Sábado, 11 de Julho de 2009

É proibido adivinhar o futuro...

 

- É meia noite… e está tudo bem, com a graça do Senhor…
 
A noite estava fria. Uma neblina franzina, empurrada do rio, galgara o porto e espalhara-se pelas ruas desfocando os contornos e criando auréolas esbranquiçadas em torno dos candeeiros. As sombras, húmidas, escorregavam pelas paredes de pedra, abafando os passos nas calçadas de pedra.
A cidade dormia.
Não fora a presença do guarda nocturno, de lanterna em punho… e dir-se-ia que o silêncio era total; até os estivadores das docas, habituais fregueses tardios dos bares e tabernas da zona ribeirinha, haviam partido para parte incerta… deixando as ruas desertas.
O guarda Marcelino, primeiro cabo da guarda, nunca se conseguira habituar à cidade.
Lisboa, por muito que lhe dissessem o contrário, era suja, tresandava a peixe e albergava os piores facínoras do reino – ladrões, agiotas, mercenários das colónias, assassinos.
Mas em tempos de crise…
Enquanto caminhava ao longo da praça, veio-lhe à memória a imagem da sua aldeia natal, perdida entre os pinhais e as dunas, lá bem para o norte, junto da foz do Mondego.
- Ah, o campo, nada como o campo… - deu consigo a murmurar.
Mas o campo e a província ficaram longe, tal como a família.
- Se tudo correr bem… são só três anos – prometera ele – faço uma comissão e depois venho-me embora…
A mulher esperaria por ele. A mulher e as crianças, as quatro pequeninas e a que já vinha a caminho… se Deus quisesse, havia de ser um rapaz… depois de quatro raparigas, tinha que ser um rapaz…
E os três anos haviam passado.
 
Aquela ronda... seria a penúltima ronda. A sua comissão terminaria no dia dois de dezembro, e se os santos o permitissem, ainda chegaria a casa antes do natal.
Contornou o pelourinho e dirigiu-se à mouraria.
Algumas vozes e o passar de uma carroça trouxeram-no de novo à realidade.
 
- É uma da manhã... e está tudo bem, com a graça do Senhor...
 
Um pouco à frente, alguém despejava um balde de água para a rua; desviou-se a tempo, pragejando.
- Ó da casa... arre que vem gente a passar....
Ninguém lhe ligou.
Continuou, ladeira acima, os lampiões da fachada do castelo a assomar por entre as sombras da noite. Ajeitou melhor o agasalho.
O frio... aquele frio húmido que ia direito aos ossos, como detestava aquele frio. Mas o inverno ia ser chuvoso, diziam os entendidos.
O ano da graça de 1755 não fora de feição para a terra. O verão viera tardio, as searas mal espigaram, o trigo escasseava nos mercados. Os varões sadios e escorreitos alistavam-se no exército, que el-rei pagava mal mas alimentava as bocas e provia tecto a toda a gente.
Um leve tremor agitou-lhe os passos, desequilibrando-o.
- Ora essa... – estranhou – quem me visse diria que nem me tenho nas pernas...
Não teve tempo para novo pensamento. Um rumor grave e surdo foi aumentando de volume, como se as entranhas da terra gemessem uma dor infernal. Voltou a sentir o chão o tremer com violência, ao mesmo tempo que algumas pedras se desprendiam das paredes e tombavam sobre a calçada.
O que era aquilo, por Deus?
Aqui e ali, gritos irromperam. Num instante, a rua encheu-se de gente, candeias acesas, as mães fugindo de cas com os filhos nos braços.
Após uns segundos de intervalo, a terra tremeu novamente.
Caiu por terra.
- Por todos os santos... fugi, fugi todos... – passou alguém a correr – fugi que é um terramoto...
O guarda Marcelino ainda tentou levantar-se. Mas a torre da igreja, com um rugudo de dor, precipitava-se já sobre ele, desfazendo tudo à sua passagem.
Corria o dia um de dezembro do ano da graça de 1755, em Lisboa.
Penúltima ronda do guarda Marcelino, primeiro cabo.
 
 

 

publicado por entremares às 00:55
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De Anad a 11 de Julho de 2009 às 11:25
Obrigada pelas suas palavras no meu blogue. O seu texto é muito bom. Fiquei surpreendida com o seu blogue e vou voltar mais vezes. m bom fim de semana.
Um abraço
Anad
De entremares a 11 de Julho de 2009 às 11:58
Obrigado Anad, pela simpatia.
Será sempre bemvinda.

Bom fim de semana.
De GiGi a 11 de Julho de 2009 às 15:04
Poxa... Fiquei triste! Tanto se esperou, e... Mas, enfim, acontece!!

Recentemente, ao estudar História, soube de tal terremoto, mas só uma citação, não houve maiores detalhes.

Acho legal transformar em narrativas fatos históricos. Dá-nos maior aproximação do que aconteceu e merece certa importância.

Beijos!
De entremares a 11 de Julho de 2009 às 16:43
Gigi... creio que, como habitualmente, a História não se compadece com os pequenos pormenores. E no meio das grandes tragédia... quantos cabos Marcelino não existirão?

Beijos.
Bom fim de semana.
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