Segunda-feira, 24 de Agosto de 2009

Gilberto Capelo Gaivota

 

- Tenho medo…
- Não tens nada medo… eu estou aqui ao teu lado.
- Mesmo assim… e tu sabes voar muito bem… e eu não.
- Gilberto… não olhes para baixo, olha só para mim. Não confias em mim?
- Claro que confio, Fernão… mas tu és tu, e eu sou eu…
- Meu querido irmãozinho, se eu consegui… tu também vais conseguir…
- Isso queria eu… mas tu és o Fernão, és famoso, até escreveram um livro sobre ti… e eu sou só o Gilberto, o teu irmão mais novo, nada famoso e ainda por cima… medroso.
- Tu não és medroso. Não acreditas em ti próprio o suficiente, é só…
- Só? Quantas penas já perdi, com todas as quedas que dei? Já parti o bico, já torci as patas, já tentei tudo… mas não consigo…
 
Fernão Capelo Gaivota olhou para o irmão, frágil e de aspecto desamparado. Também ele próprio já fora assim, antes de descobrir o prazer sublime de voar. O céu azul deixara de ser um oceano desconhecido e passara a ser o seu refúgio, o local calmo para onde fugia sempre que precisava de um pouco mais de silêncio, longe dos grasnidos do bando.
Mas tudo isso levara o seu tempo, tudo isso custara um número interminável de quedas, a expulsão do bando, a solidão desgastante dos dias inteiros a voar sozinho, da alvorada ao anoitecer, tentando subir mais alto, descer mais rápido, curvar mais perfeito.
Chegara agora o tempo do seu irmão mais novo, Gilberto Capelo Gaivota - o tempo para o primeiro voo, o dia para a conquista da liberdade, o dia em que verdadeiramente se iria transformar numa ave, vencer as alturas, transpor os medos, ser gaivota…
 
Gilberto contemplava estarrecido o mar, desfazendo-se em espuma na base da falésia, muitas dezenas de metros abaixo. Só a visão das colunas de espuma a erguer-se, furiosas, rugindo como a tempestade, lhe metia medo. E nem os incentivos do irmão o faziam sentir melhor.
 
- Olha… vamos fazer assim… - animou-o o irmão mais velho - Eu salto contigo, está bem? Saltamos os dois juntos… eu vou ao teu lado, dou-te instruções… vais ver que assim é mais fácil…
Gilberto agitou o bico, desconsolado.
- Está bem, está bem… eu vou… mas por favor… não te afastes de mim, está bem?
Fernão puxou-lhe as penas da asa com o bico, carinhosamente.
- Claro que não me afasto de ti. Sou o teu irmão… estarei sempre aqui contigo…
 
Um passo mais… e o abismo ali ao lado, à distância de um pequeno salto. Depois… depois seria só abrir as asas, tentar controlar a queda, respirar fundo e … prazer. Sim, principalmente isso, tentar descobrir o prazer de voar.
 
Saltaram os dois.
Durante breves instantes, permaneceram de asas coladas ao corpo, ganhando velocidade.
Foi então que Fernão gritou para o irmão.
 
- Não consigo abrir a asa. Não consigo!
Gilberto olhou para o irmão, uma das asas aberta e a outra colada ao corpo, imobilizada.
- Fernão… o que se passa? Abre as asas…
- Não consigo, Gilberto, não consigo. É como se estivesse presa… salva-te, afasta-te de mim, ou cairemos os dois…
O pequeno Gilberto, já de asas abertas, batendo furiosamente para reduzir a velocidade, debicava desesperado a asa imobilizada do irmão, tentando libertar-lhe os movimentos. mas a asa continuava inexplicavelmente sem se mover, apesar de aparentemente nada a prender.
- Gilberto Capelo Gaivota… larga-me … e salva-te. Não te consegues ainda sustentar a ti próprio, quanto mais aos dois… salva-te…
O irmão nem lhe ligou. Descobrindo forças insuspeitas, redobrou os esforços. As asas abertas, cansadas e doridas, iam reduzindo aos poucos a velocidade da queda, enquanto que com o bico segurava firmemente o corpo do irmão.
- Não… nem pensar… eu consigo… vais ver… eu consigo…
 
A superfície do mar, ao longe serena e espelhada, rugia agora de perto, as ondas empurradas pelo vento a desfazer-se contra a falésia. Uns segundos mais e tudo estaria terminado.
Mas Gilberto não desistiu.
Inclinou o corpo para a frente, para oferecer a máxima resistência ao ar. Inchou o peito de ar e aumentou o ritmo do bater das asas. Deixou de as sentir, a dor a ultrapassar os limites do possível.
 
Lentamente… a queda abrandou. Mergulharam os dois, lado a lado, ainda unidos num abraço.
 
Minutos depois, voavam os dois lado a lado, batendo ritmadamente as asas.
 
- Fernão…
- Sim, Gilberto?
- Tu não estavas mesmo com a asa presa, pois não?
- …
- A sério… podes contar-me… não vai fazer diferença, agora que já aprendi a voar… mas conta… estavas a fingir, não estavas?
Fernão olhou para ele e sorriu-lhe.
- Ora, ora, irmãozinho… se não vai fazer diferença… porque queres saber?
- Porque… porque preciso de saber, é só…
- Olha Gilberto… em vez de te responder… digo-te simplesmente… que o teu primeiro voo foi muito mais perfeito que o meu… acreditas?
Gilberto não lhe respondeu.
Não acreditava… mas pronto. Se o irmão mais velho preferia assim… pois que assim fosse.

 

publicado por entremares às 18:42
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