Segunda-feira, 15 de Junho de 2009

Regresso a casa...

 

( Participação na Tertulia Virtual - 15 de Junho de 2009 )

 

 

 

 

 

Finalmente, apertou o botão.
O som estridente da campainha metálica fez-se ouvir, sobrepondo-se ao cair das gotas de chuva no asfalto molhado. Dezembro era habitualmente mês de Inverno mas, que se recordasse, há muito que não chovia tanto…
Aspirou uma última baforada de fumo e atirou o cigarro, ainda meio, para uma poça de água do alcatrão – um dia, teria mesmo que largar o vício.
Mas não naquele dia.
Ajeitou a gola do casaco. Não era só a chuva, o frio também não ajudava nada – aquele frio cortante, que atravessava a roupa e ia direitinho aos ossos.
- Vá lá… abram lá a porta… - resmungou para os seus botões - … de que é que estão à espera ?
Os segundos continuaram a passar… e nada.
O grande portão de metal continuava na mesma – sempre bem pintado, a meia dúzia de pequenas aberturas na parte superior, a janela de vidro, o gradeamento. Os muros, as torres, o jardim bem cuidado … estava tudo rigorosamente na mesma, tal como ele se recordava … e já passara quase um ano.
Finalmente, o portão abriu-se e um homenzinho atarracado, de uniforme cinzento, espreitou.
- Olha quem ele é… o nosso Pepe…
- Sr Dinis… como vai ?
Abraçaram-se.
- Então sempre é verdade ? Vens cá passar a noite connosco ? Quando me disseram, eu nem acreditei…
- É verdade… telefonei ontem… o director disse-me que não havia problema…
- Claro que não tem problema… tu fazes parte da família… vá, entra, entra…
O estrondo do portão metálico a fechar-se nas suas costas fê-lo estremecer. O guarda Dinis apercebeu-se e passou-lhe a mão pelo ombro.
- Vá Pepe… não te preocupes, não penses nisso… tu agora vives do lado de fora… estás só de visita…
Só de visita.
Aquelas simples palavras ataram-lhe a garganta num nó. O guarda Dinis sempre fora um homem decente, como aliás a grande maioria dos guardas da prisão. Até o director, o Dr. Tello sempre fora correcto com ele – autoritário, teimoso… mas nunca passando dos limites.
Ultrapassaram o hall de entrada e embrenharam-se no corredor do bloco um, onde se localizava o ginásio, a capela e todos os serviços administrativos.
- Pepe… como vai isso ? – cumprimentou um dos guardas da secretaria, acenando com a mão.
Ele respondeu ao cumprimento.
- Vai tudo bem, sr. Afonso… vai tudo bem… 
Ultrapassaram a porta gradeada. À esquerda, o corredor que levava ao gabinete do director, à direita, os vestiários e a sala dos guardas.
A porta estava aberta.
Os guardas Filipe, Gonçalves, até o sargento Matias… todos sentados à volta de uma mesa enfeitada a preceito, com velas e jarro de flores ao centro. Frango assado, leitão, um prato com camarões, jarros com sangria e gasosa… e um bolo rei enorme, de um aspecto guloso e colorido. No canto da sala, entre a televisão e o chaveiro metálico, uma árvore de natal bem decorada relembrava a quadra festiva, entre estrelas douradas e o piscar característico das luzinhas coloridas.
Era Natal.
- Olha o nosso Pepe… - e o sargento Matias levantou-se prontamente para o cumprimentar – então como vai isso, homem ? Que tem feito ?
- Cá vamos andando, cá vamos andando… os ossos não gostam lá muito desta chuva toda, sabe…
- Então não sei ? Eu que sou mais novo estou todo enferrujado… mas venha cá, venha cá, sente-se aqui.
Pepe sentou-se, no meio dos companheiros de ceia. Pouco depois o guarda Afonso veio fazer-lhes companhia.
Contaram-se anedotas, falou-se de futebol, de mulheres, de comida, da crise, do desemprego, da D. Madalena ( a nova funcionária da secretaria ), da sorte do jardineiro Tobias, que lá fizera cinco número no euromilhões.
A pouco e pouco, conseguiram que Pepe provasse o leitão – magnífico, receita caseira da mulher do guarda Gonçalves. Os camarões também marcharam num ápice, entre goles de sangria.
Pepe conseguiu até rir, quando o guarda Afonso despachou duas anedotas seguidas de alentejanos.
 
