Domingo, 4 de Outubro de 2009

Quando a lua nascer...

 

 

Chamava-se Felicia e era um espírito das árvores.
Muitas vezes, ao cair da noite, a coberto das sombras, desprendia-se dos troncos ressequidos e vagava pela floresta, tocando as folhas, afagando os arbustos, cumprimentando os pequenos rebentos, beijando as flores caídas e os musgos escondidos.
Quem a visse assim de perto, deslumbrar-se-ia com a beleza etérea dos seus olhos, de um verde esmeralda como os rios, a pele azeitona clara, o cabelo emaranhado de ervas verde e polvilhado de folhas secas.
Naquela noite, Felicia deambulava contudo com um propósito.
 
Com a ponta dos dedos espalhou um pouco de polen acastanhado sobre os olhos, esfregou os lábios com a cor das amoras silvestres, contemplou o seu reflexo nas águas tranquilas do lago, sob a luz das estrelas.
A lua não tardaria em surgir... e a lua era o seu ponto de encontro, a hora certa para o compromisso que não podia mais adiar.
Caminhou ao de leve pelas veredas, as folhas deslocando-se à sua passagem, como se uma brisa invisivel lhe abrisse caminho por entre a densa vegetação, rumo ao seu destino.
Ele pedira-lhe – Vem ter comigo. Estarei no lago, quando a lua nascer, à tua espera...
 
Ela iria.
O espírito do bosque era afável, sonhador, harmonioso no canto. Cantara-lhe ao ouvido poemas de amor e ela deixara que ele a seduzisse, que lhe lavasse os pés nas águas do lago, que lhe penteasse os cabelos com os aromas do bosque.
O bosque do seu principe encantado ocupava toda a outra margem do grande lago; de um lado, a floresta, ainda primitiva, quase virgem – do outro lado, o bosque, já ralo de grandes árvores, pasto de animais selvagens e cobiça dos homens das aldeias vizinhas.
Ele dissera-lhe: O meu fim está próximo, pressinto-o... preciso de te ver, enquanto ainda é tempo...
Ela percebera-lhe a urgência, o soluço de pânico mal disfarçado na voz.
E tranquilizara-o, com um abraço terno – Eu irei... hoje à noite, quando a lua nascer... eu prometo...
 
Correu, sentiu que a lua nasceria dali a pouco.
Ofegante, percorreu os últimos metros com uma ansiedade crescente no peito. Algo não estava bem... e não conseguia perceber o quê. Sentia simplesmente a angústia aumentar, inexorável, À medida que começava a vislumbrar as águas do lago, por entre a vegetação.
Finalmente, molhou os pés.
 
A visão de horror prostrou-a de joelhos, sem forças para um único lamento.
O outro lado do lago, na véspera um frondoso bosque de ervas altas e arbustos viçosos transformara-se subitamente num enorme parque de gigantescas máquinas metálicas e homens em movimento, aos gritos, fogueiras a iluminar a noite... e um sem número de enormes troncos amontoados junto ao rio, prontos a descer até à foz.
 
Esticou a mão para o vazio, à procura...
Nada mais havia para lhe tocar a ponta dos dedos, senão o frio da noite.
Escondeu a cabeça entre os braços e por ali se ficou, chorando em silêncio.
Como é que um dia, um simples dia, poderia ser afinal... tão tarde demais?

 

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publicado por entremares às 09:42
link do post | favorito
De chica a 5 de Outubro de 2009 às 00:49
Puxa, que lindo conto, emocionante e reflexivo.Que todos preservem a natureza...abração,chica
De entremares a 5 de Outubro de 2009 às 09:33
Oi, Chica....

Que isto também se possa aplicar à tua verde Amazónia, não é?

Beijos
Rolando
De chica a 5 de Outubro de 2009 às 10:39
Sem dúvida, Rolando...Nossa Amazonia está precisando muito disso e não só ela...Temos tantas áreas verdes a preservar, mata atlântica, além de rios, mares, ...O homem esquece disso...abração,linda semana,chica
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