Sábado, 31 de Janeiro de 2009

O regresso do Rei

 

A Torre de Belém mal se vislumbrava, por entre o nevoeiro cerrado que, apesar do adiantado da manhã, teimava em não levantar. A Praça do Império, ali ao lado, transformada por aquele cinzento húmido e pegajoso, lembrava um campo deserto, aqui e ali semeado de árvores verde escuro, sem turistas, lisboetas ou velhos do restelo. Do outro lado, até o render da guarda, junto do palácio presidencial, soava mais silencioso que o habitual, como se o nevoeiro até conseguisse absorver o marchar vaidoso dos guardas, reluzentes nos seus uniformes de gala.

A limusine branca deslizou suavemente e imobilizou-se em frente ao palácio.
Os transeuntes, espantados com o insólito veículo, apontavam com o dedo – lá vai mais um excêntrico – e os dois guardas do palácio, apanhados desprevenidos junto à entrada de armas, não sabiam muito bem o que fazer.
A enorme viatura branca imobilizara-se defronte da entrada principal do Palácio de Belém e não dava mostras de se querer retirar.
O motorista, uma figura corpulenta e com ar de poucos amigos, emproou-se na sua farda azul escura, contornou a traseira da limusine e foi abrir, com uma solenidade bem treinada, a porta traseira.
Para espanto dos que já se empurravam à beira da entrada do palácio, tentando descobrir qual a celebridade que se fazia anunciar de forma tão triunfal, saiu do interior da viatura um moço jovem, pouco mais que adolescente, com uma curta cabeleira arruivada, uma bengala branca e uma indumentária que a todos fez lembrar os livros de História – muitos folhos, rendados e uma calças tão justas que homem algum hoje em dia se atreveria a usar.
Os dois guardas do palácio, boquiabertos, não sabiam se haviam de rir, chamar reforços ou dispersar a multidão. Cruzaram as armas para barrar a passagem e um deles soprou estridentemente o apito dourado da farda ( seria a primeira vez que o usava, em toda a sua carreira ).
O recem-chegado olhou com altivez em seu redor, sentindo-se objecto de todas as atenções. Ao mesmo tempo, um oficial da guarda do palácio chegava-se à porta, já exaltado pelo número de curiosos que atolavam por completo o acesso ao palácio.
- O sr. não pode estacionar, nem sequer parar aqui.
O motorista interpôs-se entre o oficial e o recem-chegado. Era bastante mais alto e volumoso e o oficial necessitou de levantar bastante o queixo para o conseguir medir de alto a baixo. Os dois guardas de plantão, um pouco atrapalhados, enpunharam as suas armas e colocaram-se por detrás do seu oficial, conforme mandavam as regras.
- Venho visitar o senhor da casa… - anunciou o recém-chegado, num tom sereno – Se pudesse ter a amabilidade de me anunciar…
O oficial da guarda esboçou uma ordem, e logo um dos subordinados correu para o interior da casa da guarda. O outro retomou a sua posição de vigia, ao mesmo tempo que ia empurrando educadamente a pequena multidão de curiosos, tentando manter um espaço vazio em redor do oficial e do estranho visitante.
- E o senhor, - O tom de voz do oficial endureceu subitamente, ao dirigir-se ao motorista da limusina - retire imediatamente esta viatura daqui.
O motorista trocou um leve olhar com o seu passageiro e de pronto, apressou-se a entrar na limusina e a retirá-la da entrada do palácio.
- Deve ser a filmagem de um episódio da novela – dizia uma senhora para a amiga – eles costumam muito filmar aqui por estas bandas…
O visitante continuava imóvel, apoiado na sua bengala branca, a dois passos do portão. Teria vinte e poucos anos e uma aparência fidalga, altiva e distante. Percebia-se que não estava habituado a ser observado assim tão de perto, e isso incomodava-o. Olhava em seu redor com um ar benevolente, mas impaciente.
- A entrada dos visitantes é ali ao fundo – e ia apontando para uma porta envidraçada, a poucos metros dali – e tem que deixar uma identificação. Com quem pretende falar ?
O visitante ignorou a observação e continuou a observar, com curiosidade crescente, tudo o que o rodeava.
Lembrava-se do local, mas como tudo estava tão diferente… à excepção do rio, que ainda corria em direcção ao mar, talvez agora uma pouco escuro…
- Meu caro senhor, não lhe posso responder ao que me pergunta, porque na verdade eu fui chamado, chamaram-me aqui a este local… e como tal, não sei bem a quem me deverei dirigir… - e ia ajeitando os folhos do colarinho.
- E quem o chamou ? – quis saber o oficial da guarda – Na convocatória, deverá indicar a secção ou o departamento que o convocou…
O jovem visitante sorriu, expressando pela primeira vez alguma simpatia.
- Tem razão, tem toda a razão…. – e esticou o braço, apontando para a multidão de curiosos em volta – Na verdade, foram todos eles que me chamaram… - e após uma leve pausa, apontou o dedo ao próprio oficial – na verdade, creio… não, tenho mesmo a certeza que o senhor também foi um dos que me convocou…
O oficial deu consigo a pensar que, provavelmente, estaria a dar importância em excesso ao assunto. Já vira maluquinhos em quantidade suficiente para os conseguir reconhecer, ou pelo menos reconhecer uma conversa como aquela, que não tinha sentido nenhum. Mas, ao mesmo tempo, também era verdade que nunca se lhe tinham apresentado numa limusina branca, a parar com arrogência defronte da entrada principal do palácio de Belém.
- O sr. vai desculpar-me – e o oficial tentou o seu tom mais polido – mas terá que se dirigir aquela porta – e voltou a apontar de novo para a porta envidraçada - ... só ali poderá ser atendido...
O estranho visitante fixou-o nos olhos.
- O senhor já pagou a prestação da sua casa, este mês ?
O oficial ficou boquiaberto.
- Ora essa, o que é que você tem a ver com isso ? Faça favor, dirija-se ...
- E já conseguiu arranjar maneira de pagar o aparelho dos dentes da sua filha ? – continuou o estranho.
O oficial da guarda imobilizou-se.
- O senhor conhece-me, por acaso, de algum lado ? – e aproximou-se, sem qualquer sorriso, ao estranho visitante.
Este ignorou a ameaça e olhando em redor, apontou para uma senhora, já de certa idade, com um lenço azul a cobrir-lhe parcialmente a cabeça.
- E a senhora, já conseguiu pagar os medicamentos, aqueles que comprou ontem na farmácia ?
A visada apontou para ela própria, engasgada. Não teve tempo para responder.
- O senhor ali... sim, o senhor ... – e apontava agora para um tranquilo espectador, que de telemóvel em punho, ia fotografando ou filmando toda aquela agitação – Será que é mesmo hoje que vai conseguir novamente um emprego ?
O espectador tranquilo guardou apressadamente o telemóvel e num ápice, deu meia volta e dapareceu, por entre a multidão.
- E você ? - o estranho aproximava-se agora do outro guarda, que continuava a manter a multidão de curiosos a uma distância segura – Já recebeu a resposta para o seu pedido de transferência ?
O guarda empalideceu, enquanto olhava atrapalhado para o oficial de dia.
Um burburinho manso começou a alastrar por entre os presentes. Quem era aquela personagem, vestida de um modo tão espalhafatoso, com um sotaque tão estranho, que os interpelava com questões que, aparentemente, só os próprios conheciam ?
O motorista da limusina voltava, em passo rápido, após estacionar o veículo.
- Eu sou aquele que vocês estão sempre a chamar... – O estranho levantou a voz, para que todos pudessem ouvir - ... quando mais precisam...
A multidão aproximou-se mais, apertando o círculo em torno da entrada do palácio.
- Quem és tu ? – começava a ouvir-se, por entre os curiosos - És algum político ? – perguntavam outros – De certeza que é um actor de cinema – insistiam ainda outros.
- Meu Senhor... estou de volta – e o motorista fez uma vénia, ao colocar-se diante do seu passageiro. Precisa de alguma coisa ?
O estranho acenou que não, que não precisava de nada, que ficasse tranquilo.
- Quem é ele ? Quem é o teu passageiro ? – insistiam os transeuntes curiosos, rodeando agora também o motorista da limusina.
No mesmo instante, saíam do interior do palácio alguns guardas, alertados pelo ruido e pela agitação no portão.
- Ah, bem vejo... já anunciaram a minha presença ao senhor da casa – exclamou o visitante, ao dar conta da aproximação dos guardas. – Muito bem, muito bem...
O oficial da guarda, mais tranquilo pela presença reforçada dos companheiros, empinou-se no bico dos pés, esticou a farda e decidiu participar na encenação, antes de ordenar aos subordinados que expulsassem a “personna non grata” dali para fora...
- Com certeza, com certeza, ainda não anunciámos ... mas vamos já fazê-lo agora mesmo... e diga-me, quem é que deveremos ter o prazer de anunciar ?
Silêncio geral.
O motorista da limusina chegou-se um pouco mais è frente, e num tom estranhamente solene, afirmou.
- O senhor, por favor, tenha a delicadeza de informar o senhor da casa que sua Alteza Real, o Desejado, El Rei Dom Sebastião I ,Rei de Portugal, de Aquém e Além-Mares, das Ilhas e dos Algarves... respondendo ao chamamento do seu povo, que sofre... voltou.
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Sexta-feira, 30 de Janeiro de 2009

No reino dos patos

 

Era uma vez uma pato. Ou melhor, uma pata. Uma pata grande e poderosa.

No grande reino da Patolândia, a população era constituida por muitas espécies de patos, todas elas vivendo em amena convivência, nadando nos mesmos lagos, alimentando-se pacificamente dos amplos recursos com que a natureza bafejara o reino.
No norte, viviam os patos marrecas, também conhecidos por trocarem muito os “vês” pelos “bês”, muito faladores, activos e sempre propensos a contar anedotas sobre os patos do sul, os patos mudos, que apesar do nome, até falavam bastante. Arrastavam um bocado a fala e colocavam muitos “ei” e “tão” no final das conversas, mas fora isso eram tão patos como os outros, os do norte.
A vida decorria feliz na Patolândia.
Os patinhos, acabadinhos de sair dos ovinhos, eram levados pelas mães até aos charcos mais tranquilos, onde ficavam à responsabilidade dos mestres-patos, que tinham a incumbência de os ensinar nas artes de grasnar, nadar, voar e todas as outras coisas típicas da raça.
Quando crescessem o suficiente, rumariam a outros charcos, aprenderiam a grasnar coisas diferentes , a procurar o seu próprio sustento e, quem sabe, até a pôr ovos, constituir família.
A pata grande e poderosa era a responsável por todos os mestres-patos e tinha a delicada missão de supervisionar todos os pequenos charcos onde os patinhos aprendiam os pequenos “Quac”.
Mas a pata grande e poderosa não estava sózinha. O governo da Patolândia estava nas mãos de um outro pato, também grande e poderoso, um pato-real vistoso que, na prática grasnava mais alto que o rei dos patos, já velho e a perder as penas.
No entanto, a paz estava a desaparecer no grande charco.
A pata grande e poderosa andava de penas trocadas com os mestres-patos e as águas do charco ficavam, de dia para dia, cada vez mais revoltas.
A confusão era grande.
Por decreto real, os mestres-patos passavam a ser obrigados a comunicar à grande pata de cada vez que não conseguissem ensinar um patinho a nadar, a voar ou a grasnar, mesmo que o patinho tivesse nascido mudo, sem asas ou sem patas. Os mestres-patos passavam também a ser obrigados a ensinar os patinhos enquanto vivessem, mesmo quando já não conseguissem voar para acompanhar os seus pupilos. E, finalmente, os mestres-patos que quisessem sair do charco secundário e saltar para o charco principal tinham que desafiar os outros mestres-patos do lago, numa competição onde se teriam que debicar furiosamente - quem conseguisse arrancar mais penas aos adversários, ganhava o direito de nadar no charco principal.
Por tudo isto, fácilmente se compreenderá que a grande pata não era muito popular entre os mestres-patos.
O pato-real, que segurava nas penas os destinos do reino, também já fora mais popular.
Ultimamente, só se ouvia grasnar nos cantos do charco histórias sobre o grande pato, boatos de sementes retiradas do celeiro e enterradas sabe-se lá onde, uns amigos quaisquer do grande pato que agora só nadavam nas melhores zonas do charco, corria até uma história de que o grande pato nem aprendera a voar, mas mesmo assim tinha uma anilha dourada na pata como se tivesse ... enfim, uma grande confusão, pois claro.
Os patinhos também não estavam muito contentes. Não por simpatia com a causa dos mestres-patos ou coisa parecida, mas porque sentiam que a grande pata não tinha o direito de os obrigar a estar tanto tempo no charco, sem tempo para umas fugas, umas brincadeiras, uns voos à sucapa, enfim, essas aventuras típicas de patinhos adolescentes, vocês sabem como é.
Portanto, o que tinha que acontecer... aconteceu.
Um belo dia, os mestres-patos revoltaram-se em conjunto e vai daí, nadaram todos em direcção ao grande charco, grasnando ruidosamente. Pelo caminho, abanavam frenéticamente as asas, grasnando palavras de ordem e enchendo os ares de penas. Num repente, invadiram os aposentos da grande pata, afugentando-a para o exterior.
A revolução saira ao charco.
A grande pata ainda tentou negociar – dois grãos de milho extra na ração – mas já era demasiado tarde.
O grande pato-real, vistoso como sempre, assitiu impassível enquanto a grande pata era depenada e colocada num grande caldeirão, onde já ferviam a água e os temperos. Um dos revoltosos despejou então para dentro do caldeirão uma grande quantidade de bagos de arroz, duas pitadas de sal e umas folhas de louro. Depois, revezaram-se e foram mexendo, mexendo, mexendo...
Finalmente, o manjar ficou pronto.
O grande pato-real, ainda vistoso e sempre cheio de recursos, sentou-se à mesa e serviu-se. Aquele arroz de pato estava delicioso, excelente mesmo.
Ergueu o copo e propôs um brinde.
- Meus caros mestres-patos, não encontro palavras para vos retribuir a felicidade de estar aqui convosco, nesta confraternização. Sabem que sempre estive e sempre estarei do vosso lado. E para que vejam que eu compreendo que tudo isto não passou de um lamentável mal entendido, vou providenciar agora mesmo que todos vós passeis a receber mais três grãos – reparem, três grãos de milho - na vossa mais que justa ração...
Os convidados ergueram os copos.
- Ao charco – grasnaram todos.
O grande pato-real inchou ainda mais as suas penas.
- São mesmo patos... – pensou para consigo mesmo. Sorriu e ergueu o seu copo.

