Quarta-feira, 17 de Fevereiro de 2010

O unicórnio branco

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- Conta, conta…
- Filhota… o pai hoje está cansado…
- Mas é só uma pai… por favor…
- Oh filhota…
- Por favor…
- …
- Aquela do unicórnio?
- Outra vez? Mas eu já te contei essa história… mil vezes…
- Mas é essa que eu quero… conta…
O pai sentou-se na beira da cama, ajeitando-lhe o travesseiro sob os ombros. Ela, de olhos a brilhar, esperava impaciente. Aquele delicioso hábito de uma história contada para adormecer… já vinha de longe, dos tempos em que ela, ainda gatinhando, lhe trepava pelas pernas acima, sempre curiosa, para descobrir o que ele tanto escrevia.
- Quero ver… também quero ver…
E o pai lá virava o ecran do computador para ela.
- Mas não tem bonecos… é só letras… eu quero bonecos…
Nesses tempos, ela ainda não sabia ler.
- Pronto, está bem… eu conto… mas olha… da próxima vez contas tu, que já deves conhecer a história melhor que eu, pode ser?
Ela fez que sim com um piscar de olhos.
- Muito bem… então era uma vez… um lindo unicórnio branco…
Ninguém sabia o seu nome, nem de onde surgira. Na floresta das esmeraldas, a mais antiga das florestas conhecidas, o unicórnio branco surgia sem aviso, envolto numa névoa, quase sempre pela manhã, junto do lago onde os cavalos selvagens se juntavam para beber. Aparecia e desaparecia, como se quisesse ver simplesmente aquelas outras criaturas selvagens e livres, em quase tudo semelhantes à sua própria imagem.
Sim, quase tudo… à excepção daquela protuberância luminosa que exibia na testa, o córneo mágico que o distinguia de todos os outros animais da floresta.
E onde residia a magia?
Rezavam as lendas que o unicórnio tinha o poder de formular um desejo, fosse ele qual fosse – por mais difícil ou impossível que aparentasse ser – que esse mesmo desejo se realizaria, na próxima noite de lua cheia.
Lendas, certamente.
Durante muitas luas, o unicórnio branco foi visto junto do lago, próximo dos outros cavalos selvagens, num diálogo misterioso feito de relinchares fogosos e de patas a arranhar o musgo das pedras.
E então… quando anoiteceu e uma lua cheia esplendorosa subiu devagarinho no céu… algo aconteceu.
Junto ao lago, um animal solitário bebia tranquilamente. De vez em quando, levantava o pescoço, a crina esvoaçante, farejando o ar da noite, como se esperasse algo.
E foi então que, do outro extremo das águas, surgiu o unicórnio branco.
Aproximou-se bem devagar, hesitante, contornando o lago.
O outro animal não aparentou surpresa alguma, como se já esperasse a sua chegada. Lançou-lhe um olhar de soslaio e deixou-se ficar, num gesto estudado de falsa indiferença.
O unicórnio branco aproximou-se, aproximou-se…
Finalmente, roçou-lhe o focinho no pescoço, tentando chamar-lhe a atenção.
A égua negra, de pelo lustroso, devolveu-lhe a meiguice, abanando o pescoço e permitindo que ele lhe mordiscasse as crinas em desalinho.
Algo naquele quadro nocturno fazia lembrar um encontro à luz da lua.
À excepção talvez daquele pormenor estranho… o belo unicórnio branco perdera o seu símbolo, aquele córneo mágico que os humanos tanto perseguiam.
Se os animais falassem… talvez que ele pudesse explicar que fora esse afinal o seu desejo… o perder o seu símbolo mágico, de livre e espontânea vontade… simplesmente para que ela se sentisse mais semelhante, mais igual a ele… simplesmente mais um animal selvagem, galopando livre pela floresta.
Mas os animais não falam.
E foi assim que numa certa noite de lua cheia, um unicórnio branco se transformou num simples alazão, quem sabe… talvez por amor.
O pai levantou-se em silêncio.
Olhou para a filha, já adormecida, um sorriso ao canto dos lábios.
Finalmente, desligou a luz do candeeiro e saiu, deixando-a simplesmente a sonhar.

 
Nota: Para a minha filhota Iris, e para todos os filhotes a quem vocês contam histórias à noite, para adormecer.

 

publicado por entremares às 19:38
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