Trinta e três anos… era muito tempo.
O passado ficara lá longe, e Pepe seguira em frente. Um passo de cada vez, um ano de cada vez, até cumprir integralmente a pena. Trinta e três anos e duas semanas, nem mais um dia. Expiara a sua dívida para com a sociedade, arrependera-se, esforçara-se por transformar todo aquele tempo inútil em algo de proveitoso. Cultivara-se, fizera amigos, vira partir amigos, vira até voltar alguns deles. Ganhara o respeito dos guardas, chegando inclusivamente a ser convidado por um deles para o respectivo casamento.
A partir de certa altura, Pepe deixou de ser um preso, passou a ser parte da família, uma família talvez um pouco diferente, uma família que vivia numa fortaleza de muros altos, cercada de arame farpado, com muitas escaramuças pelo meio e uma solidão gotejante que embaçava os vidros foscos das celas, dos corredores…
Agora perto dos setenta, Pepe deixara à força aquela família, a sua única e verdadeira família – não tinha outra – deixara à força a sua casa…
A sua casa…
A sua casa tivera ali um endereço, como as casas normais, do mundo de lá de fora. Pepe residira na cela B24, do bloco B, segundo piso, célula número quatro.
 
Tudo isso fazia agora parte do passado. Pepe voltara à liberdade, aranjara um quarto numa pensão barata, dividia o tempo entre a carpintaria do ex-colega António e a barbearia do sr. Gilberto, um guarda aposentado. Ao domingo, ajudava o padre Alberto a celebrar a missa na prisão e depois ficava por lá, a jogar às cartas ou a ver televisão… para não ficar sozinho.
Quando num impulso pediu autorização para o deixarem aparecer na noite de Natal… nunca pensou que lhe dissessem sim.
Mas o Dr. Tello surpreendeu-o.
- Claro que pode vir, Pepe… você faz parte aqui da família…
 
- Então, Pepe, como é? Não abre o seu presente?
Engoliu em seco.
- Não comprei nenhuma lembrança para vocês… - ainda conseguiu gaguejar.
- Nem era preciso, homem… isto é só uma pequena coisinha aqui da gente… vá lá, abra…
Com as mãos a tremer, lá conseguiu rasgar o papel.
- Eu… eu… não tenho palavras…
 
Com as duas mãos, agarrava com força a moldura de madeira. Ao centro uma fotografia mais pequena, com meia dúzia de rostos conhecidos, alguns deles sentados ali à mesa. No centro, a figura de Pepe, uns anos mais novo, mascarado de palhaço, à entrada da cela, fotografado em flagrante a enfiar um chapéu de cowboy pela cabeça abaixo ao sargento Matias – na altura, ainda era cabo. O guarda Dinis, à frente, despejava uma daquelas latas de spray de neve… e o resultado fora… inesquecível.
 
- Então Pepe … que tal se sente ?
Os olhos brilharam-lhe um pouco mais.
- Como me sinto? ... eu nem sei... sinto-me em casa, é só isso, sinto-me em casa...
publicado por entremares às 20:49
link do post | comentar | favorito
24 comentários:
De João Menéres a 15 de Junho de 2009 às 23:33
Caro ENTREMARES

Gostei muito de ler esta história da vida do Pepe.
Tem ritmo e não se adivinha o seu final.
Muito bem incluída nesta Tertúlia. Compensa outras participações que são muito curtas.
Tenho que ficar mais atento ao seu blog.

Um abraço sincero.
De Maria de Fátima a 15 de Junho de 2009 às 23:52
GOSTEI MUITO!
De entremares a 16 de Junho de 2009 às 00:02
Obrigado , Maria de Fátima...
Volta sempre,
De entremares a 16 de Junho de 2009 às 00:00
Obrigado pela visita.
Existem por aí muitos Pepe, mas nem todos têm a sorte deste em particular... de ter uma familia e de um local a que chama ... lar.

Um abraço.
De julieta barbosa a 15 de Junho de 2009 às 23:59
Quando leio a minha imaginação corre solta por entre as frases que o escritor, num jogo de palavras, criou. O texto não mais lhe pertence... São minhas, agora, as palavras e com elas eu viajo, dando-lhes a interpretação de acordo como eu vejo à vida. Que bom é ler você! Tenho sempre companhia... e como aprendo! A cada conto a minha consciência desperta, e eu já não posso ficar impassível.Obrigada!.
De entremares a 16 de Junho de 2009 às 00:05
Simpatia a sua, Julieta.
Não lhe acontece por vezes cruzar-se na rua com uma pessoa... com uma expressão em particular que lhe fica na memória, ou com algo que sucede ao dobrar da esquina... que a deixa a pensar ?

