondeu.
Com aquela energia que surge quando menos se espera, galgou os degraus que a separavam do corredor do primeiro andar, onde se localizavam os quartos.
- Mimi – voltou a gritar.
Irrompeu pelo quarto, afogueada.
Não reparou na sujidade, nos cortinados das janelas manchados de dedadas de barro, na mancha escura no canto esquerdo do soalho, não viu nada.
Os seus olhos procuraram simplesmente a pequena Mimi, que aparentemente incólume, permanecia de pé, imóvel no centro do quarto, rodeada de cacos e pedaços partidos de barro seco.
- Mimi… estás bem? O que aconteceu ?
Agarrou-se a ela, ainda tremendo de ansiedade.
- É mentira… é tudo mentira…
- O que é mentira, meu amor ?
A pequena Mimi apontou para o chão.
Sobressaindo dos restantes cacos, um grande pedaço de barro, com aquilo que aparentava ser a parte superior de um corpo humano, jazia tombado no chão, bem junto dos pés da pequenita.
- Ele … - e continuava a apontar para a metade da estátua que fizera com tanto cuidado, agora despedaçada no chão – ele é que é uma mentira… é tudo mentira…
- Não percebo, Mimi… tens que me explicar… o que é mentira ? Foste tu que conseguiste fazer sozinha esta estátua, é isso ?
A Mimi continuava a contemplar a sua obra destruída.
- A Sónia explicou-nos… - lá foi ela dizendo – lá na catequese… e eu percebi tudo, a sério que percebi…. Que ele se chamava Adão, ela era a Eva, eu até já tinha batizado o meu boneco… ia chamar-lhe Mário…
- Qual boneco, meu amor ? A tua estátua ? Não percebo…
A pequena Mimi nem a ouvia.
- … e ela disse-nos que depois Ele tinha soprado o barro… e a estátua tinha ficado viva… e eu soprei, eu soprei, eu fiz muitas estátuas, oh mãe… eu soprei em todas… mas não consegui… eu não tenho força para soprar muito, só sei soprar devagarinho…
A mãe reparou então em todos os outros pedaços de barro, abandonados pelos cantos do quarto; braços, troncos, pernas, metades de corpos de barro… todos sem vida, informes e imóveis…
A pequena Mimi continuava com o olhar perdido algures, à procura de uma explicação que não chegava.
 
- Sabes Mimi… não é assim tão simples…
- Oh, mãe… - e agarrou-se-lhe ao pescoço, a soluçar – então explica-me como é, por favor… por favor…

 

publicado por entremares às 13:42
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Segunda-feira, 1 de Junho de 2009

O preço certo

- Pai…
- Hum… sim, filho ?
- É verdade que todos temos um preço?
- Um preço?... Que conversa é essa ?
- É só para saber, pai… foi uma conversa que tivemos numa aula… sobre a ambição. A professora disse-nos que todos os homens têm um preço…
- Isso é conversa fiada, filho… Nem todos os homens têm um preço…
- Mas alguns têm, não é ?
- Alguns… sim, suponho que sim, suponho que muitos tenham um preço…
- E tu, pai ?
- Eu o quê, filho ?
- Tu tens um preço ?
- Claro que não. Eu sou um homem honesto. Os homens honestos não têm preço…
 
- Pai…
- Sim, filho ?
- É verdade que vais trocar de emprego ?
- Quem te disse isso ?
- Ninguém me disse… ouvi vocês os dois a conversar ontem à noite na sala…
- Ah, bom… sim… é provável, sim… talvez possa vir a trocar de emprego…
- Mas tu não gostas do emprego que tens agora ?
- Se não gosto ? Mas é claro que gosto… e muito. É dos empregos em que posso dizer que gosto daquilo que faço… e sou muito bom naquilo que faço…
- Então porque vais trocar de emprego ?
- Porquê ? Ora… porque me estão a oferecer melhores condições…
- Condições ? E isso é o quê, pai ? O teu ordenado ?
- Sim, também é o ordenado… Mas não só, também vou ter outras regalias…
- Como por exemplo ?
- Por exemplo… vou poder andar com o automóvel da empresa… dão-me um telemóvel… pagam-me melhor as horas extraordinárias… e acho até que vou ficar a trabalhar num escritório na sede da empresa, no alto do arranha-céus, com uma vista incrível…
- Num escritório ? Mas tu sempre me disseste que detestavas escritórios, tu gostas é de andar cá fora…
- Pois… lá isso é verdade… mas sabes, filho, para a gente subir na vida, há sempre um preço a pagar, não é ?
 
- Ah… afinal estou a começar a perceber melhor a professora…
- Como assim, filho ?
- … a professora… aquilo de todos os homens terem um preço, lembras-te ? Eu não a percebi bem na aula, mas agora creio que já estou a entender… obrigado, pai…
 
- Ahn … de nada, filho… de nada…

 

publicado por entremares às 17:41
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