- Ao charco, gritou. Ao charco...

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Quinta-feira, 29 de Janeiro de 2009

Pequeno-almoço no Café Central

 

Não há cidade, vila, aldeia ou lugarejo que não ostente um “Café Central”.

É claro que isto não quer dizer que o café se localize na rua central, mas também ninguém se importa muito com isso. Aliás, aquele Café Central em especial localizava-se na Rua do Cabrito, e possuia ainda uma porta lateral para o beco das freiras ( vá lá saber-se porquê ).
A pequena vila de Formosinho sobressaía naturalmente de entre as povoações vizinhas pelos nomes, sempre prosaicos, que ostentava nas ruas, praças, becos e jardins, autênticas pérolas da imaginação do século pasado. Assim, a Igreja situava-se na Praça da Liberdade ( antes da Liberdade era só Praça, a Liberdade veio depois ), o Mercado Municipal estendia-se pelo Rossio dos Degolados e o edificio dos Correios, ex-libris arquitectónico de Formosinho, ocupava grande parte da Rua dos Pés-Curtos. O beco das Freiras, já referido, corresponderia ao portão traseiro de um convento, entretanto já desaparecido, mas cujo norme perdurara ao longo dos anos...
Mas este Café Central, de nome tão comum, era verdadeiramente incomum, insólito mesmo, diríamos.
O sr. Aparício Anunciação ( carinhosamente dois ás, para os amigos e clientes ) decidira transformar radicalmente todo o espaço interior, aquando da entrada em vigor da lei que proibia o acto de fumar no interior dos estabelecimentos comerciais ( o seu café incluido, pois claro ).
Assim, o Café Central de Formosinho era o único estabelecimento de restauração que possuia uma sala para os não fumadores, uma sala para ex-fumadores, uma sala para fumadores de cigarros, outra sala reservada para fumadores de cachimbo, ainda uma outra para os fumadores de cigarrilhas e charutos, e ainda um espaço mais pequeno, junto ao jardim, para os fumadores-em-vias-de-largar-o-vicio-de-fumar.
Ou seja, como é fácil de perceber, o Café Central, para além de central era... grande.
O sr. Aparício já aparecera até na televisão, como figurante num anúncio de uma conhecida marca de cafés;e, naquele dia, podia dar-se por feliz – tinha a casa cheia, o que em tempos de crise, era sempre uma boa noticia.
Para ser totalmente preciso, não era bem casa cheia. Mas tinha reparado que entrara pelo menos um cliente para cada uma das salas, era quase como se fosse...
Passou as mãos pelo avental imaculadamente branco e acabou de arrumar a bandeja com o consumo das mesas; tinha muitos cafés, alguns bolos, chás e uns salgadinhos para distribuir pelos seus clientes.
Por questões de proximidade, o percurso era sempre o mesmo; começava pela sala dos não fumadores, depois pela sala dos ex-fumadores, atravessava o corredor e servia a sala das cigarrilhas e dos charrutos, depois a sala dos cachimbos ( nunca se conseguiria habituar áquele cheiro ) e finalmente a sala dos fumadores “normais”. Já de saída, ainda passaria pelo cantinho dos indecisos-que-queriam-deixar-de-fumar, mas só para entregar o troco de um pequeno-almoço.
Na primeira sala, a D. Hortense era já cliente habitual de há muitos anos. Invariávelmente bebericava um chá de camomila acompanhado por um pastel de nata – pouco queimado – ele já sabia.
- Bons dia, D. Hortense – e seguiu o seu percurso habitual.
Os ex-fumadores eram habitualmente clientes esquisitos, se é que lhe era permitido utilizar tal termo. Era raro o dia em que não lhe devolviam qualquer coisa, ou que protestavam por o galão estar escuro demais, claro demais, quente demais ou qualquer outra coisa, a mais ou a menos, mas nunca a preceito. Enfim, vá lá perceber-se as pessoas...
Suspirou para dentro. Entregou ao único cliente da sala o café bem forte e os dois salgadinhos e saiu disparado para o corredor, rumo ao santuário das cigarrilhas e charutos.
Naquele dia, quatro clientes, e todos eles já habituais. Simpatizava em particular com o velho major, apesar da falta de ouvido que o obrigava a repetir as coisas, sempre que lhe dirigia a palavra. De resto, a doutora farmacêutica – não lhe sabia o nome – emigrara recentemente da sala dos cigarros e convertera-se às cigarrilhas, tal como o sr. Alberto Pádua, o cidadão mais ilustre de Formosinho, acompanhado da esposa, senhora fina, como já não conhecia muitas.
Bons dias, bons dias, bons dias – ia distribuindo os cafés e o sorriso afável de sempre – Sr. Major, como vai o meu amigo ? Dr Pádua, minha senhora... prazer em vê-los...
O cidadão ilustre levantou um pouco o sobrolho e cofiou o farto bigode – ou seja, vinha bem disposto, como o sr. Aparício já descobrira – Meu caro Aparício, obrigado, vamos bem, vamos bem...
Ainda antes de entrar na sala ao lado, já o odor peculiar lhe chegara ( e irritara ) ao nariz.
- Professor Belmiro, bons dias... como vai o senhor ? – e ia colocando o galão escuro, a torrada pouco queimada e os dois bolos de arroz na mesa – já a fumar essa chaminé, logo pela manhã ?
O cliente sorriu-lhe. – Bem vê, sr. Aparício... isto é mais o tempo que demora a fazer do que demora a fumar...
Pois era. Mas mesmo que não fosse, o cliente tinha sempre razão, e portanto não valia a pena argumentar.
- Então pois claro, professor... olhe, aqui tem o seu pequeno almoço, veja lá não deixe esfriar a torrada, assim quentinha é que ela é boa...
E seguiu em direcção ao jardim, para entregar o troco que pousara sobre a bandeja.
Mal entrou, reparou que entrara mais um cliente.
- Dr Silva ? – estranhou ele – O que faz o meu amigo hoje aqui nestas paragens ?
Entregou o troco ao primeiro cliente – moço novo ali na terra, nunca o vira por ali – e acercou-se da mesa onde o recém-chegado se acabara de sentar.
- Bons dias, Aparício... como vais ?
- Muito bem, sr doutor, muito bem... mas bastante admirado por o ver aqui. Ou isto quer dizer aquilo que eu penso que quer dizer ?
O médico Silva lançou-lhe um olhar desconsolado e acenou com a cabeça.
- Pois é isso mesmo que quer dizer, Aparício, é isso mesmo... vou juntar-me ao clube dos irritantes dependentes que querem deixar de ser dependentes, que é como quem diz... vou deixar o vício.
- Pois faz o sr. doutor muito bem, eu cá fazia a mesma coisa, se também tivesse o vício... e o seu pequeno almoço? A mesma coisa de sempre ?
O médico acenou novamente com a cabeça e rangeu qualquer coisa entre dentes, a concordar.
O sr. Aparício deslizou até ao balcão e colocou mais duas fatias de pão na torradeira. Ajeitou o moinho de café, tirou um café forte para si mesmo, atirou a louça suja para dentro da máquina e dirigiu-se para a porta do estabelecimento, chávena na mão.
O sol batia na calçada, luminoso.
Nove da manhã e o comércio lá ia abrindo as portas, enquanto os primeiros transeuntes desciam a Rua do Cabrito.
Bebeu o primeiro gole e deixou-o escorregar vagarosamente, garganta abaixo, enquanto observava calmamente a rua.
Formosinho continuava na mesma. Já lá iam uns bons anos, desde que apanhara o trespasse daquele café, e não se arrependia. Os tempos de emigrante já eram uma lembrança distante de outros tempos, em que a idade era outra, as circunstâncias eram outras, até o país era outro...
- Sr Aparício....
Sorriu. A voz inconfundível da D. Hortense trazia-o de novo à realidade, relembrando-o que provávelmente, a sua cliente iria querer um segundo pastel de nata.
Pousou o café inacabado na mesa mais próxima e virou em direcção à sala dos não fumadores.
- D. Hortense... vou já de seguida...
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Quarta-feira, 28 de Janeiro de 2009

O lápis mágico

 

-Não, não e não. Se a trigonometria fosse isso, eu já estaria no desemprego.

