Chamava-se Clara. Morava ao fundo da rua, numa casa igual a todas as outras, de paredes amarelas e vidraças embaciadas. Via sózinha e não era muito dada a conversas, apesar da vizinhança ser afável, simpática até.
Todos os dias, encetava a mesma rotina, desde que trocara a pacata aldeia do interior por aquele emprego na cidade, como ajudante de cabaleireira; pequeno almoço a correr, cinco minutos ao longo da avenida até à estação de comboios. Depois, uma sonolenta viagem de meia hora, ainda um outro autocarro. Pela tardinha, o mesmo percurso, em sentido inverso. Ao almoço, talvez um pulo até ao shopping, uma sopa de pé, um hamburger, uma limonada.
Que dia era hoje? Que dia fora ontem?
Por vezes, era-lhe dificil descobrir as diferenças.
Sábado.
Recordou-se súbitamente, era sábado, a sua folga naquela semana.
O pequeno almoço poderia ser, naquele dia, um pouco mais demorado.
Colocou as fatias de pão na torradeira e o café para aquecer. Distraídamente, ligou o rádio, esquecido sobre o frigorífico.
( Llovió – Presuntos implicados - http://www.youtube.com/watch?v=lX5j95aMIMk )
Sorriu. Há quanto tempo não ouvia aquela musica?
Sem querer, esboçou um solitário passo de dança, deslizando ao longo do fogão, quase indo de encontro à pequena mesa de refeições.
Abriu a janela.
Uma rajada de ar mais fresco fê-la estremecer. O outono anunciava-se para breve. Mas... que som era aquele?
Acercou-se, apoiando-se sobre o aluminio húmido e frio. Pousado sobre um dos ramos mais próximos, uma pequena ave escura, de bico alaranjado, observava-a, sem aparente receio.
- Olá... – murmurou ela, como se falasse consigo própria – és novo por aqui, não és?
A ave emitiu um sonoro chilrear e ela deixou-se rir.
- Já somos dois, pequenino... já somos dois...
O ruído da máquina de café puxou-a de novo para a cozinha. Encheu bem a chávena e levou-a com a torrada para a beira da janela.
A pequena ave ainda lá estava, olhando para ela.
- Toma... queres um pedacinho... é pão ... toma...
E estendeu-lhe a mão, com dois minusculos pedacitos de pão. A ave ainda hesitou mas, para sua surpresa, esvoaçou para junto dela e apanhou a medo um dos pedaços, voltando de seguida para o seu pouso seguro. Em seguida, emitiu uma série de sonoros trinados, como se estivesse a transmitir uma mensagem.
- Não precisas de me agradecer... tens aqui mais um pedacinho...
Segundos depois, um novo chilrear. Vinda de alguma árvore vizinha, uma segunda ave veio pousar ao lado da primeira. Trocaram um breve agitar de penas e sem hesitação, a recém chegada apressou-se a ir recolher o segundo pedaçito de pão... na mão ainda estendida de Clara.
- Ora esta... quem me diria...
Ficou a vê-los, a debicar mutuamente as penas um do outro.
- Olá vizinha...
A voz vinha lá de baixo, da rua. Olhou.
Lá estava ele de novo, o vizinho da porta da frente. Acenava alegremente, como era seu hábito, apesar de na maioria das vezes ela lhe responder com um monossilábico aceno de cabeça e às vezes, nem isso.
Sem se aperceber, deu consigo a responder.
- Bom dia vizinho... já vai para o jogging outra vez?
Que horror. Colocou a mão sobre a boca. Acabara de proferir numa única frase mais palavras do que talvez durante todo o tempo que já ali vivia. E aparentemente, o bom do vizinho também reparou nisso.
-Anh... ah, pois, pois... o jogging, claro... olhe, também devia vir, sabe? Faz muito bem à saúde...
Ela deixou-se rir. As aves levantaram voo, talvez assustadas pelo súbito quebrar do silêncio.
- Oh, vizinho... é capaz de ter razão... e porque não me convida um dia destes para ir consigo? Quem sabe... pode ser que até lhe apanhe o gosto...