Domingo, 11 de Outubro de 2009

O meu amigo falcão

 

 

O falcoeiro do rei era um moço afável, de olhar ingénuo, quase criança.
Talvez pela idade, ainda tenra de cicatrizes, sem mágoas de guerras ou batalhas - um rosto jovem, quase sempre a sorrir.
Naqueles tempos, as florestas do reino estendiam-se pelas montanhas, em direcção ao grande desfiladeiro do sul, a fronteira natural, prolongando-se até ao lago, a norte; um território imenso, povoado de mitos e sombras, de dragões e criaturas fantásticas, de magia e de feiticeiros, num tempo em que - dizia-se - até as pedras falavam…
O rei, ainda imponente no alto do seu cavalo negro, disfarçava a idade com uma energia ímpar, continuando o mesmo caçador exímio de outros tempos, participando alegremente nas justas e torneios, ignorando sistematicamente os apelos de prudência dos seus conselheiros.
 
- Em frente.
Esticou o braço e a caravana pôs-se em marcha, os batedores na linha da frente, o rei logo atrás, ladeado de alguns cavaleiros. O moço falcoeiro seguia-os a uma distância respeitosa, misturado com os tratadores de cães e os ajudantes das estrebarias.
Durante as últimas semanas, uma fera que ainda ninguém vislumbrara - talvez um uso - dizimara rebanhos de ovelhas, semeando o caos e o pânico entre os aldeões. Organizaram-se batidas, espalharam-se armadilhas pelos campos… tudo em vão. Noite após noite, os rebanhos eram atacados, apesar das cercas, dos archotes, dos aldeões de vigia. Nada parava a fúria sedenta de sangue da fera desconhecida.
 
- Está quieto, ainda é cedo.
O falcão olhou para ele, como se tivesse percebido o recado. Abriu as asas mais uma vez e lá sossegou, agarrado firmemente à luva do jovem tratador.
Quem os visse assim, lado a lado, facilmente perceberia a relação de cumplicidade entre ambos, esquecendo por momentos que se tratava de um falcão… e de um ser humano. O falcão voava livre, provocando constantemente o seu jovem amigo, debicando-lhe a roupa e logo fugindo, numa brincadeira alegre nunca vista numa ave de rapina. Ele, que o encontrara ainda minúsculo e ferido na floresta, afeiçoara-se de imediato aquela criatura, partilhando com ela os pedaços de pão da refeição da manhã, levando-a aos ombros nas suas tarefas diárias.
Inseparáveis.
 
Dirigiam-se a norte, em direcção ao grande lago, a planície das neblinas. Não era local de passagem, muito menos de destino para qualquer caravana, aldeões ou mercadores. O lago era vazio de peixes, escuro e pouco convidativo. As histórias exageradas dos aldeões repetiam vezes sem conta a existência de grandes monstros alados, de olhos de fogo e asas de morcego, que capturavam sem piedade todos os incautos que por ali se atreviam a pernoitar.
Mas os rastos de destruição dos rebanhos apontavam para ali… e para ali se dirigiam.
 
Um ruído estridente fez-se ouvir, subitamente.
Apressados, apearam dos cavalos, agrupando-se em redor do rei, as espadas procurando o perigo, os cavalos relinchando de pavor.
- Ali, atrás das árvores - gritou alguém - Ali…
Olharam, talvez uma sombra, pouco mais que isso. Era simplesmente algo que encobria a luz, um vulto enorme e ainda sem forma.
- O rei… protegei o rei - gritou um dos cavaleiros.
E um segundos depois, o vulto gigantesco sobrevoou-os, as asas abertas deslocando o ar frio à sua passagem.
- Um dragão - murmuraram… é um dragão…
 
Pouco havia a fazer, e menos tempo ainda… investida após investida, os cavaleiros do rei caíram por terra, as armas ridiculamente inúteis contra o bafo quente e as garras da poderosa criatura.
Num canto, junto aos cavalos, o moço falcoeiro segurava ainda o seu amigo falcão, nervoso e ainda com a venda na cabeça. Tinha que o libertar.
Soltou o cordel que lhe prendia o capuz e de imediato o jovem falcão recuperou a vista.
E então… algo aconteceu.
 
A criatura imobilizou-se nos céus, como se algo a tivesse feito parar a sua sede de destruição. Volteava a cabeça numa e noutra direcção, como se procurasse algo. Rugiu, um som cavo e forte, como um chamamento.
O pequeno falcão olhou ainda uma última vez para o seu jovem amigo, abriu as asas e ergueu-se nos ares. E … enquanto subia, uma luminosidade desprendeu-se-lhe das penas, envolvendo-o numa aura de luz azulada. O corpo, elegante e esguio, alongou-se ainda mais, ganhou volume, uma cauda, as asas soltaram as penas e a figura inconfundível de um jovem dragão surgiu-lhes bem por cima das suas cabeças, voando desajeitado em direcção ao monstro que ainda pairava sobre eles, bem alto.
A jovem cria, naquele súbito e inesperado encontro com a mãe perdida… soltou um grito agudo, um som de júbilo, roçando a cabeça escamosa de encontro ao longo pescoço da progenitora.
Segundos mais tarde, desapareciam em direcção à neblina do lago.
 
O jovem falcoeiro, aturdido, permaneceu sentado no seu canto, enquanto os cavaleiros feridos se entreajudavam, no campo de batalha improvisado.
E por um momento, por um simples e breve momento, veio-lhe à memória aquela lembrança do pai adoptivo, quando ele lhe contava que também o descobrira, abandonado entre trapos, à porta do mosteiro, numa fria noite de Inverno.
 
O reencontro.
Ao menos, o seu jovem amigo… já tivera o seu.

 

publicado por entremares às 12:08
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De Sara a 11 de Outubro de 2009 às 13:11
Arrepiante, emocionante, empolgante... não consegui deixar de ler toda de uma vez, queria saber o desenrolar do enredo. Tu escreves sempre tão bem Rolando, mas este conto desta vez e talvez por ser tão diferente do que estava á espera... fixou-me ao computador!!!

Desejo-te um Domingo cheio de aventuras e emoções ;)

Beijinhos, Sara
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