E levava as mãos à cabeça, a um milímetro do desespero absoluto.
Aquele dia conjugava três situações, qual delas a mais complicada; ser professor, ser professor de matemática e tentar explicar os fundamentos da trigonometria a duas dúzias de alunos que, simpatia à parte, estariam melhor nos bancos da escola primária do que ali, quase no término do ensino secundário.
- Mas tu sabes ao menos a diferença entre uma recta e uma curva ? - suplicou o professor, perante a expressão inocente do aluno.
O aluno não sabia. E não era o único.
Vinte rostos ansiosos viraram-se para ele, à espera do milagre do conhecimento.
O professor de matemática calou-se, passou as mãos pelo cabelo grisalho e deu meia dúzia de passos em frente ao quadro, a congeminar uma mudança de estratégia.
Apetecia-lhe começar pela tabuada, mas isso estava fora de questão, desenhar uns triângulos e uns circulos no quadro... já tentara e não resultara...
Continuava indeciso.
As mãos revolviam-se nos bolsos, como se procurassem a varinha mágica que resolveria todos os seus problemas.
O quadro parecia um mural egipcio, com rabiscos, traços, figuras, setas, chamadas de atenção - ao longe, autênticos hieroglifos. Aliás, o seu cérebro devia possuir, naquele momento, um aspecto semelhante.
Mas não se podia dar por vencido.
Afinal, ainda tinha um trunfo, uma arma secreta que, tinha a certeza, desequilibraria a balança para o seu lado. Mas – o problema é que existe sempre um “mas”... deveria utilizá-la ?
Dois segundos de indecisão depois, decidiu-se.
- Silêncio!
Dirigiu-se à sua pasta, já de cantos esboroados, e perante alguma curiosidade pelo tom enérgico daquele “Silêncio”, retirou de lá uma caixa do que aparentava ser madeira escura, muito escura.
- Tenho aqui a solução para os vossos problemas – anunciou, com um ar misterioso, enquanto levantava a caixinha negra de modo a que todos a pudessem observar.
Fez-se um momento de silêncio.
- O que tem aí dentro dessa caixa, stôr ? - quiseram todos saber.
-O que tenho aqui dentro ? – e o professor começou a abrir a caixinha, com uma lentidão propositada – ora vamos lá a ver o que é que eu tenho aqui dentro...
Abriu a caixa e retirou um lápis, um normalíssimo lápis de carvão, ainda com muito pouco uso.
Gargalhada geral. Um lápis ?
- Mas este lápis não é um lápis qualquer – e o professor foi até ao fundo da sala – e eu vou mostrar-vos porquê... – Manel !
O aluno visado interrompeu por momentos o desenho que fazia no caderno e ficou a olhar para o professor.
- Preciso que me ajudes na minha demonstração. Pode ser ?
O Manel levantou-se, sorridente. Tudo o que fosse diferente de trigonometria, só podia ser melhor.
- É claro, stôr. O que vamos fazer ?
- Só uma coisa muito simples, vais ver – e passou-lhe o lápis para as mãos – pegas aí numa folha de papel branco, e passa lá esta expressão que vou escrever agora no quadro...
- Éh, stôr... veja lá, já sabe que eu não percebo nada disto, o stôr disse que ia só fazer uma demonstração...
O professor chegou-se ao quadro e escreveu 235 x 245 x 28 =
- Manel, escreves-me aí o resultado desta conta, por favor ?
O Manel pegou na folha e rabiscou um número. Depois começou a rir.
- Pronto, Stôr. Agora já podemos ir jogar no euromilhões...
Nova gargalhada geral.
- Claro que vamos, Manel, claro que vamos. Ora dita-me lá o número que escreveste...
E o Manel lá foi ditando... 1 ... 6 ... 1... 2 ... 1... 0... 0
- Obrigado, Manel. Já agora, quem é que me faz aí esta conta, com a calculadora ?
De repente, todos se lembraram que tinham calculadora. Com alvoroço, um a um, lá foram fazendo a conta, e gradualmente, as gargalhadas foram desaparecendo, até se resumirem a um leve murmúrio.
As calculadoras, teimosamente, registavam todas o mesmo valor : 1 6 1 2 1 0 0
O professor de matemática saboreava o seu pequenino momento de vitória.
- Manel, passas aí o lápis ao João, por favor ? Vamos ver se o João tem jeito para o euromilhões...
O João pegou numa folha de papel e enquanto o professor escrevia nova operação no quadro, riscou furiosamente a folha branca, com grandes algarismos. 2 2 0
- Mas ele ainda não acabou de escrever a expressão – protestou o Manel – para que é que já estás a escrever o resultado ?
O professor terminou naquele momento de escrever. 45 x 44 x 43 : 387
- Ora bem, vamos lá tentar esta. João, diz-me lá o teu resultado. E voçês, façam lá as contas na calculadora...
O João lá repetiu 2... 2... 0... , ao mesmo tempo que choviam os resultados das calculadoras – é mesmo isso, Stôr, o resultado é esse...
O professor apanhou o lápis da mão do João, que atónito, observava o quadro sem perceber muito bem o que estava a suceder. Um sorriso malandro iluminava-lhe o olhar, enquanto calcorreava o espaço entre a porta e a sua secretária, fingindo estar a concentrar-se em algo tremendamente importante...
- Quem quer tentar novamente ? – disparou ele.
Todas as mãos se levantaram. – Que se lembrasse, nunca vira tantas mãos ao alto naquela turma... ou noutras turmas.
- Maria... toma o lápis. E vem aqui para ao pé de mim, para eles não pensarem que estás a fazer batota, ou coisa parecida...
A Maria quase que correu para ele. Já trazia a folha de papel na mão e começou logo a escrevinhar, à medida que o professor, vagarosamente, ia digitando a nova operação no quadro.   ( Sen 45º + Cos 45º )2
- Dois, Stôr... o resultado é 2 ... – gritou a Maria, e o resto da turma gritou em uníssono – Doooiiissssss....
O professor recolheu novamente o lápis e deixou-os entregues a si próprios. Cada um gritava por seu lado, alguns reviravam as folhas onde o Manel, o João e a Maria haviam escrito os resultados, à procura de uma cábula, de uma resposta minúscula escrita num cantinho da folha, ou de qualquer outra razão para aquela ... que nome se poderia dar aquilo que se estava ali a passar ? Magia ?
Largos minutos depois, o professor levantou-se e de repente, fez-se um silêncio absoluto. O professor revirava o lápis por entre os dedos e aparentemente, tinha algo de importante a dizer-lhes...
- Bom... imagino que quando vos disse que tinha comigo a solução para os vossos problemas... ninguém me acreditou... o que é perfeitamente natural, eu sei. Mas... a verdade é que este é mesmo um lápis mágico, e como puderam observar, ele sabe responder a tudo, mesmo a tudo aquilo que nós possamos perguntar...
- Oh, Stõr... nas outras disciplinas também ? – quiz logo saber o Ernesto, o tal Ernesto que ele pensava que só sabia dizer “hum” e “ahn”.
- Claro que sim, nas outras disciplinas também... mas sabes, existe também um pequeno problema...
Um burburinho de contrariedade subiu de tom.
- É que só existe um lápis... este lápis – e segurou o lápis bem acima da cabeça, para que todos o pudessem ver melhor.
- Então como é que nos vai ajudar, se só tem um lápis ?
- Teremos que chegar a um acordo, não há outro remédio... – e o professor de Matemática continuava a agitar o lápis mágico, e a turma inteira a segui-lo com os olhos... – E já sei como vamos fazer. Primeiro, todos são obrigados a guardar segredo... não quero neste momento a escola inteira a perseguir-me e a tentar tirar-me o lápis, estamos de acordo ?
Todos estavam de acordo.
- Segundo... eu vou emprestar o lápis por um dia, aquele de vocês que conseguir responder acertadamente a um pequeno questionário, que vos irei fazer todos os dias... estamos de acordo ? Ou preferem tirar à sorte ?
Discussão generalizada. A hipótese questionário venceu. O que, na próxima aula, tivesse a melhor pontuação no questionário, levaria o lápis por um dia, e poderia utilizá-lo em todas as outras disciplinas...
Ainda a discussão ia a meio, e mal se ouviu a campainha, a anunciar o final da aula.
- Lembrem-se – e o professor colocou o dedo junto aos lábios - ... segredo...
E a turma lá foi saindo, na gritaria habitual de todos os intervalos, talvez naquele dia um pouco mais ruidosa do que o habitual.
Sentou-se a saborear o momento. Havia dias assim, em que um pequeno lápis, muita paciência e um pouco de magia fazia a diferença...
Pegou na caixinha de madeira escura e abriu-a sobre a sua secretária.
Propositadamente, não mostrara o seu conteúdo, limitara-se a retirar do seu interior o lápis de todas as magias. Agora, já sózinho na sala, retirou os outros dois objectos que a caixa ainda continha ; uma borracha branca e um outro lápis, este já bastante gasto e com poucos centímetros de comprimento.
Tomou o pequeno lápis nos dedos e escreveu o sumário no livro de ponto, antes de o voltar a escrever, desta vez a tinta negra.
Como o tempo passava depressa...
Numa outra sala, numa outra escola... lembrava-se como se fosse hoje, uma aula de desenho, nunca conseguira fazer aquelas figuras geométricas como o professor queria, os bicos de carvão partiam-se, as folhas dobravam-se ...uma autêntica nulidade. Fora então que o velho Baltasar ( chamava-se assim o professor de desenho) perante o seu desespero, lhe colocara nos dedos aquele lápis, dizendo-lhe que experimentasse...
E ele experimentara... e nunca mais fora o mesmo.
Quantos anos se haviam passado ?
Muitos, certamente.
Arrumou as suas coisas na pasta de cantos gastos, desligou as luzes e saiu porta fora.
O velho Baltasar afinal tinha razão... a história repetia-se...
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Terça-feira, 27 de Janeiro de 2009

Cara ou coroa ?

 

Não jogava, mas era viciado no jogo. Nunca entrara num casino, nunca jogara em jogos de fortuna ou azar, nunca jogara às cartas e que se lembrasse, esperimentara uma única vez uma partida de dados e outra de dominó, num banco de jardim.

Mas era viciado no jogo. No seu jogo.
Precisava de decidir se devia ou não telefonar.
Levou a mão ao bolso e de lá retirou uma moeda, já bastante polida pelo roçar da ganga dos bolsos. Num gesto maquinal, lançou-a ao ar e apanhou-a na sua curva descendente, projectando-a contra as costas da outra mão. Só então a destapou – Cara.
- Pronto, está decidido, está decidido – resmungou entre dentes – vamos lá telefonar-lhe antes que me arrependa...
Pegou no telemóvel e marcou o número.
- Maria ... sou eu ... sim, está tudo bem... contigo também ? Óptimo, óptimo... olha, é o seguinte... eu, isto é, nós ... eu precisava de ter uma conversa contigo, se pudesse ser... sim... claro, agora ? Isto é ... assim, já ? ... Tens a certeza... não tens mesmo nada que fazer ? ... vê lá...
Uns minutos depois, já não podia voltar atrás.
- Ainda iria a tempo, se lhe telefonasse novamente, a adiar – continuou a gemer, sem convicção – e se eu lhe ligasse novamente ?
Atirou novamente a moeda ao ar, voltou a apanhá-la e a atirá-la sobre as costas da outra mão – Coroa .
- Pronto, está bem, não telefono – e apressou o passo, enquanto guardava de novo a moeda no bolso.
A moeda decidira, estava decidido.
Era esse o seu vício, era esse o seu jogo. Aquela moeda ditava-lhe o destino, aquela moeda tinha sempre a resposta a todas as suas perguntas, e as respostas eram sempre claras, bastava uma simples Cara ou Coroa, um sim ou um não... e estava tudo decidido. Porquê complicar as coisas, quando tudo podia ser decidido de uma forma tão simples ?
Havia decisões complicadas, é certo. Mas acreditava firmemente que, se explicasse correctamente as situações à moeda, esta lhe daria sempre a resposta mais correcta. E até agora, sempre funcionara assim.
Hoje era um desses dias, e uma dessas situações, uma situação complicada. Aliás, sempre que o assunto envolvia o sexo oposto, as situações eram, por norma, complicadas.
O certo é que estava num beco sem saída, entre a espada e a parede. Não podia protelar mais a situação, dissera-lhe ela.
- Que diabos, porque terão sempre as mulheres tanta pressa em tudo ? – ouviu-se a si mesmo a murmurar, enquanto caminhava – não me posso precipitar, não me posso precipitar...
Mas o tempo urgia. E ela fora peremptória, quando lhe apontara o dedo aos olhos e o encostara à parede – Não, não te vou dar nem mais um dia. Ou te decides e juntamos os trapinhos, agora... ou fazes as tuas malas e vais visitar a tua maezinha... para sempre.
Ora, bem vistas as coisas, ir visitar a sua mãe assim com um carácter tão... permanente, não lhe agradava nem um pouquinho. Mas juntar os trapinhos assim, de repente, ( estava a ser injusto, cinco anos não eram bem de repente, mas pronto ) ... parecia um pouco... precipitado...
A verdade é que sempre fora demasiado indeciso, e nisso ela tinha razão. Ela é que indagara junto aos seus colegas o seu nome, ela é que o convidara para uma primeira saída ao cinema, ela é que o desafiara a passar um fim de semana a fazer campismo e mais um punhado de coisas boas que lhe tinham acontecido e que, com toda a certeza, não teriam existido se ela não tivesse tomado a iniciativa.
E ela... bem, ela era ELA.
Claro que tinha atirado a moeda ao ar, quando perguntou a si mesmo se estava apaixonado, e é verdade que ficou bastante aliviado quando a moeda lhe respondeu Cara ( a moeda acertava sempre ). Claro que também atirou a moeda ao ar, antes de lhe propôr algumas coisas, durante aquele fim de semana de campistas, e ainda ficou mais aliviado nessa altura, por a moeda também lhe ter respondido Cara.
E agora ?
Sem dar por isso, chegara junto ao apartamento dela. A luz da sala estava acesa, conseguia-lhe ver a sombra projectada nos cortinados, enquanto se deslocava de um lado para o outro.
Chegara a hora da verdade, não havia volta a dar.
Levou novamente a mão ao bolso e retirou a sua preciosa moeda.
Mentalmente, formulou a sua pergunta. Aceitaria qualquer resposta, porque a moeda saberia sempre aconselhá-lo.
Atirou a moeda ao ar e decidiu deixá-la cair no chão, ao invés de a apanhar em pleno voo, como sempre fazia.
A moeda rodopiou, volteando sobre si mesma, uma, duas, três, quatro vezes...
Bateu no empedrado do passeio e escorregou uns centímetros, voltou a subir e novamente descer, tilintando.
Continuou a rodopiar, apoiada na aresta, indecisa em pousar a cara ou a coroa no chão frio. Perdeu velocidade e o som foi-se extinguindo até se imobilizar, na perfeita posição em que caíra, sobre a própria aresta.
De repente, o mundo parou.
Ficou a vê-la, atónito. Onde estava a sua resposta ? Era aquela a sua resposta ?
Passou a mão pelos cabelos, num tique nervoso já antigo.
Baixou-se e apanhou a moeda.
Voltou a guardá-la no bolso e respirou fundo.
Subiu os degraus que o separavam da porta e tocou à campainha.
A moeda já lhe dera a sua resposta.
- Maria ? Sou eu.
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Segunda-feira, 26 de Janeiro de 2009