Foi assim que surgiu a história deste Pepe...
De Zisco (Carlos Hares Fongaro) a 16 de Junho de 2009 às 00:32
Gostei muito, no início imaginei um castelo, mas não deve ser muito diferente de uma prisão, as restrições devem ser bem parecidas.
De entremares a 16 de Junho de 2009 às 10:16
Obrigado Carlos...
Castelo ou prisão... os muros são altos em ambos, não é mesmo ?

Um abraço.
De Selena Sartorelo a 16 de Junho de 2009 às 01:50
A surpresa foi enorme, que maravilha quando leio o incomum escrito com tanta normalidade. Coisa de gente que sente o que possível na realidade.

Beijos e adorei!!!!!!!!!
De entremares a 16 de Junho de 2009 às 10:18
Obrigado pela visita e pela simpatia, Selena.
A personagem do Pepe é certamente bem real... e devem existir muitos Pepe por aí...

Beijos.
De Elza do Blog do Beagle a 16 de Junho de 2009 às 04:05
Até agora, de todas as postagens, a mais emocionante e verdadeira. Tenho lido muito a respeito dos presos que cumprem longas penas e não conseguems se inserir na sociedade quando libertos. Lindo post. Parabéns. Elza
De entremares a 16 de Junho de 2009 às 10:20
Obrigado, Elza, por toda a simpatia.

A sociedade às vezes não consegue abraçar de novo todos os filhos pródigos...

Beijos.
De Eduardo a 16 de Junho de 2009 às 14:38
Obrigado pela sua importante participação!
De Ana Paula Sampaio a 16 de Junho de 2009 às 15:04
Uau! Passei para retribuir a visita e me deparo com esse texto incrível, o melhor que li na Tertúlia! Parabéns!
De entremares a 17 de Junho de 2009 às 08:52
Obrigado, Ana Paula
Pela visita e pela simpatia.
Gostei muito do espirito de " LUZ " que dá tema aos aos seus posts.

Beijos.
De gisele amaral a 16 de Junho de 2009 às 15:37
Adorei o ritmo do texto e a história também! Uma delícia de ler!

Um beijo.
=*
De entremares a 17 de Junho de 2009 às 08:56
Obrigado Gisele.
Isto de regressar a casa... é como voltar aqui aos post e comentários... é uma nova familia que se vai construindo...

Beijos.
De Vi Leardi a 16 de Junho de 2009 às 23:50
Adorei...e obrigada pela visita!
De entremares a 17 de Junho de 2009 às 08:58
Obrigado pela simpatia.
Volta sempre.

Boa semana
De a 17 de Junho de 2009 às 18:40
Olá! Gostei muito de seu conto, aliás, tens um talento escrevendo desse modo. Quanto ao Pepe, tem sorte de sentir-se em casa num lugar em que a grande maioria sente-se fora, não é? Parabéns! Participar da Tertúlia nos leva a lugares e pessoas jamais imaginados, essa é a magia que subsiste na troca que conseguimos lendo aqui e ali. Obrigada pela visita, bjins e até!

Comentar post

.mais sobre mim

.BlogGincana


.Fevereiro 2010

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28

.posts recentes

. O unicórnio branco

. Nascer de novo

. Noites de lua nova

. Perguntas e Respostas

. Roby, o rei leão

. Onde mora o paraíso?

. Sinais

. Um novo destino

. O profeta

. Ele e Ela

. As doze badaladas

. O salto da alma nua

. O rei morreu... Viva o re...

. Blog Gincana - Novembro

. A dúvida humana

.

. João e o Mestre

. Aniversário

. E depois do adeus

. A pimenta do amor

. O que fazer?

. Sem título

. A mulher invisível

. A escolha dos anjos

. Os amantes

. A Dama do Outono

. Um pedido

. Simplesmente Eugénio

. Carmen Miranda

. A decisão

.arquivos

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Dezembro 2009

. Novembro 2009

. Outubro 2009

. Setembro 2009

. Agosto 2009

. Julho 2009

. Junho 2009

. Maio 2009

. Abril 2009

. Março 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

.links

.as minhas fotos

blogs SAPO

.subscrever feeds