Cupido. Filho de Vénus e Marte. Lembram-se dele?
Da mãe herdara a beleza, a doçura do olhar, a meiguice do trato. Do pai, a energia inabalável, a sagacidade, a audácia.
Nascera com a missão de interceder pelos espíritos humanos, ajudando-os a encontrar o rumo das emoções, orientando-os, através de pistas dissimuladas, na busca das almas gémeas.
Era esse o seu destino, a razão última da sua existência. Ajudar os outros – os humanos – a encontrar a felicidade.
Armado de um pequeno arco, disparava setas certeiras sobre os corações desprevenidos, incutindo-lhes pressentimentos, vontades súbitas de reparar em pequenos pormenores, desejos incontroláveis de se dirigirem a determinada pessoa... ou simplesmente adoçando-lhes o olhar, deixando-os com aquelas expressões tão características de quem acabou de colorir o mundo inteiro de cor-de-rosa.
O que ninguém sabia... porque a ninguém importava, era todo o trabalho árduo que se encontrava por detrás de cada uma dessas flechas, de cada uma dessas vitórias do amor.
A ninguém importava toda a procura de Cupido, analisando e perscrutando as profundidades das almas, à procura de semelhanças, de emoções comuns, de pontos de união.
Não.
Os humanos acreditavam simplesmente que uma seta direita ao coração fazia simplesmente... um milagre. Como se ele pudesse fazer milagres...
Mais um dia se aproximava do fim.
Cupido descansava, encostado ao tronco de um velho álamo. O arco e as flechas, pousados bem ao seu lado, já haviam realizado muitos sonhos, e também naquele dia, como em todos os outros dias.
Mas Cupido desviou o olhar, subitamente entristecido. Cada vez lhe custava mais pegar no arco, cada vez lhe era mais difícil apontar... e disparar as setas mágicas do amor.
Psiqué... a borboleta do mar, era a mais bela das mulheres que alguma vez os seus olhos haviam podido contemplar.
Em sonhos, imaginava-se nos seus braços, revolvendo-lhe de beijos os longos cabelos, entrelaçando as mãos, segurando-a entre as asas e percorrendo os céus, rumo a um paraíso escondido que fosse só deles.
E ali estava ela, longe, rodeada de amigas, colhendo flores no jardim.
Um olhar… só um breve olhar… ao menos um olhar.
Ficou a sonhar, de longe.
Não era justo.
Não era justo que as suas flechas só pudessem encontrar a felicidade para os outros. Não era justo que ele próprio não pudesse ser alvo, que ele próprio não pudesse ter a mesma ajuda que concedia aos outros, aos humanos.
Fechou os olhos. Com força.
Não sabia como, nunca aprendera. Mas desejou com todas as forças ser um pouco menos deus, um pouco mais humano…
A mão tocou o arco, abandonado sobre as ervas. Sentiu uma estranha sensação, como se algo estivesse bem ali ao seu lado, a espreitá-lo sobre os ombros. Impossível – tinha a certeza de estar sozinho.
Ergueu simplesmente o olhar.
Lá bem ao longe, sentiu um brilho nos olhos. Psiqué.
Olhava para ele. Fixamente.
E parecia… não… estava… seria mesmo?... parecia sorrir…