O duelo

 

T

 

ocou a campainha.

Estranhamente, soou como a harmónica do Charles Bronson. Um som agudo, que se prolongou enquanto todos se iam desviando, cada vez mais encostados à parede. Ao centro, Jonas o alunos rebelde, esperava pacientemente, os tenis a levantar o pó do chão e a mão no cinto, desafiadora, a poucos centimetros do seu Mp3. A porta rangeu, lúgubre, nos eixos enferrujados e a professora de inglês entrou, vagarosamente, medindo as distâncias e ajeitando os dois pesados dicionários que lhe pendiam do cinto. A turma sentia o perigo eminente e fez-se um silêncio de gelo.
O duelo ia começar.
Jonas recuou um pouco, virou-se, remexeu os fones nos ouvidos e coçou a ganga das calças. A professora de Inglês pressentiu o perigo e colocou o apagador ao alcance da mão. Disfarçadamente, passou a mão pelos cabelos e observou de soslaio a turma. Por quem estavam eles a torcer ? Um minuto passou, dolorosamente lento. Os mais nervosos roiam as unhas e o silêncio era tanto que até se ouvia a professora de matemática, na sala ao lado, a gritar qualquer coisa de trigonometria. A mão de Jonas estava já pousada no Mp3, pronto para a acção. A professora de inglês parecia nervosa, como se ainda estivesse a decidir se iria utilizar o apagador ou se iria arremessar o dicionário.
O silêncio era insuportável.
Nisto, o impossível aconteceu. O telemóvel da professora de inglês tocou, aquela música caracteristica da missão impossível, que todos já conheciam tão bem. Tudo aconteceu numa fracção de segundo.
A professora de inglês levou instintivamente a mão ao bolso e Jonas, o aluno rebelde, decidiu aproveitar a vantagem.Com um gesto rápido, saca do Mp3 e prepara-se para o ligar. E eis que de repente, saindo do penumbra, Jessica, a arqui-inimiga de Jonas, salta para o centro da sala, interpondo-se entre ele e a professora de inglês. Mais rápida do que a sua estatura diminuta e barriguinha proeminente fariam supôr, liga a câmara do telemóvel e ameaça, numa voz fria e carregada de emoção:- Ligas o Mp3 e eu ponho este video no Youtube, que te lixas...
Jonas parou, estupefacto. A sua arqui-inimiga levava-lhe a melhor, outra vez. Ainda pensou em ligar mesmo assim o Mp3 mas não quiz arriscar. Logo hoje, logo hoje que não estava com o visual certo, não se podia dar ao luxo de aparecer no Youtube. Baixou os braços, aceitando a derrota.A turma voltou a respirar de alivio e a harmónica do Charles Bronson soou uma ultima vez, enquanto que a professora de inglês trocava um olhar cúmplice com Jessica, a gordinha de reflexos rápidos.
Ficava-lhe a dever uma. Mas tinha valido a pena.
Mais uma vez, Jonas, o aluno rebelde, não tinha levado a melhor. Fora desafiada e vencera.
E enquanto ela fosse a xerife, ninguém andaria com Mp3 ligados.
Ela era a lei.
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Domingo, 25 de Janeiro de 2009

A árvore dos desejos

 

 
Chiuko vivia no fundo do vale.
Nunca de lá saira e as montanhas cobertas de neve que o rodeavam eram o horizonte mais longínquo que jamais contemplara. O vale era o seu mundo, e nos seus quase sete anos de vida – ainda tão curta – o vale fora a sua casa, a sua familia, o seu retiro, a sua aventura, a sua escola de tudo quanto aprendera até à data.
O seu mestre, o monje encarregado do templo, zelava pela ocupação dos seus dias.
Acordava com a manhã, tocava os sinos do templo, substituia todas as flores dos vasos de oferendas dos peregrinos e em seguida isolava-se no seu canto, para as orações da manhã.
Dois toques do batente da porta da biblioteca tinham um significado especial para Chiuko; era tempo de estudar.
Mas aquele dia era especial, e por ser especial, a rotina iria ser quebrada; portanto, Chiuko não teria que ler nenhum capitulo do Livro das Tradições, não teria que repetir a sequência dos Mantras da Sabedoria, nem tão pouco exercitar os cálculos com o ábaco de madeira, que ele tanto apreciava.
Aquele dia era a véspera do grande dia.
O dia em que Chiuko poderia comer o fruto da árvore dos desejos.
O dia que marcava, para todas as crianças do vale, o fim da primeira infância e a entrada, como aprendiz de monje, no templo da aldeia.
Mas Chiuko era especial, e toda a aldeia dependia do que ele iria fazer, no dia seguinte, quando subisse ao alto do monte e se chegasse à árvore dos desejos.
A árvore, outrora tão frondosa, dava sinais de envelhecimento, e nada parecia conseguir rejuvenescê-la de novo. Durante anos, todos os frutos colhidos pelas outras crianças, quando atingiam a idade de sete anos, haviam-se revelado estéreis, e as sementes que as crianças semeavam, no final da cerimónia, secavam rapidamente.
Há muito tempo que não germinava outra árvore dos desejos, o que fazia da cerimónia do dia seguinte um acontecimento irrepetível.
Chiuko iria colher o último fruto da árvore dos desejos.
 
Ao deitar-se, ficou atento aos ruidos da noite. Gradualmente, a aldeia mergulhou no silêncio, as luzes apagaram-se e a névoa esbranquiçada do luar fez-lhe companhia, jorrando pela janela e envolvendo-o no mais profundo dos sonhos.
Viu-se junto à árvore, a colher o fruto arroxeado e, hesitante, a repetir as palavras cerimoniais, que antes dele, todos repetiam naquela ocasião. Viu-se a fechar os olhos, a formular o seu desejo, a morder o fruto, a pegar na única semente e a enterrá-la na terra escura. Viu uma semente a germinar, folhas a brotar e a erguer-se em direcção ao céu. Viu-se agarrado ao pescoço de um dragão, a sobrevoar o vale, a espreitar por cima das montanhas e a descobrir, lá do alto, outras aldeias, em tamanho minúsculo, espalhadas ao acaso por entre as florestas e os lagos gelados.
Quando finalmente adormeceu, já a lua desaparecera do quarto e as sombras eram agora rainhas da noite.
 
O monje do templo e seu tutor dera-lhe os últimos conselhos.
- Chiuko... Não tenhas pressa... sabes que não precisas de ter pressa, não sabes ?
Ele assentiu com um leve movimento.
- Sabes, Chiuko... – continuou – isto é uma coisa que tu tens que fazer sózinho... subires o monte, colher o fruto, repetir as palavras que eu te ensinei, dizer à árvore qual é o teu desejo ... e só depois comes o fruto. Lembras-te ?
Ele concordou de novo, abanando a cabeça.
- Não te esqueças de enterrar bem a semente... será a última semente da árvore...
Chiuko afastou-se, em direcção ao caminho irregular que levava ao cimo do monte. O monje ficou a contempla-lo, imerso nos seus pensamentos.
Durante toda a sua vida, não houvera um único desejo formulado por cada criança junto da árvore que não se tivesse realizado. Todas elas se tinham transformado em homens e mulheres importantes, acumulado riquezas, e a aldeia tinha prosperado com todas as coisas resultantes dos pedidos à árvore dos desejos.
Nunca tentara influenciar Chiuko nas escolhas do que poderia ser o ser desejo; muitos anos atrás, ele próprio desejara junto à árvore poder construir um templo na sua aldeia e o seu desejo cumprira-se.
E ali estava ele, muito anos volvidos, a rever-se a subir o caminho ingreme até ao alto do monte, onde a mesma árvore esperava, imóvel e serena.
Sentou-se, e esperou.
 
O sol já começava a descer sobre o horizonte, quando Chiuko alcançou os limites da aldeia.
O monje foi ter com ele e estendeu-lhe a mão.
- Foi especial, não foi ? – perguntou-lhe
Chiuko fechou os olhos por um momento, concordando.
- Sabes... ontem tive um sonho... e hoje foi como se estivesse outra vez a sonhar...
- Acredito que sim, Chiuko, acredito. E acredito que também tenhas pedido um bom desejo para ti...
Ele abanou negativamente a cabeça.
- Mestre ... e Chiuko pressentia que o velho monje se iria rir dele - ... a árvore falou comigo.
O velho monje escutou serenamente. Sentou-se de novo.
- E o que te disse a árvore, Chiuko ?
- Disse-me ... não foi bem dizer... pediu-me que tratasse bem do filho dela, que não tinha mais nenhum...
- A árvore disse-te isso ? – o monje desviou o olhar para o cimo do monte – e tu, o que fizeste ?
Chiuko juntou as mãos, como se estivesse a repetir os gestos utilizados enquanto falara com a árvore.
- Fiz o que ela me pediu ... e desejei que aquela semente se transformasse numa árvore, numa árvore dos desejos enorme, e que essa árvore pudesse dar muitos frutos...foi isso que pedi...
O monje continuava de olhos postos no cimo do monte, como se conseguisse ver a árvore, quase como se a conseguisse tocar com o olhar. Nunca contara a ninguém com medo que se rissem dele, nunca contara a ninguém que a árvore também tentara falar com ele, que também lhe pedira piedade para os seus frutos, que os tratasse bem, que se sentia cada vez mais sózinha, perdendo todos os seus frutos um a um.
Com a ponta dos panos com que se cobria, limpou uma lágrima rebelde.
- Fizeste bem, Chiuko... fizeste bem... agora vamos voltar, está bem ? Está a fazer-se tarde...
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Sábado, 24 de Janeiro de 2009

Um quase paraíso

 

 

