Rio de janeiro, Leblon. Noite quente de Novembro.
- Márcia….Márcia. Não te esqueças das horas, tens que ir buscar a tua irmã…
- Sim, mãe… tem tempo. Ainda são dez horas.
A mãe cruzou os braços, como sempre fazia quando já pressentia o desenrolar de uma história.
- Márcia… nem mais um minuto. Levanta-te e vai buscar a tua irmã. Podes apanhar trânsito, não quero que ela fique lá sozinha à espera…
A filha ainda tentou esboçar um "mas" - inutilmente, conhecia bem aquela expressão da mãe - e lá acedeu, contrariada, a desligar o pequeno computador.
- Sabias que és muito chata? - e deu-lhe um beijo, enquanto apanhava a carteira e as chaves do automóvel. - A tua sorte é que eu te adoro…
A mãe riu-se.
- Claro, claro…. Vá, despacha-te…
Deixou-se cair sobre a poltrona, defronte da televisão.
- Finalmente…. Um pouco de descanso… também mereço…
São Paulo, avenida paulista. Noite quente de Novembro.
- Tens a certeza? Nem um chopinho?
- Nah…. Hoje não pode ser…. Já viste a pilha de processos que ainda tenho aqui em cima da mesa?
- Já… já vi. E tu por acaso já viste que horas são? Dez horas.
- Eu sei, eu sei…. Vou só ficar mais um pouco, talvez meia hora…. Mas tenho mesmo que despachar mais alguns, tenho o arquivo todo desactualizado…
- Muito bem…. Olha, se mudares de opinião, estou no barzinho do costume…
Acenou.
Quando o colega saiu, o silêncio - exceptuando o zumbido do ar condicionado - era total.
- Bem… vamos a isto - resmungou para si próprio - ataquemos a maldita pilha dos pendentes…
Rio de Janeiro, Leblon. Noite quente de Novembro.
- Estou farto, Jô. Estou farto…
- Por favor… não faças isso…. Wilson… acalma-te…
- Não… não aguento mais… dizes sempre o mesmo… e voltas a fazer, uma e outra vez…. Não aguento mais…
- Wilson… foi sem querer… estava no bar…
- Não… foram muitas vezes sem querer, Jô… muitas vezes, mesmo…. Não consegues resistir, é mais forte que tu…
- Jô… pára. Acabou.
E sem mais, saiu porta fora.
Imóvel no meio da sala, o ex-companheiro ficou a vê-lo desaparecer no corredor.
- Não vás… - ainda tentou gritar. Mas a garganta permaneceu muda, o nó demasiado apertado para mais lamentos que o simples silêncio.
Fechou a porta devagar. Desligou as luzes e encostou-se à varanda, observando a praia, a avenida concorrida, os faróis coloridos dos automóveis e os pirilampos vermelho-azuis dos carros da policia, de um lado para o outro.
E foi no preciso momento em que o semáforo mudava para verde… que tudo se apagou.
De repente, uma escuridão estranha abateu-se sobre a cidade. As luzes dos apartamentos, os semáforos, os candeeiros da avenida, os neons, os placards de publicidade, os lampiões pendurados nas esplanadas da praia… envolvidos no breu da noite.
De repente, a única claridade resumia-se ao branco-vermelho dos faróis dos automóveis, rasgando feixes de luz por entre a escuridão.
- Esta agora… um apagão?
Um pouco por toda a parte, uma multidão desesperada percebia a ausência da energia. Desde o comerciante - casa cheia de clientes, prateleiras cheias, ao elevador do prédio ao lado, parado bem entre o segundo e terceiro piso, a televisão resumida ao silêncio, os frigoríficos quentes, as ventoinhas de tecto imóveis, alguns semáforos laranja intermitentes, outros apagados. Medo, insegurança, escuridão, o ancestral medo da noite escura.
- Logo agora? Não podiam ter esperado pelo fim da novela? - e a mãe de Márcia lá se levantou, encaminhando-se para a varanda. - Que altura para falhar a energia…
No exterior, nada.
- Nunca tinha visto nada assim… - ouviu uma voz, bem perto de si.
Olhou sobre o ombro, a claridade dos faróis projectando sombras sobre as frontarias dos edifícios. O vizinho do lado, moço ainda novo, fumava um cigarro encostado à amurada.
- É mesmo… altura ruim… e foi geral, não se vê uma única luz em toda a avenida…
Ele concordou, com um aceno de cabeça.
- Nunca tinha visto semelhante apagão…. Depois destes anos todos, nunca.
Foi a vez dela concordar.
- Digo o mesmo…. Já estou aqui vai para quase oito anos… nunca vi algo assim…
Ele soltou uma baforada de fumo, como cabelos soltos ao vento.
- Coincidência… eu também vim para este apartamento há quase oito anos…
- É mesmo? Mas eu não me lembro de alguma vez nos termos cruzado…
- Também o creio…. Não me lembro de alguma vez a ter visto… nem no elevador…
- Estranho, não é? - e passou a mão pelos cabelos - vizinhos, morando no mesmo prédio, no mesmo andar… e nunca nos encontrámos… em quase oito anos…
- É… é a vida …
E remetendo-se de novo ao silêncio, continuaram encostados às respectivas varandas, observando o movimento ininterrupto dos automóveis, ao longo da avenida. Não sabiam - como poderiam saber - os milhões de outras pessoas desprevinas e atónitas, reagindo a medo, com desconfiança…. Ao apagão.
Por uma simples noite, a noite foi simplesmente uma noite…. Mais escura. Muito mais escura.
. Sinais
. O rei morreu... Viva o re...
. Fé