Quinta-feira, 20 de Agosto de 2009

Mya, a gueixa

 

Caminhava de cabeça baixa, como todas as gueixas. Não por medo ou vergonha, simplesmente pela tradição ancestral de caminhar com os olhos no chão, no papel da mulher perfeita.
Mya, a gueixa, aparentava uma juventude enganadora. Talvez o rosto branco, os lábios finos desenhados a escarlate ou os bordados suaves do quimono disfarçassem o seu aspecto real, se é que existia algum. Qualquer coisa naquela imagem feminina evocava uma aura de mistério, de sensualidade, de inatingível.
Takamoto não conseguia desviar o olhar.
Nunca pudera usufruir, em toda a sua vida, da companhia dessas figuras fantásticas - mas sonhava com elas, e não raras vezes se deleitava em sonhos com as deslumbrantes emoções que imaginava desfrutar, quando chegasse a sua hora.
E a sua hora chegara, finalmente.
Promovido ao conselho de administração, recebera dos novos colegas a prenda que mais desejara, durante toda a sua vida adulta - o acesso ao Kiba, o clube de cavalheiros mais selecto do país, frequentado por uma pequena elite de privilegiados - políticos, homens de negócios, algumas personalidades do mundo dos espectáculo… e claro, por gueixas.
 
Inclinou-se, numa vénia respeitosa, respondendo ao cumprimento dela.
- O meu nome é Takamoto… seja bemvinda à minha casa…
- Mya…
Sentaram-se na sala, defronte de uma mesa de chá.
- Deseja que lhe sirva uma chávena de chá? - indagou ela, e pela primeira vez, ele pode observar-lhe os olhos, de um negro brilhante, quase azulado.
- Sim, por favor…
Ela ergueu-se e em gestos que a longa prática tornara naturais, pegou no bule de porcelana, na chávena e deixou que o líquido fumegante escorregasse vagarosamente, soltando um vapor perfumado.
Sem saber bem como, Takamoto anteviu naquele simples gesto uma promessa de prazer. Sorriu, em deleite.
- Obrigado… está bem assim…
 
  
No silêncio do quarto, Mishimo observava-se ao espelho.
O passar do tempo fora generoso para com ele, tinha de admitir. Mesmo sem qualquer maquilhagem, o seu rosto ainda conservava muitos traços de uma juventude já um pouco distante, um porte sereno, algumas rugas de expressão, um ar tranquilo.
Ajeitou o casaco escuro sobre os ombros, apertando os botões prateados.
 
Sentiu-se nervoso por dentro. Nunca estivera ao pé de uma gueixa, muito menos na sua própria casa. O filho avisara-o na véspera.
- Amanhã, meu pai … vou apresentá-lo a uma pessoa… uma pessoa especial.
 
O pai enrugara a testa, apreensivo. Pouco saía de casa. O mundo tornara-se desinteressante, demasiado violento, demasiado ruidoso. Sentia saudades do verde, da montanha, da casa humilde onde crescera e onde criara os quatro filhos, onde haviam sido felizes.
 
- Não preciso da companhia de nenhuma prostituta - gritara o pai, então.  
- As gueixas não são prostitutas, meu pai… são artistas.
 
Acedera em conhecê-la. Simplesmente isso, e nada mais. Um chá, quando muito.
Desde que fora viver com o filho, fechara-se para o mundo. A esposa falecera muitos anos atrás e Takamoto, o único filho varão… era toda a família que lhe restava. As três filhas pertenciam às memórias de um passado distante, de uma vida humilde e sem recursos. Duas deles levara-as a doença, aquela doença da fome e do frio, das noites ao relento ou mal dormidas sobre as madeiras duras da cama. A terceira, talvez ainda fosse viva, partira com um viajante, para parte incerta.
 
Uma batida forte na porta veio despertar-lhe a consciência. Takamoto assomava à porta do quarto.
- O chá está servido, meu pai…
 
Ele assentiu, maquinalmente. Um chá. Seria simplesmente isso, um chá.
Desceram as escadas em direcção à sala.
Mya continuava de pé, junto à mesa de chá, esperando pacientemente, o rosto impávido, um sorriso impossível de definir.
 
Mishimo aproximou-se, o andar hesitante. Havia qualquer coisa naquela figura que o incomodava, apesar de ser a primeira vez que a via. Qualquer coisa de … familiar, até.
Sentou-se.
Takamoto imitou-lhe o gesto e Mya ajoelhou-se diante do ancião e solícita, tomou-lhe o pé, para lhe descalçar a sandália. Repetiu o gesto para o outro pé e, ao erguer o rosto, sentiu que Mishimo a observava minuciosamente.
Subitamente, o ancião ergueu-se, gaguejando algo incompreensível. Os olhos, antes tranquilos, raiavam agora uma nuvem avermelhada, o rosto arroxeado, quase apopléctico.
- Não… não, não é possível… - balbuciou.
Recuou dois passos, em direcção à porta.
Mya voltou a baixar de novo o olhar, as mãos levemente trémulas.
Takamoto, julgando o pai à beira de um ataque fulminante, ergueu-se de um salto e segurando-lhe no braço, tentou fazê-lo sentar-se.
- Pai… pai, por favor… o que foi? O que foi? Acalme-se…
 
A gueixa pousou as sandálias e erguendo de novo o rosto, cruzou de novo o olhar com o do ancião.
 
- Sim, pai… sou eu… Myura… a sua filha… - disse ela então.
 

 

publicado por entremares às 12:18
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De A Luz A Sombra a 24 de Agosto de 2009 às 20:54
Esta figura da gueixa despertou-me sempre curiosidade e lembro-me de que era ainda muito novinha quando li um livro que não era mais do que a opera "Madame Butterfly" e que me tocou muito mesmo.
Penso que o papel delas não é própriamente o da "Madame Butterfly", o contrato de casamento não está em causa. Não vi o filme e para vergonha minha não tenho lido nada sobre elas.
Boa semana
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