A pequena Matilde ergueu delicadamente os braços… um, dois, três… para cima… para baixo…
- As pontas, Matilde… as pontas.
Ela obedeceu.
Para cima, para baixo… uma meia volta para a esquerda, a curva… novamente a volta, os braços… aquele pequeno desequilíbrio…
- O pescoço direito, Matilde… sempre a olhar em frente… em frente… isso mesmo.
E continuou repetindo, uma e outra vez, a mesma sequência de movimentos.
Chegara finalmente… o grande dia. O ensaio geral decorrera normalmente, sob o olhar atento da professora.
Por quanto tempo treinara ela os "Frappê", o "Rond de jambe", o "Pás Chassé" ?
Quantas horas por dia, apesar de todos os contratempos dos horários, dos dias de frio e chuva, das viagens cansativas de casa até ao pequeno ginásio, do outro lado da cidade?
Quantos sacrifícios?
Ali bem perto… ouvia os aplausos do publico.
A Julieta, a sua colega de ensaios, dançaria nesse momento o tema central do "Quebra-Nozes", acompanhada pelos figurantes do ginásio.
E, a julgar pelos aplausos… todo o treino, todo o empenho… estariam agora a ser justamente recompensados.
E a seguir… seria ela.
A bela adormecida, de Tchaikovski.
O acto principal, onde ela deveria percorrer o palco em pontas, leve como uma borboleta, os braços em flor a tocar as nuvens.
Conseguiria?
Seria capaz?
Sentiu uma mão pousar-lhe sobre o ombro.
- Não estejas nervosa… tu conheces todos os passos…
Ela sorriu, tremendo por dentro.
Conhecia, claro que conhecia todos os passos. Sabia-os de olhos fechados, sonhava com eles, ao ritmo dos acordes que já nem precisava de ouvir.
Mas, mesmo assim… o receio. O receio da reacção do público.
- Podes vir… - assomou alguém à porta - a Julieta está já a terminar…
Seguiu pelo corredor, hesitante. O maillot arroxeado, as lantejoulas bordadas, a fita no cabelo, a sapatilha escura.
O que iria ver o público?
Uma sapatilha.
Tentou… mas não resistiu a um último olhar, antes do subir do pano.
A prótese era quase, quase perfeita… mas mesmo assim, não era a sua verdadeira perna, perdida naquele trágico acidente de moto, três anos antes…
Sob a cor suave do maillot, notava-se facilmente o pé articulado de plástico e metal, que ela conseguira dominar, a pouco e pouco, com uma persistência infinita.
Ainda no hospital, poucos dias depois do acidente, olhando para a perna ausente, decidira firmemente para si própria:
- Não, não e não… o sonho não vai terminar aqui… recuso-me a terminar aqui…
O pano vermelho subia, vagarosamente.
Avançou até ao centro do palco, esperando o inicio da musica.
Mas entretanto… algo aconteceu.
Primeiro um, depois outro, depois ainda outro, uma multidão de rostos anónimos levantava-se das cadeiras e aplaudia de pé, contagiando todos os outros que, em poucos segundos, se ergueram e estrondosamente aplaudiam… a coragem.
A pequena Matilde tentou permanecer imóvel, os braços para cima, um pé cruzado à frente do outro, na espera impaciente dos primeiros acordes.
Uma lágrima de emoção deslizou-lhe pelas faces miúdas.
O sonho… o sonho ia realizar-se.
Finalmente… os primeiros sons… inconfundíveis, da bela adormecida encheram a penumbra do teatro.
Fechou os olhos… e deixou-se ir.
. Sinais
. O rei morreu... Viva o re...
. Fé