- Já terminaste?
- Não... vou já picar... ai...
- Então? Isto não dói nada...
- A mim doeu-me.
- Deixa ver... claro, claro que te dói, idiota. A professora disse que era para picar o dedo, não era para cortares o dedo...
Riram-se.
O Rui e O Luis partilhavam a mesma secretária. Em Matemática, Fisica... e também ali, no laboratório. Aula de Biologia.
Um dia de experiências... já depois de observadas as cascas das cebolas, de dissecar os pobres ratinhos de laboratório, de observar as asas das moscas ao microscópio. Naquele dia... eles próprios, os alunos, seriam os observados.
Uma simples picadela ( para o Rui, um valente corte ), aplicar uns reagentes... e já está. Toda a gente ficaria a saber o respectivo tipo de sangue.
Claro que primeiro a professora Olivia, uma respeitável decana da escola, ainda explicou quais os diferentes tipos de sangue, as diferenças, a hereditariedade, o factor RH, etc, etc... mas o que todos queriam mesmo era passar da teoria à prática, e vá de picar os dedos.
Duas mesas à frente, faziam-se experiências não autorizadas, claro. Misturavam-se os sangues nas lamelas, adicionavam tinta,tudo para tentar enganar o resultado da experiência ou até – seria o momento de glória – originar um novo tipo de sangue, desconhecido até à data. Claro que seria a fama, até já tinham arranjado um nome para a descoberta e tudo: Sangue tipo CC.
É verdade que o novo tipo de sangue CC nunca viu a luz do dia, e as suas autoras, a loira Carolina e a morena Conceição lá levaram uma valente reprimenda, sendo obrigadas a repetir toda a experiência.
Mas pronto, aos dezassete anos...
O Luis seguia atentamente a mesa da frente. A Carolina, para além dos seus olhos azuis e uns cabelos cor de mel, tinha aquele condão misterioso de lhe aumentar os batimentos cardíacos, sempre que a via sorrir.
O Rui ria-se.
- Qualquer dia, ainda ficas com os olhos tortos...
Divertiam-se, eram amigos.
Dias depois, a cartolina amarela estava pronta, com um quadriculado cheio de nomes e cruzinhas, muitas cruzinhas, indicando o tipo de sangue de todos os alunos.
- E olhem que todos vocês deviam arranjar um cartão com essas informações, e andar sempre com ele na carteira... nunca se sabe.... – insistira a professora, repetidas vezes
Alzira, Ana, Anabela,... bom, está bem.... estavam todos ordenados alfabéticamente.... Laurinda, Licinio,Luis... Roberto, Rosa, Rui...
Ficaram os dois a olhar para a cartolina, ali pendurada no hall de entrada da escola.
Como era possível que entre tantas e tantas dezenas de nomes... só dois tivessem a cruzinha naquela coluna do sangue do tipo A negativo... que como dizia a professora – conservem-no bem, meus amigos, porque não há muitos – como era possível?
Mas lá estava, sem margem para enganos.
Luis.... A negativo. Rui.... A negativo.
Olharam-se de soslaio, um sorriso de cumplicidade estampado nos rostos.
- Será verdade? Somos só nós os dois? – balbuciou o Luis.
O Rui riu-se, bem disposto.
- Olha... cá para mim, em vez de escrever no tal cartão o meu tipo de sangue... sabes o que eu devia escrever? Qualquer coisa assim do género : Chamem o Luis.
O amigo riu-se com ele.
A Carolina apareceu ao fundo do corredor, mas ele nem a viu.
- Vá, anda daí... vamos até ao bar.... hoje pago eu os cafés...
- Tu... hoje pagas? Deves estar doente...
E lá foram, rindo e aos empurrões, corredor fora.
Nota: A dedicatória é mesmo para o Luis, que vocês nem conhecem, não tem o hábito de se sentar aqui à volta da fogueira. Provávelmente, nem se aperceberá deste conto... apesar de ... aquela aula ter sido real, e o resto também. Mas acima de tudo... é bom ter amigos, sabem? Com A grande.