Trim, trim.
Após o que pareceu demorar uma eternidade, a porta entreabriu-se e uma respeitável figura, cabelos brancos e um majestoso cajado espreitou. Apesar de uns milénios de árduo trabalho, Pedro continuava com a figura de sempre, nem mais novo nem mais velho. A santidade não lhe pesava nos ombros, ou então mantinha aquela capacidade nata de parecer ser sempre o mesmo, ao longo dos anos.
No paraíso, o fotógrafo oficial já desistira de o fotografar, uma vez que não valia a pena. A imagem de Pedro, o Santo, era aquela que aparecia nos calendários e nas pajelas da primeira comunhão e agora, nem o próprio Pedro já se atrevia a tentar mudar de visual.
- Sim ?
A visitante tentou disfarçar a timidez – afinal não era todos os dias que se tenta entrar no paraíso – e esboçou o melhor dos sorrisos.
- Eu pretendia entrar... no paraíso... disseram-me que tinha que vir bater aqui a esta porta ... e pronto.... cá estou eu.
Um pequeno silêncio. Pedro, o Santo, observou detalhamente a figura franzina que tinha pela frente; Cabelos amarelados, olhos claros, pele muito clara, ombros magros, braços magros, tronco magro, pernas magras ... haveria algo que não fosse magro ?
- Pois ... compreendo. E quando é que a menina, se é que a posso chamar assim, pretendia entrar ?
A visitante soltou uma risadinha fininha e soprou uma madeixa de cabelo que teimava em cair-lhe sobre os olhos.
- Entrar ? Bem, eu gostaria mesmo muito de entrar... agora, claro.
Pedro, o Santo, pareceu surpreso.
- Agora ? Mas...
Ela abriu muito os olhos.
- ... Mas a menina está nua – lá conseguiu finalmente dizer.
Fez-se novamente um pequeno silêncio.
- Nua ? Pois claro que estou nua, como é que haveria de estar ? Acha que me deixaram trazer a roupa para aqui, acha ?
Pedro, o Santo, passou a mão pela longa barba.
- Pois... mas pelo menos um soutien – e baixou a voz - ... umas calcinhas... bem vê, isto aqui é o paraíso, há normas, temos costumes...
A visitante ficou boquiaberta. Que lindo sarilho se começava a compôr.
- Então, por favor ... – tentou ela, com a serenidade possível – não me quer dizer onde posso eu arranjar algumas peçinhas de roupa, uma vez que assim nua não me deixa entrar ?
Pedro, o Santo, não tinha a certeza.
- Suponho que lá ao fundo – e apontava com a mão para uma vereda – lá no purgatório, é capaz de conseguir arranjar alguma coisa... mas atenção ! Só roupa branca, compreende ? Sem tirinhas, debruados, lantejoulas nem artificios... só branca, toda branca.
- Nem amarelo, ou qualquer cor assim mais clara ? – ela ainda tentou a sua sorte.
Pedro, o Santo, elevou os olhos às alturas, murmurou qualquer coisa inaudível e retorquiu peremptóriamente:
- Amarelo então... Nunca. – e apontou o dedo para o céu – Só ELE é que pode usar amarelo...
Pronto, estava decidido. Tinha que ir arranjar umas roupitas, fosse lá como fosse. Ou então, adeus paraíso, adeus nuvens fofinhas, adeus concertos de harpa, cocktails com os anjos... enfim, por toda a eternidade. E a eternidade, segundo lhe tinham dito, demorava muito tempo a passar.
Fez-se à estrada.
A vereda contornava os muros altos do paraíso, todos eles construidos de pedra branca, profusamente pejados de trepadeiras e flores coloridas. Conseguia ouvir ao longe o canto dos pássaros e imaginou como seria o outro lado daqueles muros. Existiriam jardins ? Bancos de jardim ? Piscinas, ou lagos ? Os anjos também correriam pelos campos, fariam piqueniques, andariam de biclicleta ?
Estava a sonhar demasiado. E também estava com a sensação de estar a ser observada.
Ainda voltou repentinamente a cabeça para trás e teve a nítida impressão de ver uma cabeça a esconder-se no alto dos muros; e depois uma outra, e ainda uma outra.
Devia ser imaginação.
Seguiu o seu percurso e conseguiu encontrar o purgatório. Achou-o muito cinzento e movimentado. Imensa gente aos encontrões, um trânsito caótico nas ruas, buzinas ensurdecedoras e – coisa curiosa – todas as pessoas com que se cruzava traziam um mapa na mão.
Lá conseguiu encontrar uma lojita pequena onde conseguiu negociar as duas peças mínimas da indumentária a troco de duas madeixas de cabelo e da promessa de voltar à quela loja com novos clientes, que teria que recrutar entre os seus conhecidos. – sentiu que tinha feito um bom negócio.
À saída, ainda se lembrou de perguntar :
- Olhe lá, já agora... pode dizer-me porque andam todos na rua com um mapa na mão ?
A dona da loja mirou-a com um olhar desconfiado, mas logo se acalmou. Via-se que a visitante não era dali, portanto tamanha ignorância podia ser quase desculpada.
- O mapa, ora essa... o que havia de ser ? É o mapa das estradas do paraíso, claro... o problema é que as estradas não aparecem no mapa e portanto ninguém sabe como sair daqui e chegar ao paraíso...
Claro. Para uma pergunta tonta, que resposta podia esperar ?
Acenou um adeus e fez-se de novo à estrada. Todos os outros continuavam em circulos, de mapa na mão, observando o horizonte, tentando descobrir a estrada para o paraíso.
- Quando tiver tempo, ainda tenho que pensar nisto... – murmurou ela, enquanto se afastava tranquilamente do purgatório.
De volta ao paraíso, continuou com a sensação de estar a ser observada.
- Estou a ficar com a mania da perseguição, querem ver ?
Era capaz de jurar continuar a ver algumas cabeças a aparecer e a desaparecer, no alto dos muros brancos.
Enquanto continuava perdida nas suas cogitações, encontrou-se de novo à porta do paraíso.
Trrrrrriiiiiiiiim.
Desta vez deixou o dedo bastante tempo sobre o botão. Apesar disso, a pareceu-lhe que demorou exactamente o mesmo tempo até a figura já sua conhecida de cabelos brancos, longa barba, ar patriarcal e imponente cajado aparecer na ombreira da porta.
- Sim ?
- Voltei... – e ia apontando para as duas peças de roupa - ... e que acha ? Não pareço já uma verdadeira anjinho ?
Pedro, o Santo, observou-a de relance, com a prática que dois mil anos confere. Resmungou qualquer coisa em voz baixa e abrindo um pouco mais a porta, chegou-se para o lado para a deixar passar.
- Enquanto entramos, vou já adiantando as explicações.... – e puxou de um papel que retirou da tunica, já bastante amarrotado pelo uso contínuo. -  eu depois dou-lhe uma cópia, se quiser... mas é importante, é muito importante... que preste atenção a estas regras...
Sentou-se no primeiro banco que encontrou e convidou-a fazer o mesmo.
Ela estava mais entretida a observar ávidamente tudo quanto a rodeava. Apesar de ainda se encontrarem junto do portão principal, conseguia vislumbrar uma área bastante grande de um jardim que parecia não terminar, até onde a vista apodia alcançar.
Um grande número de anjos ( a julgar pelas asas nas costas, deviam ser ), todos loiros, de olhos azuis e carregando uma harpa a tiracolo, passeavam por diversas zonas do jardim. A baixa altitude, algumas nuvens esbranquiçadas deslizavam pelos céus, aparentemente guiadas por outros anjos ( conseguia ver sempre dois ou três em cada nuvem ) numa imagem que lhe fazia lembrar vagamente o trânsito da sua cidade natal, em hora de ponta. Sem as buzinadelas.
Debaixo do banco onde se sentara, saiu deslizando uma serpente. Olhou-a com ar desconfiado, e a serpente respondeu-lhe na mesma moeda. Depois afastou-se por entre a relva alta, ondulando o corpo em suaves meneios.
Entretanto Pedro, o Santo, continuava declamando um sem fim de regras, num tom convicto mas levemente coçado por dois mil anos de continuas repetições. De quando em quando ainda tentava alterar uma ou duas, mas invariávelmente recebia uma advertência e claro... quem manda, manda.
- ... a hora do recolher é ao anoitecer, e sempre antes da meia – noite... o silêncio é de ouro, e como tal não devem ... há certas zonas proibidas ... e o jardim do bem e do mal .... não se podem comer maçãs, nem marisco, nem qualquer comida afrodisíaca...
A sua atenção desviou-se então para uma outra zona do jardim, não muito distante daquela em que se encontravam. Ficava junto a uma outra porta e para lá caminhavam, em ordenada fila indiana, uma interminável procissão de anjos.
- E aqueles ali – quiz ela saber – o que estão eles a fazer ?
Pedro, o Santo, detestava ser interrompido quando estava a ler as regras. Contrariado, seguiu com o olhar a direcção apontada.
- Ah, aqueles...
- E o que é aquela porta ? – insistiu ela – onde vai dar ?
- Aquela porta... bem... digamos que aqueles... aqueles estão de saída...
- De saída ? Do paraíso ?
- Claro... não cumpriram alguma regra e portanto... você sabe... são expulsos...
- Que tipo de regra ?
- Que tipo ? Você não acha que eu os conheço todos, um por um, ou acha ? Não sei o que é que eles fizeram, mas devem ter feito alguma coisa porque ELE – e olhou novamente para cima – decidiu rescindir-lhes o contrato...
Uma curiosidade impossível assaltou-a. Tinha que ver aquilo mais de perto. Se ainda estivesse viva, aquilo seria quase como que um despedimento colectivo, enviar assim tantos anjos porta fora, do paraíso sabia-se lá para onde...
Ergue-se num ápice. Oficialmente, ainda não se sentia nenhum anjo, alías ainda nem tinha as asas, a tunica branca ou a harpa, portanto sentiu que ainda se podia dar ao luxo de cometer algumas leviandades, como correr por aquele jardim fora, para descobrir se afinal o paraíso também tinha alguma porta de saída...
Só não reparou na longa túnica de Pedro, o Santo, que se lhe enrolou entre os pés.
E eis que, meio segundo depois, jazia inaminada no empedrado do jardim, após uma acrobática e mais que previsível queda.
 
- Ai, a minha cabeça...
Tentou abrir os olhos. A dor aumentou e uma massa indistinta de cores rodopiou-lhe à frente, formando imagens desconexas, vagamente parecidas com rostos humanos. Tentou focar melhor os objectos. Eram mesmo rostos, rostos humanos. Mas não tinham olhos azuis, nem eram louros, nem se pareciam nada com os anjos ou mesmo com o Pedro ancião com quem estivera sentada à pouco. Pelo contrário, o rosto que se debruçava sobre ela assemelhava-se bastante ao do falecido esposo ( não era lá muito correcto dizer isto, uma vez que a falecida era ela, mas enfim... )
- Maria, Maria... estás bem ?
E não é que até a voz era mesmo parecida com a do falecido ?
Finalmente, conseguiu abrir os olhos.
Desilusão.
Então afinal não morrera, nem estivera às portas ( e dentro ) do paraíso ?
Então aquela fugura de Pedro, o Santo, não fora mais que uma distorção da sua imaginação, de uma personagem qualquer da televisão ?
Ainda lhe custava acreditar.
Levou as mãos ao peito. E depois à cintura. As duas peças de roupa que trazia vestidas não eram brancas, mas pretas.
- Mas parecia tão real... – ainda murmurou entre dentes.
Levantou-se, ainda um pouco tonta. Para variar, já estava bastante atrasada para o emprego. O marido lançou-lhe um adeus fugidio e bateu com a porta, ainda mais atrasado que ela.
Um pouco trôpega, arrastou-se até ao espelho do quarto, para constatar que precisava mesmo de disfarçar aquelas olheiras. Pegou na escova e ainda tentou pôr em ordem o cabelo, mas a tarefa, já de si dificil todos os dias, naquele dia era impossível.
Com o pente, esticou o cabelo sobre o rosto, e logo percebeu porque não se conseguia pentear. A sua longa franja ( o seu orgulho ) acusava duas boas tesouradas, que lhe tinham roubado duas grandes ( enormes ) madeixas de cabelo.
Fechou os olhos, e recuou no tempo.
E só então percebeu...
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Sexta-feira, 23 de Janeiro de 2009

Romeu e Julieta

 

 
Cinzento claro como quase todos os burros, aquele burro não era excepção. Tinha o pelo claro, despenteado, uns grandes olhos castanhos e duas enormes orelhas, claro está. Ou não fosse ele um burro.
Mas este burro tinha ainda uma outra coisa, e essa sim, diferente, porque nem todos os burros a tinham. E o que era, o que era ?
Este burro estava apaixonado.
Enquanto roía umas ervas macias, junto ao lago, não tirava os olhos de cima do objecto do seu desejo, que, do outro lado das águas, agitava a cauda de mansinho, fingindo enxotar moscas invisíveis.
Ela, a burra dos seus desejos, tinha o pelo castanho claro, reluzente, uns olhos profundos e um queixo miudinho. Nunca vira mastigar ervas com tanta delicadeza como a sua amada. Nunca levantava a voz, e quando zurrava, até aos pássaros do campo a acompanhavam na sua melodia.
A natureza dava-lhe forças que ele nem suspeitava ter.
Ergueu o pescoço e gritou para ela, o mais alto que conseguiu.
- Vem ter comigo. Eu quero-te.
Assim, sem mais nem menos.
Ela levantou delicadamente a cabeça, piscou os olhos duas vezes daquele jeito que só ela sabia piscar, e sorriu-lhe.
- Eu também te quero. Vem tu ter comigo.
Claro que o burro não foi. E claro que a burra também não iria, afinal eles eram os dois burros e os burros são teimosos, aliás, são teimosos como burros.
Claro que também não se lembrariam de contornar a lagoa, mas isso já é uma outra história.
Neste momento, o burro precisava urgentemente de descobrir uma solução.
Pensou, pensou, coçou as orelhas e quando se sentia quase pronto para desistir, teve uma ideia:
- Já sei – gritou ele – já sei, já sei, já sei, oh como sou inteligente…
Ela enviou-lhe o mais terno dos seus sorrisos.
- Eu vou nadar até ao centro da lagoa…. E tu fazes a mesma coisa… assim podemos encontrar-nos no meio e seremos os dois felizes para sempre…
Ela, como qualquer burra que se preze, hesitou.
- Não sei… vou molhar-me, posso sujar as patas…
- Eu quero-te. – E zurrou o mais gentilmente que conseguiu.
Ela hesitou mais um pouco, mas finalmente cedeu.
Encaminharam-se os dois para a lagoa, olhos nos olhos, inebriados de felicidade.
Primeiro uma pata, depois a outra, até aos joelhos, aí vão eles… a água subindo, junto ao pescoço.
- Meu amor, meu amor… - zurrava ele – já falta pouco, já falta tão pouco…
Mais uns passos, e a água a subir, já passava do pescoço, chegava-lhes ao focinho.
O burro lembrou-se então de que se estavam a esquecer de qualquer coisa.
- Meu amor, meu amor … esqueci-me de te dizer… mas eu não sei nadar…
Ela sorriu-lhe embevecida, já quase com o focinho a tocar no dele.
- Eu tinha vergonha de te confessar, meu amor … eu também não sei…
Em conjunto, ainda zurraram uma última vez, enquanto os seus focinhos se tocavam de mansinho.
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Quinta-feira, 22 de Janeiro de 2009

BELAMOX F

 

 
BELAMOX F
O nome era um bocadinho ridículo, verdade seja dita. A embalagem, essa era igual a todas as outras, branca e com umas riscas azuis, com os dizeres do costume.
Abriu-a com curiosidade, mas o seu interior era tão banal como o exterior; um suporte plástico contendo dois grandes comprimidos brancos e o tradicional papelinho com as instruções, a famosa bula.
Até aí, nada de novo.
Ou melhor, nada daquilo parecia diferente... mas era diferente.
Guardou cuidadosamente a embalagem no bolso da gabardine, enterrou o gorro até às orelhas e apressou o passo em direcção a casa, que o frio apertava.
Aquela caixinha ia ser a sua salvação.
Mal chegou a casa, pôs-se à vontade, calçou as pantufas e atirou-se para o sofá, já com a caixinha branca e azul nas mãos. Apressadamente, retirou a bula e pôs-se a ler com sofreguidão as propriedades miraculosas de BELAMOX F
“ o Belamox é um desinibidor quimico ... ao agir sobre os estímulos do córtex cerebral ... liberta endomorfinas ... ( havia ali muitos termos que não percebia, mas também não pareciam alterar o sentido geral da coisa, portanto não fazia mal ) ... nas suas duas versões ... tornar a pessoa irresistível ... efeito temporário ... pessoas saudáveis ... problemas cardíacos ... ( ele tinha um coração de aço, não havia problema quanto a isso ) posologia adequada ... blá-blá-blá... o resto já não parecia ter interesse.
Portanto, era simples. Resumindo, só tinha que tomar um comprimido à noite, dormir uma bela soneca e de manhã – sorriu só de pensar nisso – todas as mulheres deste mundo iriam reparar nele, porque aquela droga milagrosa fazia que o seu corpo libertasse umas coisas quaisquer terminadas em “inas” que diziam os cientistas ser a causa da atracção dos homens pelas mulheres e vice-versa.
Portanto... adeus tristezas, solidão, serões a ver televisão e idas ao bar do Sr. Silva. A partir do dia seguinte, ahhh.... outro galo iria cantar.
Custou-lhe muito a adormecer. Só conseguia imaginar-se rodeado de belas mulheres, que o perseguiam pelas ruas, que o esperavam à porta do emprego, faziam fila de espera junto à porta do seu apartamento e até pagavam ao sr. Silva para que este as avisasse da hora a que ele gostava de ir ao bar beber o seu café.
 
O dia acordou radioso, cheio de sol, uma autêntica primavera.
Vestiu-se em tempo record e correu para a rua, galgando os degraus a quatro e quatro.
Sentia-se um novo homem. Um homem com H grande, um H mesmo muito grande.
Respirou fundo e olhou em redor, à procura das suas admiradoras.
Vinham duas estudantes na sua direcção e ele deixou-se ficar, encostado ao parquímetro, fingindo olhar distraído para o movimento da rua.
Elas aproximaram-se, conversando animadamente qualquer coisa sobre estudos, ou escola, ou coisa parecida, passaram por ele e continuaram tranquilamente o seu percurso, rua abaixo.
Nada acontecera.
- Isto houve qualquer coisa que não funcionou – ainda pensou – mas teremos que experimentar de maneira diferente, talvez...
Lembrou-se da moça do quiosque dos jornais, do outro lado da rua. E aí vai ele, assobiando baixinho, para comprar uma revista.
O quiosque está sem clientes. Olha directamente para a moça, à espera que aconteça alguma coisa... talvez um brilho nos olhos, ou um sorriso, não fazia a mínima ideia, mas algum sinal deveria acontecer...
Escolheu a revista, pagou e ainda esperou uns segundos.
- Ora esta ... o que é que não está a dar certo ?
Rumou novamente a casa, enquanto cogitava uma solução para o enigma.
- Terá sido a dose ? Se calhar, para o meu peso, deveria ter tomado os dois ... lembro-me que lá dizia qualquer coisa sobre posologia... deve ser isso, devo ter tomado metade da dose, não vejo outra explicação.
Se bem o pensou, melhor o fez. Mal chegou a casa, engoliu o segundo comprimido branco, guardou a bula num bolso e a caixa vazia no outro.
- E com isto tudo, estou a ficar atrasado ...
Olhou-se ao espelho, ajeitou o cabelo e saiu para a rua. Precisava de apanhar o autocarro das 8 e 45, senão ia chegar tarde ao emprego; o que não seria nada agradável.
Na paragem, encontrou, como de costume, o vizinho do 3º esquerdo, o sr Manuel, já fardado de policia e a caminho da esquadra.
- Sr Manuel... Bom dia.
- Olha o meu vizinho... você hoje está ... sei lá, diferente. Está bem disposto...
- Bem... estou, acho que estou. Está um belo dia, ontem é que estava um frio de rachar...
- Oh meu vizinho... deixe-me que lhe diga, mas você está , olhe, não lhe sei explicar... mudou o penteado, ou o que foi ? – e o sr. Manuel aproximou-se, observando interessado o seu cabelo.
- O penteado ? ( Não percebia patavina ) Bem ... não, na verdade, não – nem sabia o que lhe havia de dizer – se calhar é o shampoo da caspa...
- Meu vizinho... – e o sr. Manuel aproximou-se um pouquinho mais – olhe... já viu ? A gente a viver quase lado a lado... e nunca nos encontramos, nem para tomar um cafézinho, ou coisa assim... é uma pena, não é ?
- Pois... na verdade... claro que é uma pena... ( O sr. Manuel não era aquilo que ele estava a pensar, pois não ? )
- Meu vizinho... meu vizinho maroto. Olhe, eu hoje quando sair do serviço, vou bater-lhe lá à porta... e aí a gente vai ber um copito, pode ser ? É claro que pode ser, estou vendo nesses belos olhos que pode ser... você é mesmo um espectáculo, como é que eu nunca reparei nisso ? ... Devia estar ceeeeego.
- Claro, claro... ( Não gostou em particular daquele entoar da palavra ceeeego, mas ainda bem que o autocarro estava a chegar e a abrir as portas ).
- Então até logo, sr. Manuel.... até logo...
E saltou para dentro, enquanto o sr. Manuel lhe enviava um sorriso doce que nunca se lembrava de lhe ter visto.
Como era hábito, o autocarro estava cheio. Ou melhor, a abarrotar. O que também já era normal. Fazia parte do suplicio matinal, só por vezes mais agradável de suportar quando ficava comprimido com uma passajeira do sexo oposto, e os seus corpinhos tinham que conviver intimamente durante os dez ou quinze minutos da viagem. Não fosse isso e aquelas manhãs seriam sempre um autêntico purgatório.
Esticou a mão e segurou-se no varão, já preparado para as curvas apertadas e as travagens mais ou menos bruscas. Hoje ficara com uma senhora já de idade à sua frente, uma moça com um aspecto asiático à esquerda e um militar á direita.
Duas curvas e três travagens depois, a senhora de idade já conseguira bater com a cabeça no vidro e o militar já lhe caira em cima. A moça asiática, com um equilibrio espantoso, permanecia imóvel.
Agarrou-se com mais força ao varão metálico.
Mas era inútil.
Mais um semáforo e descobriu que a senhora de idade parecia estar a dormitar, o que lhe parecia um feito extraordinário, no meio de tantos solavancos, acelarações e travagens. Para além disso, sentia uma pressão ao nível da cintura e deviam estar a empurrá-lo pelas costas, porque se sentia projectado para a frente.
Voltou a cabeça para trás e o militar esboçou um sorriso.
Não gostou particularmente da distância excessivamente curta donde partira o sorriso. Ainda gostou menos de sentir a mão do militar a acariciar-lhe o pescoço enquanto murmurava qualquer coisa que, com o ruido ambiente, felizmente não chegou a perceber.
- Esta agora ( de repente sentiu os pensamentos a fazerem um nó ) o que é isto ?
Carregou no botão e saiu na paragem seguinte, ofegante.
- O que é isto, o que é isto, o que é isto ? – não se cansava de repetir.
Sentou-se no banco da paragem, agora deserta e esticou-se para trás. Precisava de colocar um pouco de ordem nos seus pensamentos.
Primeiro, aquele comportamento mais que estranho do polica Manuel, agora aquela idiotice dentro do autocarro, o que é que se estava a passar ?
- O que se passa hoje ?
Deu consigo a pensar que só podia ser algo relacionado com os seus comprimidos milagrosos.
- Devia ter lido aquele papel até ao fim... devo ter exagerado na dose, e se era só meio comprimido por dia ? Afinal de contas, a embalagem só tinha dois comprimidos e tomei os dois... e o que estava escrito sobre os efeitos secundários ? Provávelmente, aquela manhã de loucos era um efeito secundário... ou tudo aquilo era um sonho, um pesadelo, se calhar a droga provocava esses pesadelos, sim, claro que devia ser isso...
Puxou do papel e recomeçou a leitura, tentando ler o mais vagarosamente possível.
“ O Belamox é um desinibidor .... em duas versões ... a masculina, Belamox M e a feminina, Belamox F ... provocam .... “
Como assim ?
Teve que ler de novo. Sentiu que as pernas lhe começavam a tremer.
“ Belamox F torna todas as mulheres irrestíveis. todos os homens sentir-se-ão ... “
Retirou do outro bolso a caixa vazia e olhou estarrecido. As letras na caixinha branca e azul insistiam teimosamente em não desaparecer.
BELAMOX F
Levantou os olhos da sua importante leitura. Tocavam-lhe no ombro.
Ergueu a cabeça.
Um fulano enorme, de macacão azul, capacete das obras na cabeça e chave de fendas pendurada no bolso, debruçava-se sobre ele. E ainda por cima, sorria.
- Será que o meu amigo tem horas que me diga ?
publicado por entremares às 13:22
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Quarta-feira, 21 de Janeiro de 2009

O FIM

 

Finalmente
Com uma lentidão propositada, deixou escorregar a caneta por entre os dedos.
Era um tique antigo, sempre gostara de sentir o frio do metal encostado à ponta dos dedos, vá lá saber-se porquê.
Tal como gostava de acariciar as folhas de papel, ainda por escrever. Era sensível à textura, à macieza da encadernação, ao peso dos cadernos e dos blocos de apontamentos. Aliás, guardava religiosamente dezenas de cadernos onde nunca escrevera uma unica letra. Bastava-lhe tê-los, folheá-los de vez em quando, sentir o toque característico de cada um, tão unico e irrepetível como se de uma impressão digital se tratasse.
Olhou de novo para a folha branca. Finalmente.
Muito levagar, encostou a caneta ao papel e escreveu, o mais lentamente que lhe foi possível.
 
FIM
 
 
Pronto, já estava.
Sempre desejara chegar àquela parte, ao desfecho das histórias, ao tempo em que o leitor fecha o livro e se reclina para trás, fechando os olhos e reconstruindo toda a fantasia na sua própria imaginação.
A caneta continuava a rodopiar-lhe por entre os dedos. A tinta ainda não secara no papel e ele ficou a observá-la, a empalidecer gradualmente, perdendo o brilho, até atingir um tom sépia escuro, definitivo.
As canetas de tinta permanente tinham para ele esse prazer duplo; o de escrever e o de permitir prolongar o prazer da escrita. Era quase como que escrever duas vezes, o acto de escrever em si e o poder presenciar a tinta a secar sobre as folhas brancas.
Sorriu ao de leve.
Mudou de página e folheou calmamente todas as páginas do caderno de capa rija que segurava entre as mãos, da ultima para a primeira.
Continuavam todas em branco, sem uma unica letra ou virgula a quebrar a monotonia da cor baça do papel. A unica , as unicas letras em todo o caderno de capa rija eram precisamente aquelas que ele acabara de escrever. FIM
- Pronto – murmurou, enquanto fechava tranquilamente o caderno e o apertava entre os dedos – já está... agora só falta construir uma história para este fim...
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publicado por entremares às 17:19
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Terça-feira, 20 de Janeiro de 2009

Simplex

 

 
Pronto, estava decidido, desta vez é que tinha que ser.
Detestava hospitais, detestava centros de saude, detestava clinicas, tinha pavor de dentistas, médicos e qualquer coisa que vestisse uma bata branca. Mas detestava ainda mais aquela maldita tosse seca que lhe dava voltas ao estômago, se é que o dito orgão ainda existia.
Já tentara o chá de cebola, o mel, a aguardente e até outras coisas que nem vale a pena mencionar ... mas resultados, nem vê-los. Portanto, vá de coragem, e aí vai ela direitinho ao centro de saúde. Pelo menos uma receita de qualquer coisa há-de lá sair, e parecendo que não, isto de trazer uma receita na mão, psicológicamente falando, claro, já é meia cura...
O dia prometia. Mal abriu a porta, um sorriso iluminou-lhe o olhar; a sala de espera estava vazia, o que significava que ela não teria que esperar longas horas para ser atendida, o que significava que em breve poderia voltar para a sua casinha, o que significava que em breve estaria novamente impec, livre daquela tosse.
Começou logo a sentir-se melhor.
Avançou decidida até ao atendimento, onde uma funcionária arrumava calmamente uma pilha de papéis.
- Boa tarde – avançou – vinha ver se podia ser atendida por um médico...
A funcionária espreitou por cima dos óculos, pousou a sua pilha de papéis e veio sentar-se ao computador.
- Boa tarde – respondeu – a senhora tem marcação para que horas ?
- Marcação ? Não... não tenho marcação. Não está nenhum médico de serviço ?
A funcionária carregou numas teclas.
- Está. Está sim, por acaso até estão dois médicos de serviço.  Mas temos a sala de espera cheia neste momento.
Virou-se lentamente, a tentar perceber o que lhe estaria a escapar. Mas não, a sala de espera nas suas costas estava vazia, podia ver distintamente as cadeiras, o que significava obviamente que não existiam corpinhos sentados em cima delas. Ora se não existiam corpinhos, significava que não havia fila de espera, o que significava que ela deveria ser a próxima...
- Mas... existe uma outra sala de espera, é isso ? Julguei que esta aqui é que fosse a sala de espera ... e como não vejo ninguém... pensei que iria ser atendida já de seguida...
 
A funcionária lançou-lhe o característico olhar número três, aquele que significava – esta está a querer gozar comigo, ou o quê ? – afastou o teclado para o lado e virou o monitor, de modo a que a visitante também pudesse observar.
- Minha querida, se eu lhe disse que a sala de espera estava cheia, é porque a sala de espera está mesmo cheia. Ou não está a ver ?
Olhou para a zona do monitor que a funcionária apontava com o dedo e viu 5, 10, 12, 20... vinte e tantos pontinhos vermelhos dentro de um rectangulo, com outros dois pontinhos azuis, mais brilhantes, a piscar por cima. Não percebeu o significado, mas que o resultado era visualmente bonito, lá isso era.
- Perdoe-me .... mas não faço a mínima ideia do que me está a mostrar ... o que são essas luzinhas vermelhas e as luzinhas azuis a piscar ?
O olhar da funcionária mudou do número três para o número cinco, aquele que significava – esta é parva ou faz-se – e num tom muito fininho, elucidou:
- Minha querida, este é o Simplex, o nosso centro de saúde já está no sistema Simplex, ou será que ainda não percebeu ? As nossas luzinhas vermelhas são os pacientes que estão à espera de ser atendidos... e as luzinhas azuis são os nossos dois médicos que estão a dar consulta neste momento... não me diga que é a primeira vez que vem aqui ao centro de saúde...
Ficou boquiaberta. Bem... primeira vez não seria mas, quando tinha sido a última vez ? Talvez para renovar a vacina do tétano, ou coisa parecida. Fosse como fosse, já se tinham passado alguns anitos e aquela coisa do simplex ... era a primeira vez que ouvia falar de semelhante novidade.
Não querendo passar por completa retrógada, lá foi dizendo:
- Pois... por acaso já faz um tempinho que não venho aqui... mas tudo bem, só precisa de me explicar como isto funciona, sou daquelas que aprende depressa. O que tenho que fazer para poder ser vista por um médico ? É só isso que quero. Ando aqui com uma tosse que já não sei mais o que fazer... é só isso que eu quero... ver um médico, uma médica, um enfermeiro, qualquer coisa. Ah. E preciso de uns remédios, um xarope, ou uns comprimidos, um chá. É só. Não quero mais nada.
- Posso marcar-lhe uma consulta, se quiser...
- Quero, claro que quero uma consulta. Para quando ?
A funcionária voltou a carregar nalgumas teclas e após uns segundos de pesquisa, exclamou triunfante:
- Temos aqui umas vagas, amanhã da parte da tarde. Serve-lhe ?
- Perfeitamente. A que horas devo aparecer por aqui ?
A funcionária voltou a mostrar o olhar número cinco.
- Como assim, aparecer por aqui ?
- Para a consulta, quiz eu dizer. As consultas não são aqui ?
A funcionária exibiu pela primeira vez o seu olhar número seis, aquele que significava – faltam dois segundos para me levantar e lhe dar um par de tabefes – e começou a dar mostras de um certo nervosismo.
- Não minha querida, as consultas não são aqui. Aliás, as consultas não são em parte nenhuma deste centro de saúde, são em sua casa. São tele-consultas, você liga a sua webcam, fala com o médico em video conferência, ele receita-lhe aquilo que tiver que receitar, ele envia-lhe por mail a receita, você imprime a receita, vai à farmácia e compra aquelas coisas todas, toma aquilo tudo, fica logo boa e nunca mais precisa de voltar aqui a este centro de saúde... – e após uma pequena pausa - ... percebeu ? E aqui tem um folheto com todas as instruções, antes que a seguir me pergunte como é que amanhã vai conseguir fazer isso tudo...
Atordoada, abanou a cabeça.
Mais Simplex, não podia ser.
Voltou para casa, tossindo.
- Espero ter conseguido contagiar aquela velha bruxa, ao menos – ainda pensou, enquanto ia conduzindo vagarosamente até casa.
No dia seguinte, à hora marcada, sentou-se em frente ao computador e começou a seguir as instruções . Ligar o computador, aceder ao site do centro de saúde, introduzir a referência, esperar... escolher o tipo de serviço ... esperar, esperar ... introduzir nova referência ... indicar o nome do médico, esperar ... esperar ... confirmar com o número da segurança social , esperar ... colocar uma cruzinha do tipo de consulta , esperar ... ah, finalmente, lá estava , aceder à sala de espera , ... esperar, esperar... esperar...
o que era aquilo ?
Aproximou-se um pouco mais do monitor para poder ler a mensagem no centro do ecran.
“ LAMENTAMOS, MAS NESTE MOMENTO NÃO É POSSÍVEL SATISFAZER O SEU PEDIDO. O CENTRO DE SAÚDE VIRTUAL SIMPLEX  1.0 ENCONTRA-SE EM MANUTENÇÃO. POR FAVOR TENTE MAIS TARDE.”
Teve que ler três vezes a mensagem, antes de conseguir perceber o significado.
Levantou-se vagarosamente e dirigiu-se atá à cozinha. Abriu a gaveta dos talheres, pegou numa faca afiada e rumou à despensa. Onde estavam elas ?
Do caixote respectivo, apanhou a maior das cebolas, apanhou um prato e começou meuito lentamente a retirar a casca da cebola.
- Nem que eu a tenha que comer à dentada...  
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Segunda-feira, 19 de Janeiro de 2009

A rádio pirata

 

 

Sobrepondo-se claramente à voz da locutora embaçada, o outro, o tal locutor dos programas piratas de fim de semana, começou a anunciar a frequência, sempre diferente de dia para dia, em que seria transmitido o próximo programa.
Um pouco surpreso mas imensamente feliz com a nova opção para o que estava a ser um dos programas mais sonolentos da noite, rodei o pequenino botão azul da minha velha telefonia até sintonizar o novo posto, e por ali me deixei ficar.
- Muito boa noite ... – lá ia animando o locutor – ... a rádio pirata em sua casa, a alternativa ideal para as suas noites...
Deixei-o falar, claro. A conversa era sempre a mesma, mas a música era bastante mais sofrível, e não me feria tanto os tímpanos como a anterior.
Após uns minutos iniciais de cuidada atenção, voltei-me de novo para a pilha de testes ainda por corrigir.
- De hoje não passa – e ataquei o primeiro de caneta vermelha em punho, olhos de lince à procura da primeira escorregadela ou conta mal feita.
A rádio pirata estava passando agora uns temas da minha especial preferência e claro, para lá orientei mais umas gramas extras da minha atenção. O locutor, como sempre, pregava a apologia das rádios livres, a indepedência em relação a blá-blá-blá... mas isso também não era importante, principalmente quando ele se calava e deixava só a música a correr. Claro que uma vez, lembro-me bem, deve ter ido beber um cafézinho mais prolongado e ficámos todos a ouvir um disco riscado durante uns bons minutos mas enfim, são coisas que acontecem.
Um estalido diferente trouxe-me de volta à realidade.
Algo de muito estranho se estava a passar junto da minha velha telefonia.
Olhei com mais atenção; ou estava a sonhar, ou a quantidade de asneiras do último teste era tanta que o meu pobre cérebro me estava já a pregar a partida.
Nunca ouvira falar de ser possível sair gente – sim, isso mesmo, gente vivinha da silva – do interior de uma velha telefonia.
Mas eram mesmo piratas.
De palmo e meio de tamanho, mas mesmo assim, piratas; de venda no olho, perna de pau e papagaio ao ombro.
Quase conseguia reconhecer o terrível Barba Azul, o terceiro a contar da esquerda...
Aproveitando o meu espanto natural, um deles saltou-me para cima e, desembainhando o seu sabre, encostou-mo ao nariz.
- A bolsa, cavalheiro! E nada de truques, olhe que isto pica mesmo, não é só a bricar...
E para melhor exemplificar, enterrou a lâmina uns milimetros na pobre ponta nasal.
- Ai – protestei, ainda atordoado.
- Era só para ver que eu não estava a brincar... e já agora... dá-me a bolsa ?
Perfeitamente baralhado e confuso com o assalto surrealista, apontei-lhes a minha carteira que repousava incauta sobre a mesa de cabeceira.
Um dos piratas, precisamente aquele que me parecera ser o Barba Azul, foi até lá, e dela retirou as poucas notas que ainda restavam – estamos em fim de mês .
- Mas voçês estão a roubar-me – ainda protestei
O pirata chefe espetou mais uns milimetros o seu sabre no meu nariz e aí achei que um pouquinho de prudência não me ficaria nada mal. Ou seja, calei-me.
Ficou a cobrir a retirada, cómodamente sentado sobre o meu nariz ferido, enquanto os outros se iam agrupando em redor da minha velha telefonia. Quando já lá estavam todos, saltou também e, num segundo, estava junto deles, também.
Ainda de boca aberta, deixei-me ficar deitado, o nariz ainda a doer das duas picadas do pirata chefe.
- Adeus cavalheiro... e até à próxima.
Um após outro, desapareceram todos, tal como haviam surgido; do interior da minha velha telefonia, já quase desconjuntada por anos de experiências não totalmente conseguidas.
Quase a tremer, estiquei a mão e rodei de novo o botão azul que seleccionava os postos emissores, à procura da maravilhosa locutora de voz enfadada e do não menos maravilhoso programa monótono de todas as noites – sim, estava mais que visto que ouvir rádios piratas podia ser um pouquinho perigoso e nada, mesmo nada lucrativo..
- Bolas ... e não é que ainda me ficou a doer o nariz ?
Voltei de novo a minha atenção para a pilha de testes por corrigir.
A caneta vermelha deslizou como que por magia, encostando-se à ponta dos dedos.
Não pude evitar um sorriso.
- Aposto que o próximo vai ter nega, olá se vai...
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Sábado, 17 de Janeiro de 2009

O homem dos amendoins

 

 
Todos os dias, aí pelas dez da manhã, o homem lá passava pela vendedora ambulante, e com um gesto já rotineiro, fazia a compra do costume; um punhado de amendoins.
Metódicamente, esvaziava-os para um pequeno saco de flanela azul, que trazia sempre consigo, no bolso exterior do casaco. Depois afastava-se tranquilamente, as mãos nos bolsos e um assobio no canto da boca, a tautear uma musica antiga qualquer.
Descia a avenida, acenando áqueles que, como de costume, a percorriam em sentido contrário e que ele já conhecia de há muitos anos.
Não procurava nada em especial, mas observava tudo com uma atenção particular; O merceeiro que começava a colocar a fruta junto à montra, o taxista que limpava, pela enésima vez, o vidro já limpo do seu automóvel, a senhora ainda em roupa de trazer por casa a comprar o pão junto à porta, a varredoura do lixo encostada à vassoura, a discutir acaloradamente com alguém ao telemóvel.
Um dia normal, pensou o homem, só mais um dia normal.
Esperou que o semáforo mudasse e atravessou a rua.
Junto à cabine telefónica, uma velhora revirava a carteira do avesso, porventura na esperança de encontrar a moeda que, tinha a certeza, deveria estar por ali.
O homem aproximou-se com um sorriso, ao mesmo tempo que retirava qualquer coisa do bolso.
- Quando procuramos alguma coisa, encontramos sempre tudo menos o que não estamos à procura, não é ?
A velhota concordou, com um encolher de ombros conformado.
- Tinha a certeza que ainda tinha por aqui uma daquelas que ainda servem nestes telefones antigos...
O homem meteu a mão no saco de flanela azul e retirou de lá uma moeda.
- Olhe, encontrei esta no chão ali atrás... se calhar até podia ser a sua.... – e meteu-a solícito na ranhura do telefone.
- É muita gentileza sua – ainda conseguiu gaguejar a velhota – mas não era necessário ter essa maçada comigo...
O homem talvez já não tivesse ouvido as ultimas palavras. Com o mesmo passo descontraído, afastava-se rua abaixo, o saco de flanela azul no bolso e o assobio no canto dos lábios. Ainda se virou e esboçou um leve aceno e depois virou a esquina, misturando-se com a multidão.
Dois quarteirões abaixo, um autocarro parou junto à paragem, com uma brusquidão anormal. As portas abriram-se e o motorista, com alguma dificuldade, desceu os degraus e cambaleou até à rua. De repente, parecia que o mundo inteiro se lhe apoiava nas costas e o peso sufocava-o, mal conseguia respirar. Com gestos trémulos, desapertou a gravata. As pernas cederam e caiu de joelhos, bem junto da porta. Deixou de ver o autocarro, a rua, as pessoas. Só sentia o bater furioso do coração, latejando de forma ensurdecedora, um tremor a subir-lhe pelo peito, pela garganta, a esvaziar-lhe os pensamentos.
Um ultimo desequilibrio e caiu no chão, desamparado, enquanto os transeuntes se afastavam, freneticamente ocupados em não chegar tarde aos seus destinos.
Sem saber quanto tempo depois, sentiu uma mão apoiar-lhe a cabeça e uma voz longinqua, a repetir-lhe insistentemente:
- Vá lá, coloque lá isto debaixo da língua... vai ver que se vai sentir melhor...
Com a vista turva, pareceu-lhe ver alguém a segurá-lo. Segurava qualquer coisa azul na mão e o que quer que fosse, retirou de lá um pequeno objecto branco e colocou-lho sobre a boca.
- Não se preocupe, é só um comprimido ... só precisa de abrir a boca. Vá lá...
Obediente, assim fez. O estranho pousou-lhe a cabeça sobre qualquer coisa macia e esticou-lhe os braços.
- Está tudo bem, a sério... e se você tiver cuidado, ainda tem muito tempo pela frente...
Ao longe, ouvia-se já uma ambulância, abrindo caminho por entre o trânsito. O estranho voltou a guardar o seu saco de flanela azul no bolso e depois de se certificar que o motorista se acalmara um pouco mais, afastou-se silenciosamente.
O dia estava fresco, e puxou a gola do casaco um pouco mais para cima. Gostava bastante de caminhar, e o frio não o assustava; principalmente quando o sol brilhava e o céu conseguia aquele azul escuro que as estações quentes nunca conseguem imitar.
Continuou a descer a rua, alheio ao movimento. Atravessou a praça, onde os pombos continuavam, desde sempre, a ser alimentados por crianças e velhotes, fazendo companhia a duas vendedoras de flores. Alguns pardais oportunistas disputavam grãos de milho aos pombos mais distraídos, para contentamento de duas crianças que corriam incansávelmente atrás deles. A mãe, distraída a ver uma montra, sonhava com o dia em que conseguiria arranjar dinheiro para poder entrar naquela loja. Provavelmente, cada um dos objectos ali expostos valeriam mais que o salário que ela levava para casa, todos os meses. Mas sonhar ainda era permitido, e os sonhos alimentam os dias...
Olhou de relance para os filhos, que continuavam a não dar descanso aos pombos. E aquela coisa linda, ao fundo da montra ? Nem lhe conseguia ver o preço, e se calhar até era melhor assim, para a tentação não ser ainda maior.
Um pombo, mais desatento que os restantes, levantou voo em pânico, quando uma das crianças se lançou para ele, sem aviso. Bateu as asas, rodou sobre si próprio e, sem espaço suficiente para ganhar altura, projectou-se para a rua, grasnindo assustado. A criança esticou os braços e ainda lhe tocou as penas macias, mas em vão. Um novo salto, contornando o banco de jardim, mais uma corrida, só mais uns metros e nova tentativa.
O homem dos amendoins acabara de contornar o ultimo canteiro de flores e preparava-se para atravessar a rua quando algo o fez desviar o olhar. Num segundo que bem podia ser uma eternidade, ainda viu o automóvel a travar, num chiar desesperado. A seguir, um baque seco e algo a ser projectado pelos ares, para cair mais à frente, no empedrado branco do passeio que circundava a praça.
Fechou os olhos por um momento, para ter a certeza que não se enganara.
Uma multidão de pessoas correu para o local e toda a praça, segundos atras quase silenciosa, fervilhava agora de pânico.
Aflito, meteu a mão no bolso.
Retirou o saquinho azul de flanela e esvaziou-lhe o conteúdo para a a palma da mão.
Restava-lhe um amendoim.
Apressou o passo.
No empedrado branco, um coro de gritos rodeava a figura imóvel de uma criança, idêntica a tantas outras crianças, daquelas que correm atras dos pombos das praças e dos jardins. Jazia inerte, e um senhor ao lado, com uma mão colocada sobre o pescoço dela, abanava consternado a cabeça de um lado para o outro, a confirmar o inevitável.
O condutor do automável, ajoelhado ao lado, era a imagem do desespero, os olhos vermelhos de tanto sal e de tão poucas lágrimas. De pé, a outra criança observava o irmão, esperando pacientemente que este se levantasse, não fosse a mãe dar pela ausência deles.
Conseguiu furar o primeiro circulo de curiosos e, muito a custo, chegou ao local. Ajoelhou-se junto da criança e tomou-lhe o pulso.
Tirou disfarçadamente o saquinho azul de flanela do bolso e aproximou-se um pouco mais da criança.
- Então, então... quase que o apanhavas, não era ? Mas ele voou...
E, enquanto falava, pousou a flanela azul sobre o peito imóvel da criança.
- Olha, vamos fazer assim... – e meteu uma das mãos dentro do saco - ... se eu te deixar agarrar um dos pombos... tu prometes que passas a ter mais cuidado, não prometes ?
O saco de flanela pareceu agitar-se um pouco e quando ele retirou a mão, trazia seguro nela um pequeno pombo branco. Sem pressas, pegou na mão da criança e fê-lo segurar a pequena ave, que apesar de toda a confusão, não parecia estar assustada.
Uns segundos depois, o pombo revirou-se e, com o bico, picou repetidamente a mão da criança.
O homem dos amendoins sorriu.
- Obrigado – murmurou ele - ... agora vê se cumpres a tua parte...
Levantou-se e recuou dois passos, para dar passagem à mãe das crianças, que só agora fora alertada para o sucedido.
No chão, a criança abriu os olhos, por entre gritos de espanto.
Com as mãos, acariciou o pombo que teimava em ainda lhe bicar os dedos. Este consentiu por uns segundos e a seguir levantou voo, batendo desajeitadamente as asas.
O circulo de pessoas projectou-se sobre a criança.
Os gritos de pânico e desespero coloriram-se de risos e alívios, enquanto o homem dos amendoins se retirava, rumo ao canto oposto da praça.
Puxou a gola do casaco um pouco mais para cima e voltou a meter o saquinho azul de flanela no bolso.
Com a mão, amarrotou-o, só para ter a certeza que ainda continuava vazio.
- Suponho que amanhã talvez seja boa ideia comprar uma dose um pouco maior...    
Atravessou a rua e olhou para trás. O som de risos alegres chegava-lhe distintamente aos ouvidos.
Sorriu também.
Depois, dobrou a esquina e confundiu-se com a multidão.
publicado por entremares às 20:23
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